Vidas nos boxes

Por trás do glamour da F1, mecânicos encaram dias extenuantes de trabalho e longos períodos longe da família

Julianne Cerasoli Colunista do UOL Scuderia Ferrari/Divulgação

O espectador mais ocasional pode pensar que tudo se resolve com uma classificação no sábado e a corrida no domingo, uma vez a cada duas semanas. Mas, na verdade, há muito trabalho antes que o primeiro carro da Fórmula 1 vá para a pista - o que acontece, na verdade, ainda na sexta-feira de treinos livres.

Os mecânicos chegam já na terça-feira no palco do GP, passam dois dias inteiros montando carro, e só então a ação que vemos pela TV acontece. Após a bandeirada, tudo tem de ser desmontado o mais rápido possível, em uma questão de horas. Aí, eles finalmente podem voltar para casa.

Ou não.

Pela quarta vez na história, o circo vai ver isso se repetir por três semanas seguidas. E, de forma inédita nesta oportunidade, com largos deslocamentos e mudanças de fuso horário entre uma prova e outra, com uma rodada tripla que começou no México na semana passada, passa pelo Brasil e depois vai para o Qatar.

É como ir para guerra, como definiu ao UOL Esporte o mecânico-chefe da Haas, Matt Scott, que soma 16 anos de experiência nessa vida.

"É como os militares: quando eles entram para o exército e vão embora por seis meses, esse é o trabalho deles. Por mais que todos adorem ter os salários e viver neste estilo de vida competitivo, deve haver um compromisso em algum lugar. E eu acredito que esse é exatamente o nosso compromisso: nosso equilíbrio entre vida e trabalho ", descreveu o mecânico da Haas.

Scuderia Ferrari/Divulgação
Mark Thompson/Getty Images

Os primeiros a chegar

Um GP pode começar ainda no domingo anterior, dependendo do fuso horário do local da prova. Isso porque, na segunda-feira, os 'truckies' (uma gíria para caminhoneiros, porque, nas provas europeias, são eles que fazem o transporte por via terrestre) chegam para receber o material e começam a montar as garagens.

Os mecânicos começam a trabalhar na quarta, na montagem do carro. "Isso leva dois dias. E quando digo dois dias, quero dizer seis caras por carro trabalhando 12 horas por dia. São muitas horas de trabalho. Quando os carros chegam à pista, não é um carro, é uma coleção de peças. E temos que transformar isso em carro, e ele tem que estar pronto até quinta à noite ", diz Scott.

Na sexta, são disputados dois treinos livres de 1h, nos quais os mecânicos torcem para que nada dê errado. Isso porque ainda têm muito trabalho pela frente.

"É quando colocamos o carro na especificação da corrida, então temos que mudar o motor e o câmbio, o que significa que trabalharemos até o toque de recolher [horário em que os membros das equipes precisam estar fora do paddock, que pode ser quebrado duas vezes por ano]. Nas primeiras corridas estamos correndo contra o tempo, até que os caras se acostumem com os processos e saibam o que pode dar errado", acrescenta o mecânico da Haas.

Steven Tee/Divulgação Steven Tee/Divulgação

Pior pesadelo: acidente no sábado de manhã

Sabendo como a programação funciona, é fácil adivinhar qual é o pior momento possível para que algo dê errado: a terceira sessão de treinos livres, no sábado de manhã. Afinal, é quando a mecânica está mais desgastada depois de três dias insanos de trabalho, e faltam apenas duas horas entre o final do último treino livre e o início da qualificação.

"Uma quebra durante o TL3 é o pesadelo de todos. Mesmo se você tiver um assoalho danificado, haverá um comprometimento, pois seu carro não será tão perfeito", diz Scott, da Haas.

E Matt também tem na ponta da língua a resposta sobre qual é a pior peça de se trocar - ainda que seja algo corriqueiro nesta segunda metade do campeonato.

A pior coisa tem que ser o motor. Parece algo bobo de se dizer, mas o motor está no meio do carro. Não é como o carro normal, no qual você pode remover o motor e deixar todo o resto montado. Na F1, você tem que tirar a suspensão traseira, a caixa de câmbio e todo o sistema de refrigeração do caminho para chegar até ele.

Matt Scott, mecânico-chefe da equipe Haas

REUTERS/Edgar Su REUTERS/Edgar Su

Corrida não acaba com a bandeirada

O sábado é mais tranquilo, porque os carros não podem ser alterados entre a classificação e a corrida. Mas, no domingo, eles nem esperam a bandeirada para começar a empacotar tudo de novo. Isso, para conseguir terminar em até oito horas. "Passamos pelos dramas da corrida e, seja ela boa ou ruim, temos que fazer as malas. É a parte que ninguém gosta", admite o mecânico da Haas.

Demora de 5 a 6 horas para desmontar o carro, enquanto o resto do time embala a garagem e os escritórios, terminando de madrugada, dependendo do horário da largada, e viajando no dia seguinte. Toda ajuda é bem-vinda nesta hora, e o piloto inglês Lando Norris ganhou pontos com sua equipe, a McLaren, por ajudar neste desmonte em algumas etapas.

Este cronograma significa, é claro, que eles não poderão voltar para casa se um GP já é na semana seguinte, mesmo se as distâncias não forem como à da turnê México-Brasil-Qatar. E tem outro detalhe.

"Nas corridas europeias, quando há um fim de semana entre os GPs, temos a chance de construir o carro na fábrica e trabalhar nele, o que significa que chegaremos à pista mais bem preparados. Todo o processo é menos estressante ", explica Scott.

Haas/Divulgação
Matt Scott, mecânico-chefe da Haas

Família nem pode ouvir em rodada tripla

O calendário tem 22 GPs neste ano, com três rodadas triplas, algo que foi feito pela primeira vez, por conta da Copa do Mundo, em 2018, e voltou para ficar com a pandemia. Ano que vem serão duas, incluindo uma com Singapura, Rússia e Japão.

As equipes não falam abertamente sobre isso, já que um calendário mais inchado também é mais rentável, mas a rotatividade nas garagens está aumentando. O fato é que, quando você decide trabalhar na F1, sua família também embarca em um estilo de vida de muitas viagens e cobranças.

"Eles sabem qual é a sua paixão. Todo mundo quer um tempo de folga regular e previsível, mas se você tem uma família que o apoia, eles estarão do seu lado. O problema surge quando você tem grandes períodos fora. Nas rodadas triplas ficamos fora por um mês inteiro, e isso é muito difícil para as pessoas que te cercam", diz Matt Scott.

A vontade de ter um emprego que permita mais tempo em família tem afastado muitos profissionais. Recentemente, o mecânico da McLaren Marc Cox publicou em suas mídias sociais que estava de saída após dez anos e, em resposta a um comentário que dizia que ele ainda tinha muito o que conquistar no esporte, sua esposa respondeu: "Diga isso a nosso filho de seis anos".

Mark Thompson/Getty Images Mark Thompson/Getty Images

Quem são os mecânicos da F1?

Se há um pré-requisito para trabalhar na F1, é a paixão, já que são tantos sacrifícios que é incomum encontrar alguém que acabou casualmente no paddock.

Mas e quanto ao caminho para se tornar um mecânico de F1? Matt Scott pegou o óbvio. O britânico estudou engenharia automotiva no Reino Unido e sempre trabalhou no automobilismo, sendo pinçado pela Haas vindo da F2.

As equipes também têm buscado pessoas que venham de outras escolas de engenharia e de tecnologia para aplicar um conhecimento diferente à categoria. "É uma questão de estar preparado para fazer os sacrifícios necessários, porque mesmo nas categorias mais baixas, você viaja muito e está constantemente longe da família e dos amigos."

Mas existe uma compensação. Eles não revelam os números, mas um mecânico-chefe pode ganhar mais de US$ 60 mil por ano (o equivalente a quase 350 mil reais). "Quanto mais você progride em sua carreira, mais responsabilidade você assume e mais remuneração você recebe", diz Matt Scott com um sorriso no rosto. "Isso é normal em qualquer área. Mas é importante dizer que não é apenas glamour na F1."

EFE/Bosco Martín

Por que existe a sequência México-Brasil-Qatar?

O calendário original tinha uma sequência EUA-México, o GP do Brasil duas semanas depois e o GP da Austrália também com 15 dias de intervalo. Com a pandemia, a prova de Melbourne foi cancelada e substituída pelo Qatar e, quando o cronograma foi fechado, no final de setembro, México e Brasil estavam na lista vermelha do Reino Unido. Então, a F1 buscou evitar que os profissionais, em sua maioria baseados no país, tivessem que ficar isolados em hotéis na volta a casa. Para isso, era preciso que eles só retornassem à Inglaterra mais de dez dias depois de saírem de território brasileiro.

Essa decisão teve que ser tomada em setembro porque 500 toneladas de equipamentos são enviados por via marítima, e o carregamento não poderia esperar mais.

Basicamente, se é mais barato ter cinco cópias de algo, como cadeiras, por exemplo, isso é enviado por mar. Assim, é possível enviar um carregamento para o México, outro para o Brasil e um terceiro para o Qatar. E o que for mais caro, como os carros, por exemplo, é mandado por via aérea, ou seja, mais 660 toneladas. Nas provas na Europa, e até em países como Turquia e Azerbaijão, usa-se caminhões.

  • 7.427 km

    É a distância entre o Autódromo Hermanos Rodriguez, na Cidade do México, e o Autódromo de Interlagos, em São Paulo.

  • 11.876 km

    É a distância entre Autódromo de Interlagos, na cidade de São Paulo, e o Circuito de Losail, no Qatar.

E assim é a agenda

  • Segunda-feira: funcionários recebem equipamentos que chegam por via marítima e aérea;
  • Terça-feira: montagem dos boxes;
  • Quarta e quinta-feira: montagem dos carros;
  • Sexta-feira: treinos livre e carros são colocados na configuração de de corrida (com motores e câmbios que usarão ao longo do fim de semana);
  • Sábado: Último treino livre e classificação;
  • Domingo: Corrida e desmonte dos carros e da garagem, que pode durar até oito horas;
  • Segunda-feira: Viagem para a etapa seguinte no caso das rodadas duplas ou triplas.
Dan Istitene/Getty Images Dan Istitene/Getty Images

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