Sem receita

A reconstrução de Lucas Silva após o susto no Real Madrid começou ainda na infância, na fazenda dos avós

Lucas Silva, em relato a Eder Traskini e Jeremias Wernek Do UOL, em Santos (SP) e Porto Alegre (RS) Lucas Uebel/Grêmio FBPA

Eu até queria ter uma receita para passar pra você, sabe? Quer ser jogador de futebol? Tá aqui, só seguir isso e o sucesso é garantido. Mas isso não existe. Não tem uma receita para ser jogador.

Não adianta ser só bom de bola. Não adianta apenas ter um bom comportamento. Não adianta só ser bom na escola. São muitos detalhes. Inúmeros. Uma somatória grande e que, mesmo assim, ainda não é garantia. Você tem que dar certo, tem que vingar.

Mas uma coisa eu posso te falar: você tem de correr atrás do seu sonho. Muita coisa vai acontecer no seu caminho e você vai precisar de uma cabeça boa pra superar tudo. No meu caso, a família é minha base. Foi ao lado deles que eu superei as dificuldades que apareceram antes desse dia em que eu disse: "Vinguei". E também quando elas apareceram e ameaçaram minha carreira como jogador.

Essa história de receita é curiosa, mesmo. O maior susto que eu tomei desde me tornei profissional é o grande exemplo disso. Sem receita para sair. Em 2016, exames apontaram um problema de coração. Quando há um problema, geralmente existe um remédio, um tratamento, mas não era o caso.

Felizmente, o segredo era esperar. Não foi nada grave, mas fiquei quase dois meses longe dos gramados realizando um acompanhamento periódico. Nos exames que realizei depois desse tempo, aquilo havia sumido.

Receita para ser jogador de futebol não existe, bem como não há manual para lidar com os problemas que aparecem ao longo da sua trajetória — quem imaginaria o susto que levei? Mas uma coisa eu posso garantir pra vocês: quando você chegar lá e olhar para trás, vai ter a certeza de que tudo valeu a pena.

Lucas Uebel/Grêmio FBPA
Power Sport Images/Getty Images Power Sport Images/Getty Images

Arritmia do susto

O meu problema foi uma arritmia cardíaca. Eu estava sendo emprestado pelo Real Madrid ao Sporting (POR) quando o teste de esforço que eles fizeram antes de fechar a negociação apontou isso.

Cara, que susto... Não existe um tratamento para isso, era mais questão de monitorar. Logo, realizei exames complementares que não apontaram alteração alguma. Mas eu fiquei um mês trabalhando sob supervisão e foram quase dois até ser liberado para voltar aos treinos no Real.

Mas foi difícil. Teve gente até me aposentando e eu tive que me manifestar pra negar isso.

Pra quem vê de longe, esse período pareceu maior porque eu fiquei seis meses sem jogar. O que pouca gente sabia é que eu estava em condições de jogo, mas o Real Madrid iria me emprestar porque eu não estava nos planos naquele momento.

Fiquei só treinando até surgir a oportunidade. Ela apareceu na forma de um retorno ao Cruzeiro — o clube que me revelou. Eu já sabia que estava tudo bem e os exames do clube confirmaram isso. Finalmente, eu estava liberado para voltar a fazer o que eu mais gosto na vida.

Lucas Uebel/Grêmio FBPA

Paixão pelos campos

Eu sabia que aquilo não iria me parar porque a minha paixão pelo futebol foi a única coisa que conseguiu me fazer abandonar o amor por outro campo: o da fazenda.

Na minha infância, lá no interior de Bom Jesus de Goiás, eu só queria saber de duas coisas: bola e fazenda. Todo fim de semana nós íamos passar com meus avós, a Rita e o Valter, na fazenda. A gente juntava com os meninos das terras vizinhas pra jogar em uma graminha no cantinho, com uns gols improvisados.

Eu lembro que, desde essa época, meu vô e minha vó apareciam para me assistir jogando. Hoje, existe um campo de futebol ali. Nós construímos naquele espaço para que meus avôs assistissem. Meu avô não está mais entre nós, mas minha avó ainda faz questão de acompanhar.

Vovó Rita sempre gostou de acompanhar tudo. Uma vez, os dois foram ver um treino no Cruzeiro e fiz questão de tirar uma foto com eles. Guardo até hoje com muito carinho.

Eles sempre assistiam pela televisão aos jogos, mas nem mesmo quando o vovô Valter ainda era vivo eles conseguiam sintonizar o canal. Nos dias das partidas, o gerente lá da fazenda colocava no canal certo de manhãzinha e deixava a TV ligada. Quando dava o horário do jogo, eles iam até a frente da tela.

Depois que meu avô morreu, meus pais mudaram para lá porque minha avó não consegue sair do campo. Até tentamos levar ela para a cidade, mas não teve jeito.

Eu entendo ela, sabe? Só quem nasceu no campo conhece o prazer que é estar na fazenda. Gosto de acordar cedo, tomar o café com ela, ver os cavalos e ir para o meio do gado. Faz parte de mim e vou levar para a vida toda.

VCG/Visual China Group via Getty Ima
Lucas entre Gareth Bale, Alvaro Arbeloa, James Rodrigues e Karim Benzema em 2015

Júlio Baptista, o intermediário

Quando eu não estava na fazenda, estava na escolinha. Quando eu tinha 11 anos, meu treinador se reuniu com meus pais e disse que se quisessem que eu seguisse a carreira no futebol, tinha que sair de Bom Jesus. Eu estava me destacando e precisava alçar voos mais altos. Fui para Goiânia jogar em uma escola com parceria com o Cruzeiro.

Quando eu tinha 13 anos, fui fazer um teste em Belo Horizonte e passei. A partir daí, segui carreira na base, passando em todas as categorias. Falando assim, parece que foi fácil. Mas isso não seria verdade: foram muitos altos e baixos, treinadores que não gostavam de mim e diziam que podiam me dispensar. De novo, cabia a mim dar a volta por cima.

A saudade de casa e da fazenda era constante. Teve um dia que eu não estava mais aguentando, liguei para meus pais e disse que queria voltar, queria ficar com eles, meus irmãos, queria ir para a fazenda. Nesse dia meu pai me confortou: disse que estavam todos bem, que a fazenda também estava bem, e me lembrou o quão difícil foi chegar até ali. Pediu para que eu lutasse um pouco mais pelo meu sonho.

Eu fiquei. Aos 19 anos, estreei profissionalmente. Dois anos depois, já era bicampeão brasileiro, titular e destaque do Cruzeiro. Na reapresentação para a temporada seguinte, em 2015, o Júlio Baptista, com o celular na mão, me chamou de canto — éramos bem amigos. Ele disse: "Pessoal do Real Madrid me ligou e pediu o contato do seu empresário".

Ali o coração acelerou: um dos maiores clubes do mundo tinha interesse no meu futebol. As tratativas se arrastaram um pouco, mas deu tudo certo.

Victor Carretero/Real Madrid via Getty Images

Porque eu escolhi o Real Madrid

Quando comecei a preparar a viagem à Espanha, muita gente falou: 'pô, você vai direto para o Real Madrid, cara? A concorrência é grande lá, hein'. Na verdade, eu sempre vi por outro lado essa situação. Acho que algumas oportunidades aparecem uma vez só na vida. Era o Real Madrid! Não tive como recusar, né?

Saí do Brasil otimista e de peito aberto para viver a experiência, aproveitar o momento. Mesmo que não tenha sido uma passagem com tantos jogos como eu gostaria, aconteceram coisas que me ajudam até hoje na vida, como a vivência ao lado de grandes jogadores, por exemplo.

Um cara que me ensinou muita coisa foi o Marcelo, preciso registrar isso. Por tudo que ele viveu lá, pelo conhecimento que adquiriu sobre a Espanha, o clube. E, cara, o que era aquele vestiário do Real? Que ambiente! O Cristiano Ronaldo me recebeu super bem, até pela facilidade da língua e tudo. Me aproximei bastante dele, do Pepe e do Coentrão nos primeiros dias. Depois fui criando relação com os outros.

O mais incrível é que todos são jogadores do mais alto nível, muita representatividade, e o vestiário sempre era leve, tranquilo. A recepção de todo mundo, de jogadores a funcionários, foi ótima. E os treinos, ah os treinos! Era muito legal e bonito de se ver. Cara, era cada jogada espetacular nos treinamentos. Posso não ter jogado tanto quanto eu gostaria ali, mas eu fui com o peito aberto e voltei com o coração cheio.

Quando lembro de Carlo Ancelotti, penso na figura de um paizão. Ele foi meu primeiro treinador na Europa, é algo que ficou marcado. Eu cheguei no meio da temporada, ou seja, com tudo acontecendo a todo vapor. Ancelotti me viu chegando muito novo e foi conversar comigo. Me tratou muito bem. Deu atenção, deu moral na conversa. Mesmo que eu não tenha tido tantas oportunidades no time com ele, ele mostrou que é diferente. Ele se preocupa com todos, tem uma leitura de jogo muito boa."

Lucas Silva

Lucas Uebel/Grêmio FBPA Lucas Uebel/Grêmio FBPA

Antigo novo Lucas Silva

Agora, se você me perguntar o que mudou desde aquele dia em que entrei no vestiário do Real Madrid até hoje, vou dizer sem medo de errar: vivo um dos melhores momentos da minha carreira. "Ah, mas você foi multicampeão no Cruzeiro, jogou no Real Madrid e hoje disputa uma Série B". Tudo é experiência. Aquele Lucas Silva não sabia controlar o jogo como o Lucas Silva de hoje. Hoje, entendo a ansiedade, entendo o que o jogo pede...

Dá pra repetir aquele nível que chamou atenção do Real, não tenho dúvida alguma. Eu sei que quando alguém olha pra mim, espera ver o jogador que levantou troféus como destaque no Cruzeiro, o volante que chamou atenção do Real Madrid. Todo mundo já me viu atuar nesse nível. Mesmo eu sendo um jogador um pouco diferente hoje, dá pra chegar naquele nível novamente.

Sou mais experiente, mais rodado, olha o que eu passei para chegar até aqui? Isso faz com que eu saiba lidar melhor com a ansiedade antes do jogo, por exemplo. Em campo, consigo controlar melhor a partida do que fazia antes. Eu vivo os 90 minutos de uma forma diferente. Minha leitura de jogo evoluiu e isso faz com que eu entenda melhor o que preciso fazer naquela partida em específico.

Mas uma confissão eu vou fazer: não é fácil manter o alto nível todo ano, o ano todo. Sempre tem aqueles altos e baixos, por diversos motivos. Manter uma constância é muito difícil. A verdade é que o ano passado foi difícil, cara. Eu me via fazendo bons jogos, mas foi bem doloroso viver a queda do Grêmio.

Lucas Uebel/Grêmio FBPA

A inimaginável Série B

A gente sofreu bastante com o rebaixamento no final de 2021, mas já falamos que, neste ano, não vamos nos abalar mais. A Série B vai ser extremamente competitiva por ter clubes grandes, bons times e poucas vagas. É muita gente de olho em quatro lugares, mas nem passa pela nossa cabeça a possibilidade de ficar fora da primeira divisão por mais um ano. Não, simplesmente não dá.

Pelo tamanho do Grêmio, pelos jogadores, pela torcida. Pelo treinador que está com a gente. Todo mundo está otimista, mas sabe que precisa da confiança e de algo mais. Só a camisa não vai ganhar jogo. O Roger chegou e conhece o clube, está encaixando o time. Vieram reforços, caras experientes e isso conta muito para a Série B. Não adianta, faz diferença.

Cada um de nós dentro do vestiário sabe a responsabilidade que tem e vamos encarar a pressão pelos resultados, pelo futebol em si. No início deste ano já vivemos isso e vamos fazer de novo. Vamos nos fechar internamente e vamos provar em campo. É no campo o melhor lugar para responder. Não é com entrevista, não é batendo boca com torcedor e nem brigando entre si. A melhor e maior resposta é treinar muito, se dedicar e mostrar no campo.

Já mostramos do que somos capazes no estadual e isso nos deixa otimistas. Foi com cada um jogando por todos, fechados internamente que alcançamos o título gaúcho e assim dessa forma que vamos buscar a vaga na Série A. Lembra que no começo do texto que disse que no futebol não tem muito isso de receita? Acho que dessa vez tem. Repetir de ano não é uma opção.

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