E se Senna estivesse vivo?

UOL conversou com especialistas e quem conviveu com ele e mostra o que mudaria na história da F1

Julianne Cerasoli Colunista do UOL, em Londres (Inglaterra) Paul-Henri Cahier/Getty Images

Um pentacampeão com a frustração de nunca ter corrido na Ferrari ou o herói que levou a Scuderia de volta aos títulos depois de quase duas décadas de fila? Nem aqueles que dividiam os paddocks pelo mundo com o piloto brasileiro seguindo o circo da Fórmula 1 chegam em um consenso.

O que aconteceu foi que, há exatos 30 anos, Senna, muito provavelmente, sofreu uma quebra na barra de direção de sua Williams, perdeu o controle do carro e bateu violentamente na curva Tamburello quando liderava o GP de San Marino. Morreu aos 34 anos, em 1º de maio de 1994.

Mas e se o acidente não tivesse acontecido?

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Reuters

O que você ainda não sabe sobre a morte de Senna?

Em 11 capítulos, o jornalista Livio Orichio elaborou uma série de textos relatando o que viu no fim de semana de 1º de maio de 1994, e, depois, nos dias seguintes, na porta do Instituto Médico Legal de Bolonha ou no tocante voo que trouxe o seu corpo para o Brasil. A série foi publicada em 2014, nos 20 anos do acidente.

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Pela primeira vez, ele não tinha um plano

Conversando com profissionais que o conheciam e estavam no seu convívio na época do acidente, ficou claro que Senna vivia um momento de enorme crescimento humano enquanto enfrentava grandes desafios profissionais. Pela primeira vez desde que voltou decidido à Europa no início dos anos 1980 (quando desistiu de ajudar nos negócios da família como queriam seus pais), o piloto brasileiro não parecia saber muito bem qual seria seu próximo passo.

Antes disso, era tudo um grande plano executado minuciosamente:

  • Primeiro a Fórmula Ford.
  • Depois a Fórmula 3, que ele considerava importante para chegar com mais experiência à F1.
  • A estreia na F1 por um time menor.
  • O primeiro título, quatro anos após a estreia.

Era um script que Senna montou para sua carreira e que foi executando etapa por etapa com a mesma precisão que demonstrava nas pistas a cada pole position.

As coisas saíram do rumo no início dos anos 1990, quando ele percebeu que a McLaren já não tinha mais o melhor carro do grid. Vendo Nigel Mansell e Alain Prost com o título mundial de 1992 e 1993 no volante de uma Williams, Senna tratou de fazer tudo o que podia para se transferir para o time.

Conseguiu em 1994. Meses antes de sua estreia, porém, a Federação Internacional de Automobilismo, ainda controlada por seu desafeto Jean Marie Balestre, mudou o regulamento para limitar o grande trunfo da Williams nos dois anos anteriores: o uso da eletrônica nos carros.

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Em 1992, Schumacher e Senna discutiram nos boxes de um GP

Senna estava desconfiado de Schumacher

As primeiras corridas de 1994 tinham demonstrado que o domínio da Williams tinha acabado com essa mudança. Mas existia uma pulga atrás da orelha: Ayrton estava convencido de que o carro de Michael Schumacher tinha controle de tração, uma das ajudas eletrônicas que tinham sido banidas.

Senna chegou a Imola, palco da terceira etapa da temporada, zerado no campeonato, mesmo após ter feito a pole position nas duas corridas que abriram o campeonato. No Brasil, tinha rodado sozinho, algo raro no estágio da carreira em que estava. Lembrando: Senna estava vindo de seu ano mais forte em termos de pilotagem em um McLaren limitado em 1993.

No GP do Pacífico, foi atingido primeiro por Hakkinen, depois por Larini, e abandonou. Isso aconteceu logo no começo da prova. Senna aproveitou para ficar na beirada da pista para observar o carro de Schumacher e chegou à conclusão que só o carro dele, e não o de seu então companheiro Jos Verstappen, tinha controle de tração. Em outras ocasiões, ele tinha pedido a jornalistas no paddock para se posicionarem ao lado de determinadas curvas e indicou o que queria que eles notassem. Ayrton se preparava para convencer a Williams a protestar contra o carro da Benetton.

Montagem com fotos da Getty Images

Senna tinha aberto conversas com a Ferrari

Paralelamente a isso, Senna estava conversando com o presidente da Ferrari, Luca di Montezemolo. O namoro entre o brasileiro e o time italiano tinha tido idas e vindas ao longo dos anos, e Ayrton nunca escondeu o desejo de correr pela equipe de Maranello. A Ferrari tinha brigado pelo título com ele em 1990, com Alain Prost ao volante, mas não conseguiu manter a competitividade nos anos seguintes.

Eles tinham contratado Jean Todt em 1993, e passavam por um período de reconstrução. Segundo Montezemolo, ele e Senna tiveram uma conversa em Ímola na qual o brasileiro se comprometeu a estudar seu contrato e buscar uma forma de quebrar seu acordo com a Williams, que era de três anos.

Houve, depois de sua morte, muita conversa sobre o um pré-contrato com a Ferrari para a temporada de 1996. O fato é que sempre foi prática em Maranello (e continua sendo) ter algum tipo de vínculo com vários pilotos, mas sempre deixando a opção de ativar ou não o contrato na mão da própria equipe.

Então, não dá para cravar que Senna iria para a Ferrari. Tudo dependeria da evolução da Williams ao longo da temporada 1994 e do quanto a Benetton seria freada caso o controle de tração fosse realmente encontrado -o que não aconteceu.

A FIA chegou a investigar o carro da Benetton, encontrou um software "suspeito", mas chegou à conclusão de que nada ilegal estava sendo usado. Schumacher foi desclassificado de duas provas e foi excluído de outras duas, mas por outras irregularidades. Quase uma década depois, a FIA desistiu de policiar sistemas eletrônicos por alguns anos, dizendo que tinha dificuldades de encontrá-los por questões tecnológicas. Isso foi resolvido posteriormente.

O que ouvi dos profissionais consultados no paddock é que Senna muito provavelmente teria uma relação complicada com Jean Todt, pelas personalidades dos dois, e que o brasileiro não tinha paciência suficiente para reconstruir uma equipe da maneira que a Ferrari precisava. Afinal, ele já tinha demonstrado isso nos dois últimos anos de McLaren.

Inglaterra e Senna: nome de rua e até venda de assento sanitário

Cenário 1: Senna supera Fangio e é 1º hexacampeão

Paul-Henri Cahier/Getty Images

1994: Senna é campeão

O que ficou claro em todas as conversas é que, embora tivesse o sonho de correr pela Ferrari, Senna só apostaria no time de Maranello se entendesse que eles pudessem lhe dar um carro vencedor. E isso estava diretamente ligado à leitura dele em relação à própria Williams e a crença, ou não, de que eles se recuperariam do início ruim em 1994.

Sem o acidente de Ímola, Senna teria vencido pela primeira vez no ano e continuaria na sua batalha para comprovar que a Benetton estava fora do regulamento.

Ao mesmo tempo, a Williams melhorava seu carro: Damon Hill, o outro piloto da equipe, foi vice-campeão mundial e venceu seis dos últimos 12 GPs daquele ano. Nesse contexto, o brasileiro venceria a disputa com Michael Schumacher e conquistaria o título de 1994.

Pascal Rondeau/Getty Images

1995: Schumacher vence pela primeira vez

A partir daqui, entramos em um cenário mais nebuloso, mas em 1995, como a Benetton passou a ter o motor Renault, Schumacher ficou um degrau acima das Williams. E venceria Senna -provavelmente em uma batalha duríssima, já que Hill, apesar de ter terminado o Mundial com mais de 30 pontos a menos do que Schumacher, venceu quatro provas e foi ao pódio em outras cinco.

Paul-Henri Cahier/Getty Images

1996: Senna chega a cinco títulos, Schumacher segue na Benetton

O ano de 1996 é vital para esse exercício de imaginação:

O primeiro ponto é o que aconteceria com Schumacher. No mundo real, foi nesse ano que Schumacher trocou a Benetton pela Ferrari. Os dois títulos com a equipe de Flávio Briattore fecharam um ciclo e ele ficou livre para ser o rosto da reconstrução da mais tradicional das equipes da F1.

No cenário com Senna ainda vivo, porém, Schumacher e a Benetton tinham acabado de conquistar seu primeiro título e ver um campeão trocando de equipe seria improvável. Então, Schumacher ficaria na Benetton, e com ele ficam no time britânico Rory Byrne e Ross Brawn.

Com o trio, a Benetton se mantém em alto nível e poderia brigar com o time que mandou naquela temporada: justamente a Williams. O inglês Damon Hill foi o campeão de 1996, com o canadense Jacques Villeneuve em segundo lugar. Os dois venceram 12 dos 16 GPs da temporada. No mundo em que o acidente de Ímola não aconteceu, 1996 marcaria o quinto título mundial do brasileiro, piloto número 1 da equipe que dominou aquele ano.

Senna seria o primeiro a igualar o argentino Juan Manuel Fangio.

Arquivo

1997: Newey e Senna se separam, Schumacher é bi

Em 1997, Adrian Newey deixa a Williams e vai para a McLaren. Sem aquele que é considerado o melhor projetista da história, o carro da Williams perde força. Schumacher, ainda na Benetton, aproveita e é campeão em 1997. Seria seu segundo título -- lembrando que, com a morte de Senna, esse bicampeonato viria dois anos antes.

Patrick Behar/Corbis via Getty Images

1998: Senna volta à McLaren e chega ao hexa

Em seu segundo ano na equipe, Newey desenhou o carro mais rápido do ano. Quem o pilotou foi Mika Hakkinen, vencendo oito das 16 corridas do ano. Com Senna, o cenário indica que o brasileiro seguiria Newey em 1998. Dez anos após a primeira conquista com a McLaren, Senna superaria o argentino Juan Manuel Fangio com seu sexto título mundial.

Luiz Novaes/Folhapress

Aos 38 anos, Senna se aposentaria como o maior piloto da história: seria o maior vencedor (com seis títulos) e teria o recorde de vitórias (quando morreu, ele era o segundo da lista, com apenas triunfos a menos do que o recordista da época, Alain Prost) e o de pole positions (recorde que foi do brasileiro até 2006).

Michael Cooper /Allsport

1999, 2000 e 2001: Schumacher chega à Ferrari, McLaren leva três títulos

Com Senna fora do grid, Schumacher passa a ser o maior nome da categoria em 1999. E, após oito anos de Benetton, chegaria a hora de trocar de casa, para a Ferrari. Levando Byrne e Brawn, eles encontram um time que não vencia o campeonato de construtores desde 1983 e iniciam uma reconstrução difícil.

Enquanto fazem isso, McLaren e Williams disputariam os títulos de 1999, 2000 e 2001. A novidade é que, na Williams, estaria um piloto brasileiro: com Senna ainda vivo, Rubens Barrichello poderia construir sua carreira sem a pressão de ser a salvação do automobilismo verde-amarelo e, em 1999, já seria piloto de uma das melhores equipes do grid -com a morte de Senna, ele só chega à Ferrari em 2000. Um desses títulos poderia ter ficado com o brasileiro, mas o desempenho dos times naqueles três anos indica que os pilotos da McLaren (Mika Hakkinen e David Coulthard) seriam os campeões.

Pascal Rossignol/Reuters

2002, 2003 e 2004: começa o domínio de Schumacher

Schumacher, Byrne, Brawn e Todt eventualmente conseguem levar o time italiano de volta aos títulos a partir de 2002. Vencendo os campeonatos de 2002, 2003 e 2004, o alemão chega apenas a cinco títulos e se iguala a Fangio e Senna no hall dos maiores campeões da história. Enquanto isso, Senna foca na política e se torna presidente do Brasil.

Cenário 2: Senna vai para a Ferrari e só iguala Fangio

Pascal Rondeau/Getty Images

1994: Senna vence em Ímola, mas não é campeão

Existe, porém, outro cenário possível: a barra de direção, que quebrou e provavelmente a causa da morte de Ayrton Senna, foi alterada a pedido do brasileiro. Ele pediu a mudança no sistema para segurar o volante de maneira mais natural —o carro tinha sido projetado pensando em Alain Prost, mais baixo que Ayrton, e isso estava prejudicando sua pilotagem. Foi essa a causa da rodada estranha no Brasil.

Sem a mudança, a barra teria resistido ao GP de San Marino e Senna teria vencido a prova. Mesmo assim, o brasileiro seguiria desconfortável.

Ao mesmo tempo, a Williams segue com dificuldades com o carro enquanto o diretor-técnico Patrick Head resiste a fazer um protesto formal contra o carro da Benetton. O resultado é que Senna segue inconsistente até o final da temporada e Schumacher, como aconteceu, conquista o título de 1994.

Montagem com fotos da Getty Images

1995: Senna chega à Ferrari

Aproveitando que o projetista Adrian Newey também estava descontente na Williams, querendo mais poder em uma equipe na qual tinha que reportar a Head, ambos quebram seus contratos e assinam com a Ferrari. O compromisso é reconstruir a equipe ao lado de Jean Todt.

Senna usa o italiano que aprendeu na época em que morou na Itália no kart, seu carisma e conquista o coração dos tifosi. Os títulos, contudo, demoram. Em 1995, como aconteceu na realidade, Schumacher conquista o bicampeonato.

Kay Nietfeld/picture alliance via Getty Images

1996 e 1997: Senna na Ferrari, Schumacher na McLaren, Hakkinen é bicampeão

Senna chegou à Ferrari em 1995, aos 35 anos, mas só 1996 correu em uma Ferrari desenhada por Newey. O projeto é competitivo nessa temporada, mas o carro tem muitos problemas de confiabilidade.

Enquanto isso, depois dos títulos de 1994 e 1995, Schumacher troca de equipe. Com a Ferrari em reconstrução por Senna e Newey, é na McLaren que ele encontra uma vaga. O time havia se tornado a equipe de fábrica da também alemã Mercedes um ano antes e, quando Schumacher ficou livre da Benetton, o caminho lógico foi reatar com a empresa com a qual tinha tido relação desde a base.

Schumacher forma uma dupla fortíssima com Mika Hakkinen e os dois travam batalhas épicas pelos títulos, vencidas pelo finlandês, o piloto que melhor se adaptou ao carro.

Reprodução/Twitter

1998 e 1999: O pentacampeonato de Senna

Enquanto Hakkinen batia Schumacher, a Ferrari sofria em seu processo de reconstrução. Até que Senna, já desacreditado por conta da idade, encontra o caminho e vence em 98 e 99, batendo o recorde de vitórias de Alain Prost.

O brasileiro encerra sua carreira aos 39 anos, com cinco títulos, como Fangio, e os recordes de vitórias e poles. Torna-se presidente da Ferrari e, eventualmente, da Federação Internacional de Automobilismo.

AFP PHOTO / MARIO LAPORTA

2000 a 2004: Schumacher volta a vencer, Barrichello é campeão

Hakkinen se aposenta como bicampeão e Schumacher segue na McLaren. O título finalmente vem em 2000, mas é só. Entre idas e vindas na carreira, com passagem pela Williams-BMW e uma tentativa de volta à McLaren, ele tenta igualar os cinco títulos de Fangio e Senna, mas não consegue.

Sob o comando de Senna, a Ferrari é campeã de 2001 a 2004. Um dos pilotos que consegue derrotar Schumacher é justamente Rubens Barrichello, apadrinhado pelo presidente do time.

Os números de Senna e Fangio acabam sendo somente batidos por Lewis Hamilton, substituto de Schumacher na McLaren.

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