Olá, Lenin

Sheriff calou o Real Madrid e vem de 'país inexistente' que celebra o comunismo soviético

Adriano Wilkson Do UOL, em São Paulo DeFodi Images via Getty Images

A bola pingou meio despretensiosa saindo de uma das grandes áreas do Santiago Bernabéu, em Madrid, mas Sebastien Thill estava no lugar certo, na hora certa e cheio de pretensões. Faltavam exatamente um minuto e cinco segundos para o fim do tempo regulamentar, e o placar mostrava Real 1 x 1 Sheriff, na segunda rodada da fase de grupos da Liga dos Campeões. Thill, meia-atacante contratado pelo Sheriff em janeiro, ajeitou o corpo e preparou o chute.

A bola passou como um jato pelo meia Modric e pelo goleiro Courtois, que em vão tentaram desviá-la. Foi morrer no fundo da rede do Bernabéu, depois de acertá-la no ângulo. Para todos os efeitos, um golaço. Os torcedores espanhóis levaram as mãos à cabeça, incrédulos, assim como os jogadores do Real. Thill, natural de Luxemburgo, tirou a camisa e correu em direção à linha de fundo, celebrando o gol como se fosse um título. Foi o primeiro gol de um atleta de Luxemburgo na história da competição.

O treinador ucraniano Yuriy Vernydub, que comanda o time há menos de um ano, se ajoelhou na lateral, levou as mãos ao alto e foi abraçado pelos reservas. Ninguém parecia acreditar que o Sheriff, um clube da Moldávia sem nenhuma tradição internacional, estava vencendo o Real Madrid (13 títulos da Liga dos Campeões) na capital espanhola. A vitória de ontem foi a segunda do Sheriff, que se isolou na liderança de um grupo que tem ainda Inter de Milão (três títulos da Liga) e Shakhtar Donetsk (um título da Liga Europa).

Era de esperar que a Moldávia, país de 4 milhões de habitantes entre a Ucrânia e a Romênia, estivesse em festa com a campanha do time, que faz sua estreia no palco internacional. Na prática, é complicado... A seguir, UOL Esporte conta a história do clube que virou a grande zebra da Liga dos Campeões. Uma história que reúne o comunismo, uma megacorporação, fazendas de caviar e um ex-agente da KGB bilionário que resolveu formar um time de futebol.

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Tatuagem do atacante Sebastien Thill mostra jogador pensando na Liga

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Guerra e herança russa criaram "país inexistente"

O repórter Anatolie Esanu, do jornal "Ziarul de Garda", da Moldávia, dedicou boa parte de seus últimos anos a investigar o que acontece no leste do país, em um território conhecido como Transnístria, sede do Sheriff. Cerca de 400 mil pessoas vivem em um lugar que parece esquecido no tempo. A principal rua de Tiraspol, a maior cidade da Transnístria, se chama Karl Marx, e a principal praça ostenta uma estátua de Vladimir Lenin. Carros antigos de marcas soviéticas jogam fumaça nas esquinas, e bandeiras com a foice e o martelo adornam os prédios públicos.

A Moldávia é um dos muitos países que se formaram com o fim da União Soviética. Mas, por se sentirem muito próximos da Rússia, líderes da Transnístria não aceitaram fazer parte do novo país. Depois de um conflito que deixaria cerca de 700 mortos no começo dos anos 90, a Transnístria declarou sua independência da Moldávia, com apoio de tropas russas, que ainda hoje patrulham as ruas e campos da região.Mas nem a Moldávia, nem a Rússia, nem qualquer outro país da ONU, nem a UEFA (que organiza o futebol europeu) reconhecem a Transnístria como país independente. Mesmo assim, seus habitantes têm passaporte próprio, e o território tem sua própria moeda, banco central, bandeira, sistema de governo e postos alfandegários. Tudo isso à revelia do governo da Moldávia. E desde 1997, a Transnístria tem seu próprio time de futebol.

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Esse distanciamento leva a maioria dos moldavos a olhar com ceticismo os feitos internacionais do clube.

"O desempenho do Sheriff é incrível e muitos vão elogiá-lo", pondera o jornalista Anatolie Esanu, em uma conversa on-line. "Mas os fãs de futebol na Europa precisam saber que esta equipe vem de um estado separatista. Com algumas exceções, não achei que houvesse nenhum 'orgulho nacional' na Moldávia na classificação do Sheriff para a Liga dos Campeões. Muitos irão aos jogos apenas para ver o Real ou a Inter de perto."

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Sheriff foi fundado por antigo agente da KGB

Nos anos 90, as ex-repúblicas soviéticas privatizaram a indústria antes controladas pelo Estado comunista. Antigos funcionários públicos soviéticos passaram a controlar essas empresas e fizeram a transição à modernidade. Ou quase. Na Transnístria, Viktor Gushan e Ilya Kazmaly, dois antigos agentes da polícia secreta soviética, a KGB, se tornaram grandes capitalistas na nova ordem.

Eles fundaram a Sheriff, um conglomerado que rapidamente aglutinou os principais meios de produção e serviços da região. A empresa hoje é dona de postos de gasolina, supermercados, empreiteiras, emissoras de rádio, TV e jornais, concessionárias, fazendas de caviar que exportam ovas de esturjão para a Ásia e os EUA, além do clube de futebol. Analistas internacionais estimam que até um terço do PIB da Transnístria esteja relacionado às atividades da Sheriff.

Acervo pessoal

Brasileiro se surpreendeu com estrutura de ponta

O zagueiro paraense Victor Oliveira estava no Joinville-SC quando soube que seu nome havia sido indicado para jogar na Moldávia. "Eu nunca tinha ouvido falar da Moldávia", ele lembra hoje, quatro anos depois, recém-saído do Santa Cruz. Conversou com amigos e digitou o nome do Sheriff no Google antes de se convencer a aceitar o convite.

Ao botar os pés na Transnístria, o canhoto formado no Atlético-GO teve duas surpresas. Primeiro com a sensação de ter feito uma viagem no tempo. "Os carros, os ônibus, era tudo muito velho, parecia que estávamos vivendo uns 10 anos atrás. Isso me assustou um pouco, digamos assim", conta.

A surpresa seguinte, em sentido inverso, veio quando ele conheceu as instalações do Sheriff. "O time tem três estádios, centro de treinamento, hotel, estrutura equivalente a clubes de ponta da Europa. É uma coisa surreal, meus olhos chegaram a brilhar."

O Sheriff se alimenta da força econômica da empresa. Apesar de se considerar de um país independente, o time participa da liga da Moldávia e se tornou, de longe, o primo mais rico do combalido campeonato local. Joga em um estádio de ponta, enquanto muitos dos rivais atuam em campos mais modestos. Em alguns aspectos, até amadores. Venceu o título 19 vezes em 26 participações. Se, por um descuido, o Sheriff fica em segundo ou em terceiro na tabela, os jogadores já começam a receber pressão da diretoria. Alguma vezes do próprio Viktor Gushan.

"Logo que cheguei, o time estava num período de transição de jogadores e técnico. Alguns resultados não aconteceram e ficamos algumas rodadas em segundo ou terceiro. Teve uma cobrança muito exagerada. Lá não tinha muito espaço pra ter calma. Ficar em primeiro e ganhar o título local não era mais que a obrigação."

Brasileiros no Sheriff

  • Cristiano Silva, lateral esquerdo

    Deu três assistências em dois jogos na Liga dos Campeões. Foi eleito o melhor em campo contra o Shakhtar.

    Imagem: Divulgação/Site oficial do Sheriff
  • Fernando Constanza, lateral direito

    Formado no Botafogo, cobrou o lateral que deu origem ao gol da vitória sobre o Real.

    Imagem: Divulgação/Site oficial do Sheriff
  • Bruno, atacante

    Com carreira toda fora do Brasil, teve gol anulado por impedimento na vitória sobre o Real.

    Imagem: Divulgação/Site oficial do Sheriff

Negócios obscuros fazem parte da política do "país"

No século 20, a região da Transnístria abrigou um imenso depósito de armas e munições da União Soviética. Depois da dissolução do país e por causa do frágil controle de fronteira entre o território e a vizinha Ucrânia, a Transnístria se tornou "o paraíso do contrabando" de armas, munições, cigarros falsificados e álcool, segundo a definição do jornalista Robert O'Connor, do site especializado "Foreign Policy".

"O crime e a corrupção abalam a Transnístria desde sua declaração de independência", escreveu o pesquisador Michael Bobick, da Universidade Cornell, dos EUA, que estudou a economia da região em 2012.

Por estarem longe da fiscalização dos órgãos de controle estatais, os negócios do Sheriff são vistos com desconfiança pelas autoridades e pela opinião pública da Moldávia

As autoridades de Chisinau, capital da Moldávia, não controlam de fato a Transnístria, e existem suspeitas ou acusações de que o clube é financiado por fontes obscuras, como contrabando de armas, cigarros e álcool. As autoridades não conseguem verificar de forma alguma a atividade de Viktor Gushan.

Anatolie Esanu, jornalista do "Ziarul de Garda"

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Depois de duas vitórias nas duas primeiras partidas da Liga dos Campeões, o Sheriff agora se prepara para enfrentar a Inter de Milão, fora de casa. Se chegar aos nove pontos, a equipe ficaria muito perto de conseguir se classificar ao mata-mata do principal torneio de clubes do mundo, o que seria um resultado sem precedentes para o futebol local.

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