Futebol em guerra

Jogadores brasileiros contam como é viver em meio ao conflito entre Armênia e Azerbaijão

Arthur Sandes Do UOL, em São Paulo Valery Sharifulin\TASS via Getty Images

Seria um treino comum em uma manhã qualquer em Vanadzor, cidade do norte da Armênia, se uma guerra não estivesse em curso a 300 quilômetros dali. Junior Marini, atacante do Lori FC e pai de uma bebê de oito meses, fazia o aquecimento em campo junto com os companheiros quando ouviu o assustador som de tiros e bombas. As explosões vinham de um outro tipo de campo de treinamento, este do exército, onde soldados armênios se preparavam antes de ir à fronteira com o Azerbaijão.

Um pouco mais ao sul, Ebert Cardoso, jogador do FC Van, não ouviu quando quatro drones azeris foram abatidos a cerca de dez quilômetros de sua casa, em Charentsavan. Eram quase 23 horas, e ele, a esposa e a filha de quatro anos ouviam música no momento da explosão. Só ficaram sabendo na hora de deitar, quando viram as notícias, e naquela noite foi difícil dormir.

Acostumado a ouvir músicas alegres no vestiário do Ararat-Armenia, o lateral Alemão precisou trocar a caixinha de som pelos fones de ouvido. Minutos antes de uma partida pelo Campeonato Armênio, um companheiro se aproximou e, em voz baixa, pediu para que ele desligasse o aparelho, pois estava de luto. Tinha perdido o pai na guerra.

A expectativa marcou os últimos meses de Tiago Galvão, atacante do Alashkert. Ele e outros três brasileiros moram no mesmo prédio em Yerevan, a capital armênia, e assim deram força um ao outro enquanto a guerra se desenrolava. Entre os quatro, um acordo claro no qual pensavam muito: se a situação piorasse, iriam embora na mesma hora.

Os quatro jogadores brasileiros relataram ao UOL Esporte a angústia de viver e jogar futebol em um país em guerra. A Armênia, onde eles moram, e o vizinho Azerbaijão guerrearam por seis semanas pela região de Nagorno-Karabakh, que é palco de conflitos há mais de 30 anos. De acordo com a contagem oficial, foram 5,8 mil mortos, incluindo 150 civis. Os países assinaram acordo de paz no começo de novembro, mas na semana passada já houve violações do cessar-fogo.

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A guerra por perto: drones, bandeiras e bombas

Alemão e Tiago Galvão jogam por clubes da capital Yerevan, por isso acompanharam de perto a efervescência política que a guerra causou e ainda causa na Armênia. Já Ebert e Junior Marini moram em outras cidades, onde a rotina também mudou, mas em menor escala e com sinais um pouco mais sutis. Para os quatro, o ponto em comum nos últimos meses foi a incerteza sobre o desdobramento do conflito, uma tensão que demorou a passar.

Mesmo estando a 300 quilômetros de Nagorno-Karabakh, a paisagem da capital mudou completamente. De vez em quando os aviões caça sobrevoavam a cidade. Outdoors com imagens de soldados passaram a ser comuns, assim como caminhões parados no mercado, onde eram abastecidos com comida antes de voltar ao front de batalha. E bandeiras, muitas, em toda parte. "Muitas mesmo", reforça Alemão.

No interior, a guerra era menos perceptível —mas talvez mais intimidante. Junior Marini ouvia bombas e tiros durante os treinos do Lori FC, cortesia de uma área de treinamento do exército que fica por perto. "Da primeira vez a gente assustou bastante", conta, como se a partir da segunda os jogadores já estivessem acostumados.

Todo dia passavam caminhões com bombas gigantes, um monte de soldados, tanques de guerra na rua... Para quem nunca vivenciou uma coisa dessas, é realmente assustador, nos deixou bem preocupados.
Junior Marini, jogador Lori FC

Para Ebert, a apreensão marcou mais do que o susto. "O dia mais tenso foi quando vieram quatro drones do Azerbaijão aqui para perto de casa, a dez quilômetros daqui. Nós não ouvimos, mas todo mundo do clube escutou o barulho. Foi o momento de maior tensão, ficamos muito assustados", afirma.

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Um país marcado pelo luto

Ao contrário da Igreja Católica Apostólica Romana, culto cristão mais tradicional no Brasil, a Igreja Apostólica Armênia tem entre seus preceitos um luto com duração de 40 dias —o karasoonk. Para um povo marcado há cem anos por um genocídio e agora envolvido em uma guerra devastadora, o luto ganha uma importância incomum em outros países. Os brasileiros que jogam futebol lá sentem o sofrimento no ar.

"Sentia os jogadores muito para baixo. E os funcionários do clube também", diz Alemão, que se preparou para os últimos jogos sem a caixinha de som dentro do vestiário. Alguns de seus companheiros perderam familiares, e o médico do Ararat-Armenia, o time dele, trabalha em um hospital que recebia feridos de guerra. "Dava para perceber que o cara estava sentindo demais essa situação."

A poucos metros da casa de Junior Marini, uma praça funciona como entreposto de doações e santuário. Ali os armênios arrecadam donativos para os refugiados da guerra e também homenageiam aqueles que se foram. "As fotos dos soldados continuam lá. São garotos de 18, 19 anos. As pessoas vão e acendem velas..."

Perto de onde a gente treina também tem uma capela, e todo dia tem funeral lá. Todo dia. Durante a guerra foram muitos, e nós víamos os ônibus chegarem cheios para as cerimônias.
Junior Marini, jogador do Lori FC

"Estava todo o mundo de luto. Os meninos do time iam treinar, e eu via na feição deles que não tinha mais aquele sorriso. Todos bem abatidos", relata Ebert, que, no entanto, percebeu uma mudança de postura ao decorrer da guerra. Com o tempo, o desânimo foi se misturando a um sentimento de vingança.

"Eu perguntava aos meninos [do clube] se eles iriam para a guerra, falava com o dentista, com alguém em um restaurante. Todos diziam que sim, para lutar pela família, pelo país. Diziam 'se eu tiver medo, a gente nunca vai ganhar a guerra'", conta o jogador. Um dos companheiros dele chegou a servir ao exército, mas o acordo de cessar-fogo foi assinado assim que o jovem chegou ao front.

Karen MINASYAN / AFP Karen MINASYAN / AFP
karen Minasyan/AFP

"Se a coisa apertar, vamos embora. Não tem conversa"

Os quatro brasileiros relatam que flertaram com a ideia de deixar a Armênia. Durante uma ou duas semanas, ainda no final de setembro, a necessidade de estar sempre alerta com as notícias da guerra foi virando insegurança.

Eles contam que os armênios em geral tentavam tranquilizá-los, pois o conflito dificilmente avançaria até a capital Yerevan ou as cidades próximas. É verdade que, por um lado, a guerra não se aproximava; mas por outro, também não terminava. "Eu tive vontade de ir embora, porque a situação poderia piorar. Acabou melhorando, mas poderia ter piorado, sim. Em uma hora diziam que a guerra estava para acabar, um pouco depois já estavam bombardeando de novo", conta Alemão.

A embaixada do Brasil na Armênia chegou a avisar os jogadores que, caso a situação piorasse, já tinha um plano de repatriação pronto para ser colocado em prática. "Entre nós, brasileiros, tínhamos muito claro: se a coisa apertar, vamos embora. Vamos embora e não tem conversa. Felizmente não precisou", diz Tiago Galvão, aliviado.

Com o passar dos dias, os vídeos da guerra divulgados nos telejornais e nas redes sociais fizeram a tensão aumentar. "Nós até evitávamos assistir ao noticiário. Se assistisse à TV o tempo inteiro, a vontade era arrumar as coisas e ir embora. Não tinha como ficar tranquilo", explica Junior Marini.

Já Ebert preferiu se apegar às notícias justamente para decidir o que fazer. "Todo o tempo eu estava olhando, atento. Se acontecesse qualquer coisa, juntava minhas coisas e me mandava", diz.

Arquivo pessoal

Brasileiro não contou a avó que país estava em guerra

Os conflitos naturalmente preocuparam as famílias dos quatro brasileiros, que, de longe, tentavam entender a complexa disputa entre Armênia e Azerbaijão. Ebert conta que seus pais ligaram várias vezes, pedindo para que ele voltasse para o Brasil. O rapaz, mesmo tenso com a guerra, respirava fundo e assumia papel tranquilizador para acalmá-los.

Em outubro, o jogador e a companheira Nathália decidiram que era hora de ela deixar o país com a pequena Antônia, a filha de 4 anos (foto). "Foi um ano muito difícil para elas, por causa da pandemia, depois a guerra. Então elas foram para os Estados Unidos. Para distrair um pouco, mas também por causa da segurança", conta. Ebert ficou sozinho, mas não se arrepende.

"Acho que fiz o certo. Se eu voltasse, como eles queriam, chegaria no Brasil desempregado e vendo meus amigos jogando. Ficaria mais triste do que na Armênia. Foi isso que pesou na época", recorda o jogador, que já está no Brasil para as festas de final de ano.

Na casa de Alemão, no interior de São Paulo, a avó do jogador até hoje não sabe da guerra no país em que o neto vive. "Escondemos a guerra da minha avó [Nadir, de 75 anos]. Meus pais ficaram muito preocupados, mas não contaram para ela. E também não vou contar agora, senão ela nem me deixa voltar", diz o lateral, permitindo-se brincar pela primeira vez após meia hora de entrevista. Ele também está no Brasil para o Natal e o Ano-Novo.

Alex McBride/Getty Images

Conflito na região já dura 32 anos

A disputa entre Armênia e Azerbaijão por Nagorno-Karabakh voltou ao noticiário no final de setembro, quando a região foi bombardeada mais uma vez. Os conflitos são comuns por ali há décadas, mas geralmente duram apenas alguns dias e não escalam para a guerra total. Neste ano foi diferente.

No passado, toda a região era controlada pelo Império Russo. Foi a queda deste Império, em 1917, que resultou na formação da Armênia e do Azerbaijão —e também na disputa por Nagorno-Karabakh. A desavença foi colocada em pausa enquanto os países compuseram a União Soviética (1922-1991), mas voltou com força total já na década de 1980.

A região é considerada importante para os dois países: a maioria da população é de etnia armênia, mas o território é reconhecido internacionalmente como azeri. Em 1988, os armênios de Nagorno-Karabakh aprovaram um referendo que pedia a saída do Azerbaijão. O movimento escalou para protestos nos dois países e logo culminou em um conflito armado.

A guerra deixou cerca de 20 mil mortos e obrigou 1 milhão de pessoas a abandonar suas casas. A Armênia venceu, ocupou Nagorno-Karabakh e outras partes do país vizinho, o que fez mais outras centenas de milhares de azeris deixarem estas regiões. Desde então o Azerbaijão planejou uma retomada e, neste ano, com forte apoio da Turquia e alguma influência da Rússia, voltou a controlar grande parte do território em disputa.

Um cessar-fogo foi assinado no último 9 de novembro, e o Azerbaijão declarou vitória. Na Armênia, parte da população se revoltou com a rendição. Ambos os países são acusados de bombardear áreas civis. Os números oficiais apontam cerca de 5,8 mil mortes, incluindo ao menos 150 civis, mas entidades internacionais acusam os dois governos de diminuir esses dados. Agora, mesmo com a presença de soldados russos nas fronteiras, já há relatos de violação do cessar-fogo.

"Essa guerra vai voltar um dia, porque não para nunca", opina o lateral Alemão. "Talvez não agora, porque os russos estão controlando o front, mas os países vão se reforçar e vai acontecer outra vez."

  • Jogador morreu em confronto aos 22 anos

    O jogador armênio Liparit Dashtoyán morreu aos 22 anos após deixar os campos para lutar na guerra com o Azerbaijão. "Dashtoyán entrou na lista dos heróis que deram suas vidas pelo país. Descanse em paz, soldado", escreveu seu clube, o Alashkert-2, da segunda divisão armênia.

    Imagem: Reprodução/FC Alashkert/Facebook
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Alexander Ryumin\TASS via Getty Images

Pandemia, guerra e inverno pararam liga local

O futebol armênio foi paralisado três vezes em 2020. A primeira por causa da pandemia do coronavírus, ainda no começo do ano; a segunda devido à guerra; e agora, mais uma vez, por conta do inverno rigoroso. Como acontece toda temporada, o hiato atual é o único que já estava programado, e os brasileiros aproveitam para passar as festas de final de ano no verão do país natal.

Ebert já está em Porto Alegre, onde moram os pais e o irmão Éverton Cardoso, que é atacante do Grêmio. Ele viveu um 2020 complicado na Armênia, incluindo mudança de clube e a solidão depois que a mulher e a filha deixaram o país. Juntando tudo, não tem vontade de seguir no país. "Quase certeza que eu não volto. Por motivos profissionais, para procurar algo melhor. Tomara que 2021 seja bem melhor", espera.

Outros dois brasileiros estão de férias no Brasil antes de voltar ao futebol armênio em janeiro. Alemão diz se sentir mais seguro em comparação com setembro ou outubro. Mesmo assim, admite que o retorno "não vai ser fácil". Já Tiago Galvão não vê mais problema porque "tudo está mais tranquilo desde o acordo de paz".

Junior Marini foi o único que não viajou ao Brasil. Ele e a companheira Rariana preferiram evitar que Olívia, a filha de oito meses, sofresse com a mudança de fuso horário. O jogador afirma que, apesar de tudo, "a família já se sente em casa" na Armênia.

Daniel Augusto Jr./Agência Corinthians

Atacante treinou com Tite e Zizao antes de sair do Brasil

Claudir Marini Jr. saiu de casa aos 13 anos para tentar ser jogador de futebol. Natural de Campo Grande (MS), o atacante se acostumou a viver longe de casa: passou rapidamente pelas categorias de base do Vitória e do Athletico-PR antes de chegar, ainda adolescente em 2006, no Corinthians, onde realizaria sonhos e viveria dias inesquecíveis.

Ele hoje adota o nome "Junior Marini", mas surgiu como Claudir. Começou no sub-14 do Corinthians e subiu até ser convocado pelo técnico do time de cima, Tite, para um jogo do Brasileirão. Mas se despediu sem ter entrado em campo como profissional.

"Na época não tinha muitos torneios de aspirantes, então depois dos 18 anos o jogador subia para o profissional ou saía do clube", lembra. O Corinthians mantinha uma parceria com o Flamengo de Guarulhos-SP para dar rodagem aos jovens, e Junior foi emprestado —mas não por muito tempo.

"Um dia, fizemos um coletivo contra o profissional do Corinthians. Eu entrei, treinei bem e fiz um golaço de fora da área", recorda, contando a atuação que lhe rendeu o chamado para treinar com o time principal. "Na hora que me disseram, eu não sabia o que falar, a voz travou. Estar no Corinthians já era um sonho de criança, e ir ao profissional... Foi inesquecível."

Era 2011, e a concorrência no Corinthians era dura. Junior Marini pertenceu ao clube até 2013, ora tentando espaço, ora emprestado a clubes menores. No Corinthians ele só foi relacionado uma vez, para um jogo contra o Cruzeiro em que o técnico Tite precisou lidar com 12 desfalques. Mas as atenções estavam todas em outro jogador.

"Foi o jogo da estreia do Zizao [chinês que estava no Corinthians], e o jogo foi praticamente todo para ele. Mesmo sem jogar, foi um dia muito marcante para mim", conta Junior.

Desde então ele rodou por alguns clubes do Brasil até sair para a Armênia em 2016. Depois Irã, Polônia, Israel e, neste ano, de volta à Armênia.

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