Prometo te fazer feliz

Soteldo conta ao UOL por que recusou grandes propostas para viver exatamente o que tem hoje no Santos

Gabriel Carneiro Do UOL, em São Paulo Ivan Storti

"Não é que pode ser o último jogo do Soteldo pelo Santos. É o último jogo do Soteldo pelo Santos."

A frase é do técnico Cuca, em 17 de outubro de 2020. Desde aquele dia, o venezuelano jogou 17 vezes pelo Santos e fez quatro gols — um deles no ângulo do Boca Juniors no jogo que classificou o time para a final da Libertadores.

Naquela época, a diretoria do Santos já tinha aceitado uma proposta do Al Hilal, da Arábia Saudita, e imaginava que Yeferson Soteldo e seus representantes também topariam porque os valores envolvidos eram altos. Cuca foi até avisado que o venezuelano estava fora dos planos, mas depois de poucos dias tudo mudou.

Economicamente era muito bom, eu sabia que era difícil recusar. Falava com meus representantes, minha esposa, 'o que fazer?'. Ou fico para tentar ganhar a Libertadores ou vou para ganhar dinheiro e praticamente esquecer do futebol. Conversamos e decidi que queria ficar, e depois do gol que eu fiz na semifinal contra o Boca vi que tinha dado certo ficar aqui e se Deus quiser que a gente possa terminar da melhor maneira."

Em uma de suas raras entrevistas exclusivas — desta vez para o UOL Esporte —, Soteldo se aprofunda nas razões que o motivaram a continuar no Santos e rejeitar os árabes, diz o que espera de seu futuro no mercado da bola após a Libertadores, desabafa sobre o que considera falta de respeito da imprensa esportiva com Santos e o significado desta final de sábado (30) contra o Palmeiras, no Maracanã.

Cada vez mais ídolo na Venezuela, cada dia mais habituado à cultura brasileira e fã dos "Barões da Pisadinha", o camisa 10 do Santos é um dos principais personagens desta histórica decisão.

Marcello Zambrana/AGIF

Veja a entrevista com Soteldo

"Soteldo não sai"

A proposta do Al Hilal não foi a única recusada por Soteldo em 2020. No começo do ano passado, o Atlético-MG ofereceu mais de R$ 50 milhões para tirar o atacante da Vila Belmiro. O Galo ainda contava com a pressão do Huachipato-CHI, time que tinha negociado o atacante com o Santos e dizia que algumas cláusulas não haviam sido cumpridas.

Soteldo não só negou a oferta, como ampliou o contrato com o Santos até 2023, com direito a um aumento — que não igualou o que os mineiros ofereceram. "Eu ganhei o carinho da torcida nesses momentos, quando decidi não ir para um clube ou outro e ficar aqui. Fazer as coisas com o coração vale a pena", diz o atacante.

A proposta do Al Hilal, em outubro, balançou mais que a do Atlético-MG. Tanto é que o Santos, afundado em problemas financeiros, pressionou o jogador de 23 anos a fazer o mesmo. Desta vez, além do coração, Soteldo se muniu de outros argumentos para ficar.

"Foi um momento difícil para mim, porque achei que estivesse muito jovem para ir para lá [Arábia Saudita]. Preferi ficar, não é o momento de ir. Queria ficar para jogar a Libertadores. Sabia que faríamos uma boa campanha e, graças a Deus, acho que deu certo. Na minha cabeça também passou que eu decepcionaria muita gente na Venezuela, porque sou um dos jogadores hoje que são referências, que o país vê com projeção de um dia irmos para uma Copa do Mundo. Foi a melhor decisão ficar aqui, porque competitivamente estou muito bem."

Marcello Zambrana/AGIF Marcello Zambrana/AGIF

Futuro? "Depois da final falarei"

O Santos acertou a compra de 50% dos direitos econômicos de Soteldo em janeiro de 2019 por cerca de R$ 20 milhões. Até hoje não pagou, o que provocou um processo na Fifa que hoje o impede de contratar novos jogadores.

A diretoria que deixou o clube em dezembro enxergava a venda do atleta para o Al Hilal como a chance de se livrar dessa dívida. Mas, como o jogador recusou, foi pensado um novo acordo: o Santos devolveria os 50% de Soteldo ao Huachipato, que o manteria emprestado ao Santos até que pintasse uma proposta de compra com garantias. Apesar de o Santos ter dado este acordo como certo, Soteldo também recusou.

Segundo apurou o UOL Esporte, um dos temores do estafe do jogador é perder a possibilidade de negociar livremente o seu futuro e sem pressões do time chileno — com quem a relação já não é das melhores. Além disso, a ideia é não prejudicar financeiramente o Santos. Por isso, o acordo não saiu do papel e muito provavelmente será descartado. O que não significa que o adeus de Soteldo, avaliado em 15 milhões de euros (cerca de R$ 97 milhões) não possa estar próximo...

Ainda não estou pensando em nada disso, em Europa, nada. Minha cabeça está metida no jogo. Depois, não sei, da final [da Libertadores], ou depois do Mundial se formos campeões, aí falarei o que vai acontecer".

Fernanda Luz/AGIF

Taça para calar a boca

Soteldo testou positivo para covid-19 em dezembro e foi desfalque do Santos nos jogos das quartas de final da Libertadores, contra o Grêmio. De casa, em isolamento, comemorou a classificação com um post ironizando prognósticos de favoritismo do adversário: "Falem agora."

Desde que eu cheguei aqui no Santos vi que não respeitam a história do Santos e têm que respeitar. É como eu falo: o Santos tem uma história muito grande, teve o melhor jogador da história do futebol e é isso que eu falo sempre, não respeitam. Acho que ficou chata essa coisa."

Os principais incômodos de Soteldo são as opiniões de jornalistas, que apontavam o Santos como candidato ao rebaixamento do Brasileirão e duvidavam que o time conseguisse passar da primeira fase da Libertadores. Uma nota deste próprio UOL Esporte com palpites dos blogueiros sobre o ano de 2020 para o Peixe viralizou porque apontava na direção de uma temporada fracassada.

"Quase todos os jornalistas do Brasil ficaram falando mal da gente, que a gente não ia fazer um bom torneio, que a gente ficaria na zona de rebaixamento. É bom porque estamos acostumados, já nos acostumamos a calar a boca de todo mundo. É uma satisfação para nós, pelas coisas que passamos no começo do ano. Se ganharmos essa final, para nós, será o melhor prêmio do trabalho e do sacrifício que fizemos."

Também duvidaram dele

Soteldo reconhece a tal falta de respeito com o Santos da posição de quem também já sofreu rejeição. No caso dele o percalço sempre foi a altura — o jogador só tem 1,60. São diversos os relatos de piadas preconceituosas e respostas negativas em testes antes mesmo de vê-lo jogar.

"Falavam que eu era muito baixo, que não podia jogar futebol, aí eu falei 'porra, acho que não vai dar certo'. Falei: 'mãe, não quero jogar mais'. Aí passaram quatro ou cinco meses e eu voltei, porque gostava muito [do futebol] e porque minha mãe falava que eu devia voltar. 'Pô, é difícil, mãe. Eu vou lá e falam que eu sou baixo'. Meu pai também me ajudou muito, falava 'vai, vai, vai', e um dia me voltou o foco", relembra.

Na época, sonhar alto era mais que uma ironia maldosa. Ele nasceu em uma região muito humilde da cidade de Acarigua, na Venezuela, em uma família de seis irmãos. Além das desconfianças em relação à altura, ele precisou enfrentar muito cedo os desafios da pobreza e as ameaças da criminalidade.

O que está acontecendo agora com o Santos, que falaram que ficaríamos na zona de rebaixamento, que não passaríamos da fase de grupos, eu digo que passei por isso com minha altura. Para mim é normal, e eu gosto, todos os caras gostam. É bom, porque depois de calar a boca deles para nós é muito bom. Acho melhor quando desconfiam de mim (risos)."

Soteldo, comparando a situação do Santos com a sua própria

Eu ficava na rua com uns amigos e hoje todos esses amigos estão mortos. Ficavam roubando, qualquer coisa assim, e isso [futebol] para mim já era meu mundo. Mas Deus me colocou num caminho, pude sair da minha cidade para Caracas e essa foi a salvação que eu tive para sair desse momento e dessas coisas que todos os dias aconteciam no meu bairro."

sobre salvação no futebol

Sebastiao Moreira-Pool/Getty Images Sebastiao Moreira-Pool/Getty Images
Reprodução

Os parabéns de Neymar

O sucesso de Soteldo em meio à campanha da Libertadores chamou atenção do camisa 10 do PSG, Neymar, destaque do Santos no último título da competição há dez anos. "Vamos meu Peixão! Soteldinho! Que golaço!", disse a estrela, em um post no Instagram, durante a partida contra o Boca Juniors. Depois do jogo, Neymar conversou por vídeo-chamada com o venezuelano, ainda no vestiário da Vila.

"Muito legal. No momento fiquei surpreso porque era o Neymar, né? Ele chamou, acho que foi o Alison ou Arthur, e começou a falar. Como ele comemorou meu gol eu falei 'pô, deixa eu conhecer o cara'. Pude conversar com ele, me deu parabéns pela classificação e foi muito legal conhecer."

Referência para crianças da Venezuela

Soteldo vive no Brasil com a mulher, Elianny, e os três filhos — Thiago, Rihanna e Oliver. Os pais e irmãos moram na Venezuela. Por isso, é impossível se distanciar das questões políticas e sociais da terra natal: "Mesmo que eu não quisesse saber nada de lá, com certeza ficaria sabendo. Graças a Deus, com a estabilidade econômica que tenho agora, posso ajudar muito minha mãe, e eles estão tranquilos. Mas é muito difícil as coisas que acontecem lá, dá vontade de chorar por tanta coisa, tantos meninos passando fome."

Ele também se sente, cada vez mais, um ídolo para as crianças venezuelanas e do futebol local. Titular da seleção nas Eliminatórias da Copa do Mundo do Qatar e representante do sonho de disputar o torneio pela primeira vez.

"Para mim é muito importante, mas também é perigoso, porque você tem os olhares de todas as pessoas e tem que fazer tudo bem feito, qualquer coisa ruim que você fizer dará um mal exemplo para as crianças, que são as mais me seguem. Desde criança eu sonhei com isso, em ser uma pessoa referência na Venezuela. É uma responsabilidade manter isso e fazer mais para continuar dando alegria para o meu país."

No Brasil há dois anos, Soteldo concedeu esta entrevista em português e disse que sente "praticamente em casa" no país. Um dos elementos que mais promove essa aproximação cultural é a música: "Sempre gostei muito dos Barões da Pisadinha, gosto muito, o ritmo é muito bom. Também funk, Léo Santana, Anitta, que também se escuta na Venezuela, Kevinho...".

Fernando Bizerra-Pool/Getty Images Fernando Bizerra-Pool/Getty Images

Pelo tetra, pela idolatria, pela família

Um dos sucessos dos "Barões da Pisadinha" que Soteldo tanto curte é a música "Investe em mim", do refrão: "Investe em mim, aposta tudo em mim; eu prometo te fazer feliz, eu prometo te fazer feliz." Quase um recado de um jogador que recusou duas grandes propostas em troca de viver exatamente o que vive hoje e consolidar-se como ídolo santista.

"É uma chance muito grande. O que falta agora é ganhar a Libertadores. E vamos fazer o possível para terminar todo esse trabalho que a gente fez, o sacrifício que a gente fez também, trazendo a Copa [Libertadores] para casa. Estamos trabalhando para isso e vamos fazer tudo o que estiver ao nosso alcance."

Um possível título continental também aumentará a família do jogador. Antes das semifinais da Libertadores, a esposa dele comentou uma foto no Instagram com um recado claro e direto: "Se você ganhar a Copa [Libertadores], eu te darei outra garota [filha]." E não era brincadeira, não.

"Eu venho pedindo isso a ela, que quero outro filho. Sempre nos falamos, mas foi uma surpresa quando ele comentou isso na foto que eu postei. Bom, agora tenho que fazer o possível para trazer a Copa para casa e poder ganhar outro filho (risos)".

"Amor, me faça esse favor", diriam os "Barões".

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