"Me chame de Pelé"

Fã do Rei, de música e calor brasileiros, Pia Sundhage quer levar seleção feminina ao inédito ouro olímpico

Talyta Vespa e Gabriela Brino Do UOL, em São Paulo Facebook/CBF

Pia Sundhage comanda a seleção feminina de futebol há pouco mais de um ano —tempo suficiente para que se apaixonasse por Alceu Valença, pelo sol e pelo calor. De português, ela manja pouco, mas, a barreira do idioma não tem sido empecilho para criar uma relação de intimidade com o time, regada à música, do jeito que ela gosta.

O foco principal da treinadora é a Olimpíada, título inédito para o Brasil, e o caminho trilhado até aqui é promissor: depois de uma sequência invicta em 2019, com seis vitórias e dois empates, a técnica sueca segue em alta em 2020, com apenas uma derrota para França em cinco jogos.

Ao desembarcar no Brasil, em julho de 2019, a sueca trouxe uma história intimamente ligada ao futebol. Ela nasceu em Ulricehamn, na Suécia, dois anos após a Copa do Mundo de 1958, que apresentou Pelé para o mundo, e cresceu jogando futebol com os garotos, na vila em que morava. Dos pais teve todo o apoio que precisava para seguir no esporte em uma época que o futebol feminino ainda nem engatinhava. E foi pela boca dos vizinhos que ouviu falar pela primeira vez da seleção brasileira, que derrotou a Suécia por 5 a 2 na final do Mundial, e de Pelé, de quem se tornou fã e se inspirou: "Eu queria fazer muitos gols também. Então, ora, me chamem de Pelé", brinca Pia.

Nesta entrevista, a treinadora comenta os bastidores da chegada à seleção brasileira —o que não passava pela cabeça dela nem no mais distante sonho—, o que fez para criar identificação com o time e as expectativas para a Olimpíada e para a Copa do Mundo. Pia também ressalta o tamanho do futebol feminino e comemora que, finalmente, ele tem sido visto da maneira grandiosa que deve.

Facebook/CBF

Recomeço pós-pandemia

Após a suspensão dos treinos e jogos e de um período de isolamento em sua casa na Suécia por conta da pandemia, Pia retomou os treinos com as atletas brasileiras no segundo semestre. Neste momento, a equipe está em férias depois de um período de dez dias de trabalho no Equador. "Tem sido desafiador esse recomeço, cada uma ficou em um canto, minha equipe também se separou. Mas estamos nos readaptando, felizmente, depois de tempos difíceis".

A treinadora avalia com alegria este período em que está à frente da seleção e relembra o convite para substituir o técnico Vadão após a eliminação brasileira na Copa do Mundo de 2019 diante da França.

"Começou com um boato. As pessoas me perguntavam 'você vai se mudar para o Brasil?'. E eu ficava 'mas do que você está falando?'. Porque eu treinava a seleção sub-16 na Suécia e era isso. Até que recebi uma ligação do Marco Aurélio Cunha, que falou sobre a vaga e me perguntou se eu tinha interesse. Eu disse que sim sem nem perguntar mais nada, porque se você recebe uma proposta do país do futebol, tem que dizer sim".

"Depois disso, conversei com meu chefe e disse que precisaria cancelar meu contrato na Suécia porque iria para o Brasil. Ele compreendeu, deu tudo certo".

Mariana Sá/ CBF

Trabalhar no Brasil: "Sonho distante"

Pia passou a maior parte da carreira de jogadora em times da Suécia — a exceção foi uma passagem pela Lazio, da Itália, em 1985. Já como treinadora, função que assumiu ainda quando jogava pelo time sueco Hammarby IF, entre 1992 e 1994. Se aposentou dos gramados em 1996 e a partir daí se dedicou exclusivamente ao trabalho no banco de reservas. Foi assistente em diversas equipes no país natal, e em 2000 embarcou para os EUA, onde três anos depois assumiu o cargo de técnica principal do Boston Breakers. Ainda teve uma passagem como assistente da seleção feminina chinesa em 2007.

No ano seguinte, Pia assumiu o cargo de técnica da seleção dos EUA de futebol feminino, equipe pela qual foi bicampeã olímpica e vice-campeã da Copa do Mundo. Em 2012, voltou para a Suécia para comandar a seleção feminina local. Apesar de todas as andanças no mundo da bola, Pia afirma que jamais tinha pensado em se mudar para o Brasil —nem em seu mais distante sonho.

Eu admirava o futebol disputado por homens e mulheres no Brasil. Sempre admirei a forma como jogavam, mas nem imaginava um dia estar à frente da seleção brasileira".

Primeiro, Pia terminou o trabalho que havia começado com a seleção sueca sub-16. Explicou aos jogadores —que ela treinava havia dois anos— que viveria um novo desafio profissional. Depois disso, quis ter certeza de quem seriam as pessoas com quem trabalharia no Brasil. "Decidi manter praticamente a mesma equipe, mas quis trazer um auxiliar sueco para que eu me sentisse confortável. Eu fui pensando em como jogar, com quem iríamos trabalhar, e só depois de fato fui resolver as questões práticas —tipo procurar um apartamento por aqui", afirma.

Mariana Sá/CBF

Equipe de qualidade, sol, calor e... Alceu Valença

Pia usa a palavra calor para descrever o Brasil. Não se refere apenas ao clima quente típico do verão, mas ao calor humano com que foi recebida pelo time. Taticamente, a qualidade da equipe não fica atrás. Ela explica que a alegria de morar no país e treinar a seleção brasileira vem com uma mistura de qualidades: uma equipe técnica muito boa, pessoas calorosas, sol e Alceu Valença. Ela virou fã do cantor pernambucano e até viralizou tocando no violão e cantando — em português com um sotaque carregado — uma versão de "Anunciação". A sueca também caiu no pagode e postou até um vídeo em seu Twitter dançando a música "Cheia de Manias", do Raça Negra, em um treino da seleção.

"Agora, na Suécia, está escuro. Ainda tenho meu apartamento em Estocolmo, e, por lá, os termômetros estão marcando -1 grau, algo do tipo. O sol nasce às nove da manhã e se põe às três. É muito diferente daqui, eu gosto do sol, do calor. Me sinto bem no Brasil".

Respeito e generosidade, explica a treinadora, são as chaves para criar um laço com um time novo. Ela sempre soube disso, e, mesmo sem saber uma palavra em português, se prontificou a aprender um pouquinho do idioma antes de desembarcar no Brasil. "É questão de dar o primeiro passo em direção ao que você quer alcançar e, também, ficar relaxado. Com foco e relaxamento, a gente desacelera e não coloca apenas pressão em cima das pessoas", diz.

Mesmo com os problemas de comunicação, já que Pia ainda não tem facilidade com a língua portuguesa, e com as grandes dificuldades que o futebol teve com a pandemia de coronavírus, o aproveitamento da treinadora à frente da seleção é de 75%.

É sobre dividi-las em grupos, propor coisas diferentes para que façamos juntas. Antes de qualquer técnica, é importante que elas se divirtam em campo --e isso eu aprendi com meus pais lá atrás. Me assegurei que elas entendessem, logo no começo, o que eu vim fazer e que tipo de jogo quero jogar. Passo a passo, temos melhorado e, agora, é muito divertido trabalhar com elas."

Pia Sundhage, técnica da seleção brasileira

Mariana Sá/ CBF

"Se divirta e não quebre nada"

Os pais de Pia não eram fãs de futebol. Os olhos deles não brilharam durante a Copa do Mundo da Suécia, em 1958, e a vitória brasileira por 5 a 2 sobre os donos da casa na final do torneio. Ainda assim, os ouvidos vidrados da então garotinha buscavam todas as informações sobre aquele evento cuja lembrança ainda era fresca na memória dos suecos.

Pia nasceu dois anos depois da Copa do Mundo. Quando criança, ouvia dos vizinhos que o torneio havia sido inesquecível e que o Brasil contava com um jogador muito bom, que fazia muitos gols, chamado Pelé. "Eu nunca tinha visto o Pelé jogar, eu só sabia que ele fazia muitos gols. Eu queria fazer muitos gols também, então disse: 'Me chamem de Pelé'", conta.

"Quando eu era criança, não existia futebol feminino. Mas meus pais eram muito inteligentes e disseram 'contanto que você se divirta, que se limpe e que não destrua nada, pode jogar futebol'. Eu sempre joguei com os meninos que, na vila em que eu morava, me achavam esquisita. Mas tudo bem. Eu era uma criança feliz", afirma.

Pia relembra que muitas colegas, diferentemente dela, não tinham permissão para jogar futebol. Pelo acolhimento da família e muita perseverança, ela, entretanto, jogou desde o colégio até a universidade; atuou em clubes e, aos 15 anos, foi convocada, pela primeira vez, para a seleção nacional, pela qual marcou 71 gols em 144 partidas.

Tive sorte porque encontrei treinadores que tiveram tempo para discutir futebol comigo, então eu aprendi sobre o esporte em si, e não só a jogar. Fui educada sobre futebol. Agora, tenho o nível de aprovação da Uefa, e isso é graças aos treinadores que gostavam de discutir futebol, que faziam questão de passar informação. Me sinto sortuda porque fiz parte do desenvolvimento do futebol feminino no mundo ?foi o esporte que me levou a vários países como Noruega, China, Estados Unidos e, agora, Brasil".

Pia Sundhage

Mariana Sá/ CBF

Machismo como base

Pia diz não ter enfrentado diretamente situações machistas no decorrer da carreira, mas concorda que a discriminação por gênero estava na base do esporte. Ela explica que os obstáculos como mulher atleta eram muitos e que era necessário provar a própria capacidade o tempo todo.

"Primeiro, a gente precisava de um lugar para jogar e esse lugar nos era dado sempre por último, porque as pessoas achavam que o que fazíamos não era importante. Depois, ouvíamos (de todos os lados): 'vocês são muitas, mas não amam jogar futebol'. E a gente amava! E esse grupo, inicialmente pequeno, começou a crescer e se tornar um movimento cheio de garotas que queriam jogar, de fato. E aí, é claro, eles disseram: 'É perigoso que vocês joguem futebol, afinal, é um jogo de homem'. Era uma afirmação sem qualquer base científica, apenas regada à emoção. Quando a gente, mais uma vez, confrontou esse pensamento, veio a última cartada: 'Vocês não são boas o suficiente'".

"Esse último argumento era o mais difícil de rebater, porque, pense, qual é a base da comparação? Quem são esses homens para dizerem que o futebol masculino é melhor que o feminino? E foi esse espaço que a gente cavoucou até, de fato, galgar. O futebol feminino não é importante só para o esporte, mas para a sociedade. Pode ser o futuro de muitas meninas que buscam espaço. A igualdade é necessária".

Mariana Sá/ CBF Mariana Sá/ CBF

Mulheres que levantam mulheres

Segunda mulher no comando da seleção feminina brasileira (a primeira foi Emily Lima), Pia acredita que as atletas ficaram mais contentes em serem dirigidas por uma figura competente do que pelo fato de ela ser mulher. E, por levantar a bandeira da igualdade, faz questão de montar uma equipe de auxiliares mista, com mulheres e homens. "Preciso de gente especializada em diversos assuntos. De jovens, de velhos, de todos os tipos de pessoas. O que eu mais gosto na minha equipe é a diversidade".

"Se essas atletas tiverem bons treinadores, quando se aposentarem, se transformarão em ótimas treinadoras. E olha que maravilhoso vai ser para o futebol feminino se elas continuarem no esporte, se forem generosas e compartilharem seus conhecimentos?", projeta.

"Quando comecei a jogar, meu primeiro jogo internacional foi em 1975, a gente não era reconhecida. E foi assim por muito tempo. Eu sei como é não ser reconhecida. Cada geração foi lutando por esse reconhecimento e deixando um legado para a geração seguinte. Quando estive aqui pela primeira vez, confesso que não vi tantas mulheres na CBF. Mas, agora, vejo. Portanto, há uma palavra muito importante: mudança, e parece que o Brasil abraçou a mudança. Porque se você é um verdadeiro amante do futebol, não importa se são mulheres ou homens jogando, jovens ou velhos, você vai apreciar um bom jogo. Você enriquece se também disser sim ao futebol feminino".

Expectativa para Olimpíadas

Adiados para o ano que vem, os Jogos Olímpicos são o principal foco da treinadora atualmente. Caso a pandemia de coronavírus, que assolou o planeta, esteja sob controle, o torneio vai acontecer no segundo semestre de 2021, no Japão. O Brasil ainda não conquistou o ouro nas Olímpiadas: foi prata em Atenas (2004) e em Pequim (2008).

"Temos um bom plano tático. Existem jogadoras jovens que ainda têm chance de fazer parte das 18 atletas que serão convocadas para o torneio. É um campeonato difícil, com poucos dias de descanso entre os jogos, e, assim que você chega às quartas de final, tudo pode acontecer. Agora, o foco é treinar e se manter saudável, em forma, para chegar ao meio do ano com tudo. Vou dizer que estou realmente ansiosa para as Olimpíadas".

E de Olimpíada, Pia entende muito bem. Enquanto a seleção brasileira bateu na trave duas vezes e conquistou as medalhas de prata em Atenas (2004) e Pequim (2008), Pia já foi campeã da competição duas vezes com as meninas dos Estados Unidos, em Pequim e em Londres, quatro anos mais tarde. Na Olimpíada do Rio, em 2016, a treinadora ainda conquistou a medalha de prata com a seleção do seu país, após eliminar o Brasil na semifinal.

Quando o assunto é Copa do Mundo, outro título que falta à coleção de troféus das meninas do Brasil, Pia recua. Diz que ainda é cedo para pensar no mundial, mas que tem certeza da grandiosidade do evento, que acontecerá em 2023, na Austrália e na Nova Zelândia. "A Copa do Mundo de 2019 mostrou que o futebol feminino é muito popular. E, certamente, no próximo campeonato, essa popularidade vai estar ainda maior".

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