Aqui tem futebol

Flamengo de São Pedro, no interior gaúcho, une sonhos de indígenas e agricultoras no campeonato estadual

Marinho Saldanha Do UOL, em Porto Alegre Darlan Vídeos/Flamengo de São Pedro

O esporte é uma ferramenta poderosa. Não apenas para emocionar torcedores, mas como instrumento de inclusão. No interior do Rio Grande do Sul, o Flamengo de São Pedro é exemplo disso. Com orçamento restrito e muitos sonhos, o clube de futebol feminino integrou a comunidade de agricultores e indígenas através da bola.

Com sedes nos municípios de Tenente Portela, Derrubadas e Três Passos, na região noroeste do Estado, a equipe conta com 62 mulheres no elenco, 12 delas indígenas da reserva do Guarita, onde vivem cerca de 7 mil índios da etnia kaingang. Além disso, dois membros da comissão técnica também são do povoado: o treinador do sub-16, Guilherme Pereira, e o preparador de goleiras, Angel Sales.

O grupo é reforçado com agricultoras da região e também por atletas que já passaram por outras equipes de futebol feminino.

"Temos atletas que trabalham na roça toda semana e vêm para os treinos nos fins de semana. Atletas que viajam seis horas para treinar e jogar conosco, temos jogadoras de 30 municípios da região, jogadoras com passagem pelo Inter, que disputaram Libertadores feminina", conta Ildo Scapini, dirigente do clube.

O time disputa o Campeonato Gaúcho pela primeira vez, como convidado, e tem uma história repleta de superação e esperança. Desafiando forças como o Inter, a equipe do interior faz treinos via WhatsApp, reúne metas individuais de sucesso no futebol e o sonho coletivo de ganhar para "andar de avião".

Darlan Vídeos/Flamengo de São Pedro
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Pandemia, peneiras e integração

O idealizador do clube é o professor Ildo Scapini, de 60 anos. Dono de uma franquia do Genoma Colorado (escolinha de futebol do Inter) na região, ele ficou com os equipamentos após o fim das atividades da unidade e nunca desistiu do esporte. Mas, a ideia não foi tão bem aceita no início.

"Ainda tem muito machismo aqui na região. No primeiro treino veio uma atleta. No segundo eram três. Hoje são 62, o que nos deixa muito feliz", contou.

Em razão da pandemia de covid-19, a participação em torneios começou apenas recentemente, mas o crescimento foi rápido a partir da integração. "Nossa ideia sempre foi essa, de unir, de o esporte conseguir dar uma oportunidade para todas."

Para formar o elenco, Ildo venceu a relutância tanto dos povoados indígenas como da sociedade local, realizando "peneiras", sempre com o objetivo social em mente.

"A integração com elas é muito bonita. Nos treinamentos elas levam as famílias, dão de mamar para os filhos nos intervalos, as crianças ficam brincando durante os treinos, todos juntos", vibrou.

Campanha no Gauchão Feminino

  • Vice-lider da chave

    Com uma vitória, um empate e uma derrota, o Flamengo de São Pedro é vice-líder do Grupo B do Gauchão Feminino. Dois times avançam para a próxima fase.

    Imagem: Darlan Vídeos/Flamengo de São Pedro
  • Vitória, empate, derrota

    São quatro pontos até agora. Vitória contra o Elite, empate com Juventude e derrota para o Inter, rival do próximo jogo, na capital.

    Imagem: Darlan Vídeos/Flamengo de São Pedro
Darlan Vídeos/Flamengo de São Pedro

Sonho é seguir carreira

O trabalho de seleção das meninas contou com a proximidade dos membros da comissão técnica que são indígenas. Angel Sales, preparador de goleiros, vibra com a oportunidade e sonha em trabalhar em um clube da Série A.

"Eu trabalho desde cedo na minha comunidade, e esta oportunidade apareceu quando o Ildo foi fazer a seleção das meninas indígenas. Me indicaram na comunidade. O Ildo precisava de interessados em trabalhar", contou. "O futebol nos proporciona muitas coisas boas, e é hora de nós indígenas mostrarmos que também temos capacidade de estar em uma comissão técnica."

"Estamos sendo inspiração para todos os outros da nossa comunidade. Quero seguir como treinador de goleiras, quem sabe um dia trabalhar numa equipe de Série A do Campeonato Brasileiro", acrescentou.

O mesmo serve para Giza Proença (na foto acima). Centroavante de 25 anos, ela vê na chance de atuar no Flamengo a oportunidade de construir carreira no futebol.

"Estou correndo atrás de um sonho. Desde criança sempre quis jogar num clube como o Inter, quem sabe na seleção brasileira. Pretendo viver do esporte e estou correndo atrás", completou.

Mãe de Oliver, de 10 anos, ela acumula funções e dribla as dificuldades impostas pela vida como quem passa por defensores em campo.

Para nós é uma experiência única. Aqui onde moramos foi a primeira vez que tivemos oportunidade em um peneirão feminino. Estamos muito felizes de representar a etnia kaingang. É um feito grandioso.

Giza Proença, atacante do Flamengo de São Pedro (RS)

Darlan Vídeos/Flamengo de São Pedro Darlan Vídeos/Flamengo de São Pedro

Entre a atividade rural e o futebol

Entre a lida rural e o campo de futebol. Essa é a vida de Cíntia Griep. Aos 34 anos, ela mora em São Miguel do Oeste, em Santa Catarina, e concilia o trabalho na propriedade da família com os jogos pelo Flamengo.

"A gente consegue algum tempo trocando alguns finais de semana, moro com meus pais, minha irmã, todos me ajudam", contou.

Zagueira da equipe, ela se diz honrada com a oportunidade de disputar o Gauchão e luta para dar atenção aos treinos na rotina corrida de quem trabalha nos mais diversos serviços, como criação de gado leiteiro, plantações e maquinário.

"Nós treinamos sozinhas, fazemos nossa parte, eu comecei a fazer academia para estar melhor fisicamente e consigo jogar durante a semana, porque os treinos do Flamengo são só nos fins de semana, e os jogos também. É complicado seguir carreira por causa da minha idade, tenho filho, família, pensar em largar tudo é complicado. Mas enquanto eu tiver a chance, vou jogar."

A integração de públicos tão diferentes também anima a atleta. Ainda que o contato não seja tão próximo, compartilhar culturas tem contribuído com a equipe. "Não tínhamos ainda conversado mais, até o domingo quando elas nos falaram umas palavras na língua delas, mostraram alguns rituais, foi muito interessante. É muito bom conhecer outras culturas", acrescentou.

Divulgação/Flamengo de São Pedro

Treinos via WhatsApp e respeito

Ainda amadoras, as jogadoras do Flamengo não têm disponibilidade para treinar todos os dias. O time se reúne apenas nos finais de semana, jogando no município de Três Passos, algo que dificulta um ritmo mais forte. Mas, segundo Tiago Rodrigues, treinador da equipe, o trabalho individual organizado via WhatsApp tem causado efeito.

"Treinamos uma vez por semana, e isso é atípico. É novo e difícil de fazer um trabalho. A maioria das atletas são mães, têm outros empregos", explicou. "Mas contornamos isso com treinos complementares. Cobramos muito que elas treinem por conta. Temos um grupo de WhatsApp, e elas treinam três vezes na semana, registram e mandam ali. Assim temos atingido os resultados."

Segundo o técnico, o respeito aos comportamentos e o perfil cultural de cada uma das atletas têm sido importantes nos bons resultados conquistados até agora.

"Para mim, essa integração é bastante tranquila, há muitos indígenas na nossa região. Trabalhei numa escolinha com 90 alunos em que 20% eram indígenas", relatou. "É difícil ver um indígena numa equipe de futebol ou estafe. É muito importante isso que o Ildo (Scapini) faz de sociabilizar, dar chances para todos."

"O que eu mais tentei implementar foi a união. Quando cheguei, as indígenas tinham prioridade. Elas ficavam mais no grupo delas, é da cultura deles serem mais fechados, e temos que respeitar isso. Mas fomos unindo o grupo, integrando todas, e hoje em dia elas estão juntas, conversando integradas mesmo", assegura o treinador.

Nossa meta é ficar em terceiro, conseguir uma vaga na Copa do Brasil e realizar o sonho de andar de avião. Muitas das meninas não conhecem um hotel, uma hospedagem, uma alimentação diferente. Colocamos na cabeça delas que cada uma tem que jogar por duas para termos condições de competir com quem treina todos os dias.

Ildo Scapinni, dirigente do Flamengo de São Pedro, sobre o objetivo final no Campeonato Gaúcho

Darlan Vídeos/Flamengo de São Pedro

Orçamento anual de R$ 15 mil

O Flamengo de São Pedro sofre para conseguir se manter. Nenhuma das jogadoras recebe salário ou qualquer tipo de auxílio. A motivação: a oportunidade de jogar futebol num campeonato da Federação Gaúcha de Futebol. O orçamento anual do clube é de R$ 15 mil, em verba cedida pela prefeitura de Derrubadas.

"Colocamos o apelido de Gurias do Yucumã em razão da maior cachoeira longitudinal do mundo, que é aqui da nossa região: o Salto do Yucumã. E elas são embaixatrizes do turismo", contou o dirigente Ildo Scapini. "Eu argumentei que estava tirando meninas que poderiam estar nas ruas, na prostituição, que estava integrando agricultoras, os povos indígenas, e a prefeitura nos apoiou."

O dinheiro serve para pagar os profissionais da comissão técnica, e Scapini não fica com nada. A dificuldade é tamanha que o primeiro jogo de bolas utilizado nos treinos precisou ser comprado de modo alternativo. E recentemente a condição melhorou graças a doações da FGF.

"As primeiras bolas compramos no mercado paralelo, nos camelôs mesmo, custaram R$ 15, vieram do Paraguai. Mas a coisa foi melhorando graças à força coletiva do nosso time. Nossas jogadoras gostaram, formamos uma grande corrente."

Independente de indígena ou não, agricultora, temos que unir o grupo. Vai jogar quem estiver melhor, ir aos treinos é importante, ser de grupo. Trabalhar com mulheres é bem melhor do que com homens. Homem tem muita vaidade, ego, mulheres se unem por um objetivo.

Tiago Rodrigues, técnico do Flamengo

Arquivo Pessoal
Angel Sales, Ildo Scapini, Tiago Vargas e Guilherme Pereira (da esquerda para direita) - a comissão técnica do Flamengo de São Pedro

Esposa de dirigente lava a roupa do time

Ildo Scapini é quem, empolgado, tem a história do clube na ponta da língua. O professor de matemática é membro da comissão técnica, dirigente, dono das camisas, idealizador e basicamente tudo da equipe.

É pouco? Com dois livros publicados e mais de 40 anos trabalhando no ensino, ele ainda faz vídeos e fotos do time, e até já participou do "Se Vira nos 30" do antigo Domingão do Faustão.

"Me chamam de cientista maluco por tudo que eu faço. Já fiz muita coisa", sorri.

E não é só ele que trabalha pelo clube. A esposa também tem sua função. Todos os uniformes do time são lavados na casa de Ildo, e quem cuida é ela.

"Minha esposa lava todos os uniformes, todo mundo é voluntário. A gasolina que gastamos é paga de forma voluntária. É tudo doação ao time. Agora começamos a pegar alguns patrocínios para pagar as despesas. Mas ganhamos roupas de uma empresa, e entre uma ajuda e outra vamos levando."

Darlan Vídeos/Flamengo de São Pedro Darlan Vídeos/Flamengo de São Pedro

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