Messi maior que Maradona?

Craque da Argentina está a uma partida de superar idolatria gerada pelo melhor jogador da história do país

Tales Torraga e Thiago Arantes Do UOL, em São Paulo e Barcelona Lee Smith/Reuters

Cravado no coração de Buenos Aires, o Obelisco é bem mais que um cartão-postal. É também um termômetro que mede o "calor das massas" de uma das capitais mais apaixonadas do mundo. E foi lá, na última terça-feira (13), que o torcedor da seleção argentina viveu uma noite de glória comparável às comemorações pelos títulos das Copas de 1978 e 1986.

A maré azul e branca registrada em helicópteros e drones rapidamente suscitou a análise nas TVs e rádios argentinas: a adoração popular que desperta a seleção de Lionel Messi já é igual à equipe de Diego Maradona em 1986 e 1990, quando o craque carregou o time a duas finais seguidas em Copas do Mundo, ganhando a primeira e perdendo a segunda.

Vivendo horas de extrema apreensão, reforçando o consumo de café, mate e cigarros, os argentinos estão prestes a deixar para trás as décadas de veneração a Maradona para enfim embalar nos braços o nascimento do maior ídolo da história do futebol do país.

Messi está muito perto de conseguir. Ao lado de Maradona no imaginário argentino ele já está, como mostra o UOL a partir de agora. Conseguindo vencer no domingo a França de Mbappé ("Mbappelé", como chamam os portenhos), ele deixa para trás também toda e qualquer desconfiança sobre sua rebeldia, sua liderança, sua "argentinidade".

Como canta o sucesso repetido sem parar pelos fanáticos no Qatar: "Na Argentina nasci, terra de Diego e Lionel". Sempre "e". Jamais um "ou" outro no coração azul e branco.

Luis Robayo/AFP

A rebeldia dos gênios da bola

A individualidade de Messi ajuda muito, como ajudava Maradona. Lionel está mais sóbrio, está muito bem, está rebelde para encontrar o desequilíbrio quando o jogo não aparece.

César Luis Menotti, técnico campeão da Copa de 1978

Gabriel Bouys/AFP Gabriel Bouys/AFP

Par perfeito

Lionel Messi corre e abraça seu xará, o técnico Lionel Scaloni. A química entre os dois é antiga. Scaloni era o lateral-direito reserva da seleção de 2006, aquela com a qual Messi estreou em Copas. Agora, em seu último Mundial, Scaloni é um surpreendente e capacitado técnico, aquele que montou um time capaz de correr e suar por Messi, que retribui com suas pinceladas de gênio, como a já histórica assistência para o gol de Julián Álvarez contra a Croácia.

"Messi sempre foi um líder agregador, um jogador positivo que contribuía para a hierarquia grupal", analisou ao UOL o ex-goleiro Sergio Goycochea. "A rebeldia que a torcida argentina pedia a ele em comparação a Maradona jamais havia ultrapassado as barreiras do treinador. Foi assim com Alejandro Sabella na Copa de 2014, no Brasil, quando a Argentina chegou à final. E tem sido da mesma maneira agora com Scaloni no Qatar."

A simbiose entre Maradona e Carlos Bilardo nas Copas de 1986 e 1990 foi muito mais controversa. Até hoje paira na Argentina a suspeita de que ambos envenenaram o capitão Daniel Passarella, desafeto da dupla em 1986. E até hoje muita gente torce o nariz ao lembrar Maradona rindo e debochando na TV, admitindo que picou soníferos e entregou na água ao lateral brasileiro Branco na Copa do Mundo de 1990.

"O gol de mão contra a Inglaterra caiu no gosto do fanático como a vingança perfeita pela Guerra das Malvinas", analisou Fernando Signorini, histórico preparador físico de Maradona. "Mas sempre disse a Diego que aquele era um gesto antidesportivo condenável e irresponsável, que poderia resultar na anulação, expulsão e queda na Copa do Mundo com uma arbitragem mais atenta."

Até por isso muitos gostam de destacar a obediência e a disciplina de Messi para jogar e não tumultuar. "Na comparação com Maradona, ele é um exemplo de conduta que Diego, mesmo com uma perna esquerda de outro planeta, jamais alcançou", reforçou o ex-jogador da seleção Diego Latorre, hoje um dos principais comentaristas da ESPN argentina.

Twitter/Caniggia
Maradona e Caniggia sempre tiveram ótima relação

Amigos para sempre

Por muito tempo, ouviu-se na Argentina que Maradona e o atacante cabeludo Claudio Caniggia formavam uma dupla similar àquela que o Brasil teve com Pelé e Garrincha. Complementares dentro e fora de campo, Maradona e Caniggia chocaram os argentinos com comemorações irreverentes que incluíam até "selinhos" quando ambos jogavam pelo Boca Juniors.

Em meio a tudo isso, houve seguidos casos de doping, ambos por cocaína, de Maradona em 1991 e Caniggia em 1993, quando jogavam na Itália. A dupla jurava que se tratava de uma vingança por tirar a Azzurra da Copa de 1990.

As parcerias de Messi jamais chegaram a este nível explosivo.

Hoje ele é muito ligado a Rodrigo de Paul, o volante que atua como realmente um "cão de guarda" para o camisa 10 brilhar e ser uma referência tranquila também a pais e mães, que olham para ele como um exemplo que a turbulência de Maradona não foi capaz de oferecer.

"A explosão de Messi como capitão vem agora, aos 35 anos", analisou César Luis Menotti, técnico campeão com a Argentina em 1978. "Maradona foi o líder e o capitão argentino mesmo quando ele não era o mais veterano do grupo, algo que acontece agora com Messi. Sua longevidade e alto nível em avançada idade provam toda sua disciplina."

Molly Darlington/Reuters Molly Darlington/Reuters

Estrelas de rock

A construção do mito Messi está em andamento, enquanto Maradona edifica a cada dia uma idolatria que já carrega praticamente quatro décadas. É por isso que Diego goleia Messi em um ponto específico: na quantidade de músicas dedicadas a ele.

Do rock ao quarteto, do pop à cumbia, é possível armar diversas coletâneas apenas com a as proezas de Maradona em formato musical.

Messi ainda está a caminho. Talvez a música mais conhecida a seu respeito na Argentina seja "Zurda de cristal", "Canhota de cristal", da banda de rock Cruzando el Charco, mas não há nenhum sucesso que se compare, por exemplo, ao "La Mano de Dios" que a própria seleção argentina escolheu para entrar em campo no Qatar, narrando toda a garra de Maradona para superar sua infância miserável e sua vida turbulenta.

Outro bom termômetro para medir a paixão dos fanáticos é a quantidade de tatuagens. É extremamente comum na Argentina que o apaixonado tenha desenhos, assinaturas e outras imagens alusivas a Maradona. É extremamente provável que Messi chegue lá.

Até o seu "Que olha, besta?", destinado ao holandês Weghorst virou um sucesso nos estúdios argentinos, mostrando que a Messimania em formato de desenho na pele está apenas começando, e que uma conquista de Copa neste domingo vai render trabalho extra para todos os tatuadores do país.

Cruzando El Charco - Zurda De Cristal

A comparação entre os craques

Messi está mostrando o caráter que sempre teve, mas agora faz de uma maneira muito mais visível. Ele mostra que tem um jogador de potrero [bairro, várzea] dentro de si. Ele está 'maradoneando' nesta Copa.

Jorge Valdano, campeão com Maradona em 1986 e hoje comentarista

Messi sem dúvidas tem o mesmo peso de Maradona. Ele não vai ser mais ou menos que Maradona, ganhando ou perdendo a Copa do Mundo. Ele já está na história, entre os cinco maiores, e cada um que arme sua lista.

Jorge Burruchaga, campeão com Maradona em 1986 e hoje comentarista

Messi reformulou seu jogo e está com a energia de quem joga unicamente pela glória. Ele está brilhando também porque seus filhos estão aí, vendo-o jogar. É o melhor de todos os tempos, o Federer argentino.

Hernán Crespo, ex-atacante da seleção argentina e hoje técnico de futebol

Números de Maradona e Messi em Copas

Gary Hershorn/Reuters

Diego Maradona


PARTICIPAÇÕES - 4 (1982, 86, 90 e 94)*

JOGOS - 21

FINAIS - 2 (1986 e 1990)

TÍTULOS - 1 (1986)

* Participou também da Copa de 2010 como técnico

Divulgação/Fifa

Lionel Messi


PARTICIPAÇÕES - 5 (2006, 10, 14, 18 e 22)

JOGOS - 26 (contando a final de domingo)

FINAIS - 2 (2014 e 2022)

TÍTULOS - ?

Lee Smith/Reuters

Das cinzas vieram

Era 1985. Em um Monumental de Núñez lotado e gelado, a Argentina sofria para empatar com o Peru e garantir vaga na Copa do Mundo de 1986. A torcida vibrava com Daniel Passarella, zagueiro e herói daquela jornada. Maradona foi praticamente ignorado, e só ganhou a confiança do torcedor na Copa de 1986.

Em 2011, Messi passou por situação pior. Na Copa América jogada na Argentina, ele foi vaiado em Santa Fé pela apatia demonstrada no 0 a 0 com a Colômbia. E o que é pior: no vestiário, esteve perto de trocar socos com o zagueiro Burdisso, pelo mesmo motivo.

Tanto Maradona quanto Messi viveram montanhas-russas com o torcedor argentino, e ambos também chegaram a desistir da ingrata tarefa de ser o ídolo máximo do país.

Maradona disse que se retirava da Argentina depois de perder a Copa do Mundo de 1990 para a Alemanha. Tinha apenas 29 anos. Voltou aos gramados em 1993, jogou duas partidas da Copa do Mundo de 1994, nos Estados Unidos, e acabou expulso do Mundial por um doping positivo por uso de efedrina.

Messi também disse "basta" ao perder uma final, para o Chile, em 2016, quando tinha os mesmos 29 anos de Maradona em 1990. O astro, porém, voltou atrás em muito menos tempo, apenas um mês e meio, convencido pelo então técnico Patón Bauza.

Caso venha o título no domingo, o feito vai coroar uma volta por cima que poucos imaginavam quando ele retomou a tarja de capitão ouvindo muitos pedidos, de imprensa, torcedores e ex-jogadores, que queriam a sua saída definitiva, algo que ele foi conquistando aos poucos.

AFP

Erguendo um país e uma seleção

Entre Maradona e Messi há um laço argentino que também merece uma maior consideração. "Maradona representava o futebol em campos de barros e chuteiras pretas, e ajudou a reconstruir a imagem da Argentina como país depois de toda a crueldade deixada pela ditadura militar e pela Guerra das Malvinas, ocorrida em 1982", comenta o seu biógrafo, o jornalista Daniel Arcucci.

"Messi significa a redenção da seleção argentina, que perdeu sete finais seguidas (quatro com ele em campo) antes de finalmente sair da fila de 28 anos sem títulos, com a Copa América do Maracanã, no ano passado, contra o Brasil."

A discussão entre qual a maior idolatria entre os dois perante os argentinos merece outro dado em consideração. Quando Maradona conquistou a Copa de 1986, a população argentina era de 30 milhões. Hoje ela é quase 60% maior: 47 milhões, de acordo com o censo que ainda está sendo finalizado.

"Maradona, por exemplo, jogou no Argentinos Juniors, no Boca Juniors e no Newell's Old Boys, e foi técnico do Racing, e era visto eufórico na arquibancada e no seu camarote na Bombonera. Ele é um símbolo argentino de uma maneira diferente de Messi. No fundo, são dois destinos para o mesmo lugar, que é a gratidão do fanático", reforça o também biógrafo de Maradona, Ernesto Cherquis Bialo.

"Messi não nutriu tais raízes argentinas. Ele se mudou para Barcelona quando tinha 12 anos, e mesmo tendo a opção de jogar pela seleção espanhola, optou por defender a Argentina que está a 90 minutos de se despedir com o título máximo do futebol mundial."

"Há 'igrejas' para demonstrar toda a adoração por Maradona, tudo bem, mas é questão de pouco tempo para que surjam iniciativas semelhantes ligadas a Messi. Duas características do mundo moderno da tecnologia são a adulação e a mobilização. As redes certamente já costuram algo neste sentido", comenta Daniel Perrer, professor do Centro de Investigações Estéticas da UBA (Universidade de Buenos Aires).

"É só ver como ele está mobilizando torcidas mundiais em países tão distantes da Argentina como Índia, Bangladesh ou Indonésia. Messi transcende a Argentina em um nível semelhante ao papa Francisco."

Por cima

Messi, de fato, confirmou que, seja qual for o resultado, o jogo de domingo contra a França será sua despedida em Copas, o que confere um tom ainda mais emotivo para decisão.

Além de valer uma Copa que a Argentina não conquista desde 1986, a consagração pode representar um ponto final maiúsculo raramente visto no esporte mundial, em qualquer modalidade.

No futebol, vale lembrar que a eterna comparação entre Pelé e Maradona, para ficar apenas em dois nomes, não conta com tal desfecho.

Pelé conquistou o tri no México em 1970 e jogou pelo Brasil pela última vez em 1971. Maradona vestiu a camisa argentina pela última vez em 1994, oito anos depois de ganhar o mundo no México em 1986.

E Messi pode "sair por cima", algo que tornaria ainda mais difícil sua comparação com qualquer outro nome — e depois de toda a história de superação que marcou a sua vida e sua relação com o torcedor argentino.

Futebol para a eternidade

Quando Diego morreu, apareceu o Messi da atualidade. O Messi que carrega os companheiros e a maior responsabilidade, como fazia Maradona.

Victor Hugo Morales, histórico narrador da rádio e TV

Messi não é o melhor jogador da história. Da atualidade, sem dúvida, mas da história, me parece exagerado. A história é muito longa.

Ángel Cappa, ex-técnico argentino

Entrevista com Sebastian Fest

O jornalista argentino Sebastián Fest conhece Lionel Messi como poucos. Além de ter acompanhado o auge da carreira do camisa 10 nos tempos de Barcelona, escreveu um o livro "Ni Rey, ni Díos" ("Nem Rei, nem Deus", em português), uma biografia não-autorizada (e polêmica) sobre o craque em 2013.

UOL Esporte - Seu livro chama "Ni Rey, ni Díos", mas um título da Argentina na Copa do Mundo transformaria Messi em uma santidade no país. Está preparado para mudar o nome da publicação?
Sebastian Fest - Messi não será um Rei, porque isso é coisa de Pelé; também não será um deus, porque isso é coisa de Maradona. Mas será possível dizer que é o melhor da história? Talvez sim. Então acho que estamos diante de um fenômeno, do melhor jogador da história.

Além da questão dos números, um título mundial colocaria Messi no mesmo nível de idolatria que Maradona?
O que Messi tem feito é diferente: Maradona sempre marcava a diferença entre os bons jogadores e os de nível inferior. Ele sempre tinha alguma frase, alguma crítica ou de ironia excessiva. Isso você jamais encontrará em Messi. Ele é um elemento de união: não se enfrenta com ninguém (menos com o holandês que chamou de bobo), nem entra em discussões políticas. Messi não vai se proclamar a favor de Che Guevara, nem de Fidel Castro, nem de Bolsonaro. Ele joga futebol, e pronto.

Na iconografia argentina, qual é a diferença entre Messi e Maradona?
A diferença é que Maradona é o ídolo que exalta a argentinidade extrema. Essa argentinidade sofredora, batalhadora, conflitante. É tensão, com algo ou com alguém. Maradona era um jogador brilhante, mas também agônico. Tudo o que ele conseguia era com uma carga de dramaticidade. Messi não tem isso, e talvez isso tenha jogado contra ele. Parecia fácil fazer o que ele fazia. Maradona representa uma Argentina que hoje já não existe tanto: ele cresceu na pobreza, mas tinha um grande vocabulário, um domínio da língua, da gramática, da comunicação. Messi é muito mais básico.

E qual é a grande diferença futebolística entre os dois?
O que Messi está fazendo aos 35 anos é o que Maradona poderia ter conseguido na Copa de 1994, com 34 anos, mas não conseguiu. Naquela Copa ele teria a sua volta por cima, mas depois foi provado que o desempenho era fruto de substâncias proibidas -- e aquele gol contra a Grécia é a imagem disso. É um Messi diferente: mais sólido, menos explosivo, mas com uma inteligência, uma sabedoria e uma habilidade com os pés que chama muito a atenção. Nesse sentido, Messi chega à reta final da carreira com um nível muito mais alto que o de Maradona, e isso é produto da regularidade: faz 18 anos que Messi está jogando em alto nível, enquanto Maradona teve uma carreira mais de altos e baixos, mas muitas idas e vindas do inferno.

Mariana Nedelcu/Reuters Mariana Nedelcu/Reuters
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