A última curva

Fangio tinha Senna como filho, e tragédia do brasileiro fez argentino cair na agonia e morrer um ano depois

Tales Torraga Colunista do UOL Paul-Henri Cahier/Getty Images

Hoje é 1º de maio, data eternizada pela morte de Ayrton Senna. É difícil encontrar quem não se lembre onde estava naquele domingo do GP de San Marino de 1994. Como milhões em todo o mundo, o pentacampeão Juan Manuel Fangio assistia à corrida ao vivo - estava em Buenos Aires, na casa de amigos, um costume que terminaria exatamente naquela manhã. "É fatal", disse, com sua habitual voz baixa, ao olhar para a TV quando os primeiros socorros eram prestados ao brasileiro ainda na área de escape da saída da curva Tamburello.

Conhecida em todo o mundo, a amizade entre Senna e Fangio guarda poucos registros, mesmo neste 2021 de tanta informação. Até os quilométricos obituários reservam escassos parágrafos para a relação. A biografia mais completa sobre o piloto brasileiro, "Ayrton, o Herói Revelado", com suas 640 páginas de fôlego do autor Ernesto Rodrigues, traz apenas seis breves remissões a Fangio.

Para preencher esta lacuna, o UOL Esporte publica neste 1º de maio o resumo da investigação mantida durante anos na Argentina em jornais, revistas, rádios, portais e TVs, além de entrevistas com parentes, amigos e jornalistas próximos a Fangio. O resultado esclarece como o "bom velhinho" argentino e o jovial brasileiro trocaram entre si a sabedoria e vitalidade necessárias para fazer da diferença de idade de quase 50 anos uma bem-vinda aliada na paixão mútua pelas corridas.

Esta história recebia seus contornos finais há exatos 27 anos. Em Ímola, com a chocante morte de Senna. Em Buenos Aires, quando Fangio sentou-se pela última vez para ver uma corrida de carros, razão da sua vida que, tal qual o mundo o conheceu, terminaria de certa forma também ali.

Paul-Henri Cahier/Getty Images
Reprodução

A amizade sai dos boxes

Mecânico obcecado que virou piloto e lenda da Fórmula 1, com cinco títulos mundiais (1951, 1954, 1955, 1956 e 1957) por quatro equipes diferentes (Ferrari, Mercedes, Maserati e Alfa Romeo), Fangio tinha um olhar clínico para avaliar pilotos e máquinas para a revista argentina El Gráfico dos anos 1930 em diante.

Em junho de 1984, ele apareceu na publicação em uma foto erguendo o braço de Niki Lauda e Alain Prost, campeão e vice daquela temporada. A imagem era da corrida de carros de turismo organizada pela Mercedes para a inauguração do traçado curto do circuito de Nurburgring, onde Fangio em 1957 faria, no percurso longo, a corrida da sua vida - e onde em 1984 conheceria Ayrton Senna. O brasileiro acabara de completar 24 anos. Apertou a mão direita do argentino (de 73) e escutou: "Agora vi porque falam tão bem de você". Senna ganhou de ponta a ponta a corrida festiva que reunia grandes nomes da F-1 de então. O segundo colocado, por exemplo, foi Lauda, 1s3 atrás.

Senna e Fangio levaram quase três anos para se reencontrar. O dizimado autódromo de Jacarepaguá ficou famoso por ser uma das únicas pistas do mundo a receber corridas de F-1, F-Indy e do Mundial de Motovelocidade. Outra história torna a pista ainda mais especial. Foi ali, nos abafados e caóticos boxes do GP do Brasil de 1987, que Juan e Ayrton estreitaram a relação que mantinham. Bem de passagem, é verdade. Senna estava focado na abertura da temporada e Fangio pilotaria promocionalmente o Mercedes W196 do seu título de 1955.

Sem o calor do Rio e o sufoco de uma abertura de temporada, Senna e Fangio se entenderam de vez em 1989. Na quinta-feira anterior ao GP do México, ambos conversaram tranquilamente em uma entrevista conjunta da Marlboro. Três dias depois, celebraram juntos a vitória do amigo em comum Emerson Fittipaldi, ganhador das 500 Milhas de Indianápolis pela primeira vez.

Sedutor - um verdadeiro "Don Juan" - e capaz de prender atenção de interlocutores tão variados como o escritor Jorge Luis Borges, o comendador Enzo Ferrari e o comandante Fidel Castro, Fangio logo cativou Senna. O brasileiro estava com 28 anos e já campeão do mundo, sem a inclemente pressão que sempre se impôs - e sem se encolher demais diante de uma lenda de tamanha envergadura. Fangio tinha 77 anos. "Juan percebia que Ayrton se cobrava demais e relembrava alguns erros que cometia, dando risada, para ver se aquilo ajudava Senna a ser menos exigente consigo mesmo", contou a sobrinha Ethel Ruth Fangio, a "Pipí", que morou com Juan e cuidou dele até os últimos dias. Pipí morreria em 2016.

Ela também relatou seguidos telefonemas de Senna a Fangio no fim daquele 1989. Foi a famosa diplomacia de Fangio que ajudou Ayrton a apaziguar a raiva a Jean-Marie Balestre (presidente da FIA) e Alain Prost ao perder aquele campeonato.

A temporada de 1990 contou com dois novos encontros entre os dois. Fangio cumprimentou Senna pessoalmente por sua vitória em Mônaco, e Ayrton reverenciou o argentino em público erguendo seu braço na Austrália na foto que reunia outros campeões mundiais. Era o GP de número 500 da história da F-1.

Pascal Rondeau/Getty Images

"Fiz o que você mandou"

Fangio completou exatos 80 anos no meio da temporada de 1991. E nem a idade avançada o impediu de viajar para os GPs de San Marino, México e Itália. Continuava como embaixador da Marlboro, e suas aparições serviam para apertar os laços com a Ferrari (era ídolo da escuderia) e para ver Senna, patrocinado pela mesma tabagista.

Senna pediu para Fangio subir ao pódio e lhe entregar o troféu da vitória naquele GP de San Marino de 1991, mas o argentino recusou por respeito à torcida da Ferrari - ainda mais depois do vexame de Alain Prost (rodou na volta de apresentação) e Jean Alesi (bateu na segunda volta).

O esforço do pentacampeão octogenário foi retribuído pela visita de Senna assim que a temporada terminou. Mesmo antes de chegar ao Brasil, ele desembarcou em Buenos Aires. Passou uma noite no Hotel Sheraton, onde jantou com Fangio por três horas, em um encontro eternizado pelo repórter argentino Enrique Moltoni, do Canal 9, único a registrar uma entrevista dos dois juntos. A íntegra da matéria está no YouTube.

Moltoni morreu em 2016 e era muito próximo a Fangio. Em uma das conversas com Juan, soube que naquele encontro o argentino sugeriu a Senna parar de correr. Não de maneira direta, mas com toda a sutileza que lhe caracterizava. Afinal, Ayrton conquistara três títulos em quatro anos, e o desgaste a partir dali seria brutal. Parar de correr era algo impensável para Ayrton, que preferiu levar a conversa para o tricampeonato: "Juan, fiz exatamente o que você mandou".

Jorge Araújo/Folhapress

Ayrton queria Juan na festa do penta

Senna e Fangio ainda se encontrariam em Buenos Aires em 1992 e 1993 - neste último jantar, o brasileiro revelou ao argentino que gostaria de contar com sua presença na cerimônia de um eventual quinto título seu. Ayrton já estava acertado com a Williams. Sonhava em ganhar os campeonatos de 1994 e 1995. A temporada de 1995 terminou em 12 de novembro. Nem Fangio e nem Senna estariam vivos.

Bem antes disso, entrou para a história o encontro no GP do Brasil de 1993. Convidado pela Brahma, Fangio foi levado ao pódio para entregar o troféu a Ron Dennis, chefe da McLaren (a taça de Senna foi dada por Paulo Maluf).

Ayrton desceu do topo do pódio e abraçou Fangio apertado por exatos 13 segundos. Foi o gesto público que melhor embalou o carinho entre os dois. Na volta a Buenos Aires, o argentino contava feliz aos amigos: "Ayrton me disse que desceu do pódio porque ninguém merecia ficar acima de mim".

Abaixo, a torcida invadia a pista para comemorar a vitória. Na transmissão da Globo, um emocionado Galvão Bueno exclamava que "Senna estava nos braços do povo". Dos braços do povo aos braços de Fangio. É provável que aquela tenha sido a tarde mais feliz da vida de Ayrton.

Pascal Le Segretain/Sygma via Getty Images

O adeus a Ayrton

Prestes a completar 83 anos, Fangio em 1994 organizava sua semana para ter o domingo livre para ver os GPs de F-1 com amigos. O pentacampeão vivia no histórico apartamento da rua Guatemala, no bairro de Palermo Viejo, em Buenos Aires. Sem destino fixo, cumpria a mesma rotina de milhares de fãs ao redor do mundo: até de madrugada, escolhia a casa de alguém da turma para acompanhar o duelo entre Senna e o alemão Michael Schumacher, "o Senna de anos atrás", nas palavras do próprio Juan.

Há 27 anos, Fangio estava na capital portenha com mais quatro amigos na casa de Alfredo Safe, hoje diretor do Museu Fangio. O GP de San Marino foi transmitido ao vivo para a Argentina pela Telefé, com narração de Fernando Tornello e comentários de Felipe McGough.

A batida de Senna logo na sétima volta gerou apreensão dupla. Pelo estado de Ayrton e pela saúde de Fangio, que lidava com problemas no coração (desde um enfarto em 1971) e seguidas sessões de hemodiálise (desde 1990). Ao ver o acidente e o socorro, o argentino, petrificado, vaticinou aos amigos que a batida era fatal, e pediu para voltar à sua casa, onde foi recebido pela sobrinha, em choque pela batida e por ver Juan naquele estado.

A sobrinha Pipí nos anos seguintes revelou que: 1) Fangio acompanhou pelo rádio o noticiário no restante daquele domingo, e que ela não confirmou a morte de Senna temendo alguma complicação na saúde de Juan. Só na segunda-feira pela manhã, ao ler os jornais, Fangio teve maior dimensão da tragédia; 2) O pentacampeão jamais voltaria a ver F-1 pela TV. Na noite daquela segunda, em entrevista à rádio Mitre, eternizou uma das suas mais célebres frases: "Morreu meu sucessor".

Depois daquele 1º de maio, Fangio também parou de dirigir. Deixou de ser visto na sucursal da Mercedes-Benz da Avenida Libertador, perto do estádio do River Plate. Também deixou de lado a concessionária que levava seu nome na Avenida Montes de Oca, no bairro de Barracas.

Recluso, mal deixava o quarto, e só recebia visitas em sua sala depois de muita insistência. A única exceção foi Stirling Moss. Concorrente e amigo na F-1 dos anos 1950, Moss voou de Londres a Buenos Aires só para vê-lo. Passaram 16 horas seguidas falando sobre os bons velhos tempos.

Universal Images Group via Getty Images

O adiós a Juan

Os parentes de Fangio concordavam que ele "não queria mais viver" no final de 1994. O corpo já acusava o desgaste da retirada de um tumor benigno dos rins, da hemodiálise que relutava em cumprir e outras complicações no intestino, no pulmão e no sangue. Duas enfermeiras e sua sobrinha Pipí se revezam nos cuidados em sua casa.

Quando a Fórmula 1 voltou à Argentina em 1995, a Mercedes pediu que seus pilotos, Mika Hakkinen e Mark Blundell, pudessem vê-lo. Juan já não recebia ninguém, mas abriu uma exceção. O argentino estava sentado na poltrona de sua sala quando os pilotos chegaram e se ajoelharam no chão. Cada um segurou uma mão e ninguém disse nada, tamanha a emoção. As lágrimas corriam pelo rosto de Juan.

Estávamos em abril. Fangio alternava períodos de meses de internação com semanas em casa. Em uma espécie de despedida, passou seu aniversário de 84 anos em junho com a família no apartamento de Palermo. Menos de um mês depois, em 17 de julho, morreu às 4h10 da manhã em uma clínica, por uma parada cardiorrespiratória.

Seu enterro em Balcarce contou com a presença de Jackie Stewart e Stirling Moss, que saíram da Inglaterra às pressas e voltaram para a Europa assim que o funeral terminou. "Era o maior de todos", comentou Stewart ao documentário Fangio, do Netflix, uma competente síntese sobre a carreira e vida do argentino.

Se Senna foi o "filho das pistas" que Fangio teve, vale demais conhecer Algo del Antiguo Fuego ("Algo do Antigo Fogo"), um livro-reportagem que narra em 167 páginas, pela badalada editora Tusquets, como foi a vida dos três filhos não-reconhecidos pelo pentacampeão, cuja paternidade só foi comprovada com os testes de DNA entre 2016 e 2018. A obra foi lançada em 2019 pelo jornalista argentino Miguel Prenz.

Não temo a morte. Se a gente percebesse que um dia não vamos estar mais aqui, seríamos melhores com os outros. Com toda certeza

Juan Manuel Fangio, em frase publicada pelo jornal Clarín no dia seguinte à sua morte

Arquivo Folha

O "cantinho sagrado"

Inaugurado em 22 de novembro de 1986, o Museu Fangio, em Balcarce, sua cidade natal, guarda a mais interessante coleção de carros de corrida do continente. Joias como a "Flecha de Prata" (Mercedes W196 da década de 1950) estão exibidas em um espaço surreal para uma cidade campestre, de pouco mais de 40.000 habitantes - quatro vezes mais do que quando Fangio vivia ali, nos anos 1930. Fica a 400 quilômetros de Buenos Aires e é destino obrigatório para quem gosta de corridas (excelente sugestão para comemorar a volta das viagens pós-pandemia).

O museu conta com oito andares. No quinto, chamado de "Amigo, ídolo e mestre de todos", há o "cantinho sagrado" que guarda uma foto gigante de Fangio e Senna em 1991, com a dedicatória de Ayrton quando estiveram juntos em 1992. Do brasileiro há também réplicas de capacetes, macacões e miniaturas. E o McLaren MP4/3 original pilotado por Senna nos testes para a temporada de 1988 - aquele modelo híbrido geraria o MP4/4, vencedor de 15 dos 16 GPs daquele ano.

Perto dali estão a Renault de Alain Prost e a Brabham de Jack Brabham, entre outros carros históricos da F-1 e de outras categorias. O espaço conta sempre com a presença de parentes de Fangio dispostos a detalhar a amizade do pentacampeão com Senna.

Juan e Ayrton estavam eternizados também na estátua dos dois na entrada de outro museu, no circuito de Donington Park (Inglaterra), onde Senna venceu um GP de F-1 em 1993, ultrapassando quatro adversários na primeira volta, com a pista molhada. O espaço foi extinto em novembro de 2018.

Um brasileiro e um argentino na escultura de um circuito da Inglaterra, berço do automobilismo. Eis a perfeita dimensão dos dois.

Reprodução

Pinceis e quadrinhos

Fangio ganhou em 1995 uma criativa homenagem póstuma do Senninha, personagem dos quadrinhos criado um ano antes pelo publicitário Rogério Martins e pelo desenhista Ridaut Dias Júnior.

Nas histórias para crianças até nove anos, o Senninha é jogado para fora da pista e precisa consertar o carro. Para isso, é ajudado pelo próprio Fangio (um simpático senhor que trabalha como mecânico em Balcarce). A história se desenrola por 12 páginas e tem a persistência e a amizade como mensagens. O exemplar foi às bancas em julho daquele ano, custando R$ 1,95. Era o número 17 da atração.

Outra homenagem das artes à amizade entre Fangio e Senna vem da pintora argentina Daniela Montensano, que expôs uma tela sua com os dois no Museu Fangio. "Tento levar para o meu traço a paixão que eles tinham pelas máquinas", diz.

Esmerados na síntese, os leitores argentinos alimentam diariamente a famosa intelectualidade portenha nas seções de cartas dos jornais de Buenos Aires. E uma dessas cartas, assinada por Ricardo Aimar no "La Nación" do dia seguinte ao funeral de Fangio, reproduz o inconsciente coletivo que predomina entre os argentinos ao falar das lendas da velocidade:

Senna e Fangio não morreram, só estão agora uma volta na nossa frente.

Pascal Rondeau/Getty Images Pascal Rondeau/Getty Images

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