Onde estiver estarei

Christian morava no contêiner do Flamengo; hoje sua namorada quer realizar o sonho que ele deixou pelo caminho

Adriano Wilkson Do UOL, no Rio de Janeiro

Subúrbio

No pé do morro da Congonha, no Rio de Janeiro, em uma rua de casas simples em que crianças andam descalças e de cueca e todos os vizinhos se conhecem pelo nome e se reúnem nas tardes de calor para comer churrasco ou ouvir música, vivia o goleiro Christian Esmério. Em novembro do ano passado ele tinha 15 anos e sonhava em assinar seu primeiro contrato de trabalho.

Em muitos aspectos, Christian se confundia com a maioria dos garotos de sua idade: não gostava muito de estudar, o que deixava sua mãe angustiada, e passava a maior parte do tempo livre grudado no celular, atualizando seu Instagram, enviando memes aos amigos pelo Twitter, dando tiros no Free Fire, o jogo do momento, ou vendo vídeos do Whindersson Nunes no YouTube. Mas em outros aspectos, Christian era completamente diferente da maioria.

Para começar, media 1,92 m, o que o fazia parecer muito mais velho do que realmente era. Alto e esguio, tinha as pernas ligeiramente tortas e a língua ligeiramente presa, o que o impedia de pronunciar corretamente palavras como "três" ou "trabalho" e rendia chacotas que ele respondia com um meio sorriso. Estava em casa apenas nos fins de semana porque de segunda a sexta vivia no alojamento do Ninho do Urubu, o centro de treinamento do Flamengo, onde tinha chegado quando completou apenas 13 anos.

A altura, a agilidade e um senso de dedicação que todos reconheciam como fora do comum renderam a Christian destaque nas categorias de base do clube de futebol mais popular do país. No dia 10 de novembro de 2018, na final do Estadual, pegou um pênalti contra o Fluminense e se tornou o herói do título. Times do exterior já o monitoravam.

Mesmo sabendo que o filho tinha futuro no esporte, sua mãe, Andréia Oliveira, tentava convencê-lo a levar a sério também os estudos porque ela sabia que o futebol era incerto e não queria ver o filho depositar todos os seus ovos em uma única cesta.

"Meu plano A é o futebol e, se não der certo, meu plano B é o futebol também", dizia o goleiro quando sua mãe ponderava sobre suas escolhas de carreira.

Sua determinação tinha ainda outra motivação. Desde muito cedo, Christian conviveu com o abandono do poder público em um estado falido e com as consequências da guerra entre as facções de narcotraficantes que dominavam os morros da região de Madureira, na zona norte do Rio.

Sua casa sofria com frequentes faltas de água e de energia elétrica, e, quando os tiroteios se intensificavam no bairro, ele precisava desviar de barricadas montadas pelo tráfico para chegar até o ponto do ônibus que o levaria a Vargem Grande, na zona oeste da cidade. Muito mais alto do que a média dos adolescentes, cansou de ser abordado e revistado rispidamente pela polícia, mesmo que nunca tivesse se metido em nada de errado.

Com o tempo, começou a alimentar o sonho de ganhar dinheiro para tirar a mãe, o pai e os três irmãos daquele mundo que ele amava e temia ao mesmo tempo. Em março de 2019, quando fizesse 16 anos, estaria apto a assinar o primeiro contrato profissional com o Flamengo.

"Ele não sabia quanto ganharia, mas me disse para ver a possibilidade de comprar uma casinha longe daqui", contou o pai, Cristiano Esmério.

Igreja

Christian sentiu a necessidade de se reconectar com Deus, de quem havia se afastado por causa da rotina intensa de treinos. Começou a frequentar a Igreja da Restituição Ministério Laivv, cujos fiéis, moradores do bairro, se reuniam em um salão espartano, sob um telhado de zinco e sentados em cadeiras de plástico branco.

Durante uma reunião, o pastor pediu para uma das garotas da igreja subir ao altar e dar um testemunho. Miúda, dona de olhos grandes e simpáticos, a menina tinha o cabelo encaracolado e aparelho nos dentes. Contou sobre como havia estudado bastante naquele ano, o que havia garantido o privilégio de ser aprovada ainda no terceiro bimestre do ano letivo. Falou sobre a expectativa de passar em processos seletivos de escolas técnicas concorridas e explicou sobre a importância da dedicação aos estudos. Articulada, não mostrou o nervosismo esperado de uma adolescente falando em público. Estava acostumada, até porque a igreja tinha sido desde sempre sua segunda casa.

"É com essa menina que eu vou casar", teria dito Christian a um amigo, conforme relataria depois.

Na semana seguinte, enquanto vendia trufas na cantina da igreja, o rapaz trocou olhares com a menina estudiosa, mas não foi imediatamente correspondido. Descobriu que Anna Julya Serravale era neta do casal de pastores que comandavam a igreja e fez de tudo para encontrá-la nas redes sociais. Quando descobriu seu perfil no Instagram, começou a flertar curtindo suas fotos antigas. Foi curtido de volta, mas levou dias para tomar coragem e mandar uma mensagem.

Escreveu "Oi Julya" e apagou, achando muito formal. Escreveu "Oie", mas também apagou: muito informal. Buscou um meio-termo e se saiu com um "Oi Ju". Ao receber um "Oi Chris" de volta, comemorou como se estivesse defendido aquele pênalti no Fla-Flu. Resolveu jogar um verde esperando colher maduro:

"Qual seu sonho?", perguntou a Julya, conforme ela lembraria três meses depois.

"Ser oficial da Marinha", ela respondeu. "E o seu?"

"Casar com uma oficial da Marinha."

Julya achava essas tiradas bobas, mas se encantou com o estilo espontâneo e engraçado do garoto popular, cobiçado pela maioria das meninas da igreja e do bairro. Quando Christian deixou seu número de telefone para que eles migrassem a conversa para o WhatsApp, ela demorou alguns dias para adicioná-lo.

"Se você quiser mesmo alguma coisa comigo", Julya dizia a Christian, "vamos ter que fazer do jeito certo." O jeito certo para ela consistia em um protocolo que ela havia aprendido ainda menina. Os dois precisavam orar bastante, pedindo a Deus uma confirmação sobre a relação que queriam construir. Eles também tinham que entrar em jejum até que a confirmação divina acontecesse. Julya parou de comer doces e beber refrigerantes e sucos, e sempre perguntava a Christian se ele já tinha feito suas orações ou se tinha recebido alguma confirmação.

Para ela, a confirmação veio de duas formas. Primeiro, teve um sonho em que Deus dava o aval para a relação. Quase ao mesmo tempo, uma amiga de sua mãe, que não sabia que ela conversava com Christian, a abordou dizendo coisas como "Falei com Deus e ele me disse que você pode seguir em frente naquilo que você perguntou a ele."

Mesmo assim, Julya fez Christian aguardar por quase um mês antes de aceitar encontrá-lo pela primeira vez a sós. Combinaram de ver um filme no shopping de Madureira. Antes do cinema, disputaram partidas naquelas mesas de Air Hockey e ele ganhou roubado, segundo ela. Depois do filme, ele tentou roubar um beijo, mas ela negou.

"Ele dizia pra gente que a Julya era uma menina diferente de todas as outras que ele conhecia", conta Andréia, a mãe do goleiro, que não disfarçava certo ciúme em relação ao filho caçula. Christian já tinha tido um namoro frustrado, às escondidas, e agora tentava fazer tudo diferente. Chamava a mãe para participar de ligações por vídeo com Julya e deixava as duas sozinhas conversando. "Você vai adorar a sua nora linda", ele dizia a Andréia.

"Sei que eu vou, mas me dá um tempo", respondia a mãe, com voz chorosa. "Ela vai levar meu príncipe embora!"

Praia

Christian conquistou os pais de Julya antes mesmo de ganhar o coração da garota. As famílias se conheciam do bairro, mas se aproximaram ainda mais no final do ano. O goleiro conversava com o pai de Julya sobre futebol e carros. Recebeu dele aulas de direção. Cativou a mãe com sacadas divertidas na igreja e se transformou no "filho que eu nunca tive", conforme dizia aos amigos.

Na virada do ano, foi convidado pelo casal a passar o réveillon em São Pedro da Aldeia, uma cidade praiana na Região dos Lagos. Os quatro viajaram no mesmo carro: Thiago e Tatiane na frente, Christian e Julya atrás. No meio do caminho, Christian mexeu nos bolsos e se perguntou em voz alta: "Será que vai caber?"

Julya não entendeu nada, mas seus pais começaram a rir. "Acho que não, hein?", provocou Tatiane. O rapaz então tocou o dedo anelar de Julya como se o medisse e ao mesmo tempo revelou a aliança de compromisso que ele havia mandado fazer. "Você aceita viver o resto da vida comigo?", ele perguntou. Julya disse que sim e eles se beijaram pela primeira vez.

Contêiner

Goleiro dos mais talentosos de sua geração, Christian teve férias curtas e no dia 13 de janeiro se apresentou à seleção brasileira para um período de treinos na Granja Comary, o centro de treinamento da CBF, em Teresópolis. Nas redes sociais, postou uma foto na frente do ônibus da seleção e se disse realizando um sonho de infância.

Ele tinha começado a jogar bola muito novo. Inspirado pelo ex-goleiro do Flamengo Bruno Fernandes, trocou os pés pelas mãos e foi atuar embaixo das traves. Começou no futsal e passou pelo Madureira, o time do bairro, onde forjou uma amizade para a vida inteira com Samuel Thomas Rosa, que mais tarde viraria zagueiro.

Christian e Samuel foram juntos ao Flamengo, viajavam juntos para campeonatos em outros estados e dormiam juntos no contêiner em que o clube alojava seus jogadores das categorias de base, no Ninho do Urubu. Acostumaram-se ao dia a dia de adolescentes atletas, dividindo-se entre treinos puxados, a escola e viagens de ônibus pelo país. Matavam a saudade de casa enviando fotos e vídeos para a família.

Neles, o time sub-15 do Flamengo aparece cantando e brincando no alojamento. Em uma gravação que Christian enviou a Julya depois de uma sessão de treino, ele está no contêiner e canta a música "Na Nossa Sala", de Thiaguinho:

"Vou conseguir a nossa casa. Tô correndo porque o tempo passa."

No Twitter, Christian publicou duas fotos ao lado do pai, Cristiano, o grande incentivador de sua carreira esportiva. A primeira, de 2009, mostra o garoto com provavelmente cinco anos, segurando um troféu ao lado do pai, que carrega uma medalha no pescoço. A segunda, dez anos depois, mostra os dois na frente do ônibus da seleção, Christian com a camiseta de jogador do Flamengo. "Todo sacrifício será recompensado, meu coroa", escreveu o jogador na legenda.

No segunda-feira, dia 28 de janeiro, Christian estava de folga e voltou para casa para surpreender a namorada com as flores que ela mais gostava e um quadro que ele tinha mandado fazer a partir de uma foto do casal na praia. O vídeo do momento foi publicado no Twitter com a legenda: "Feliz 0.1 pra nós. O primeiro de muitos, meu amor."

Na quinta-feira, dia 7 de fevereiro, os jogadores da base do Flamengo receberam outra folga, mas Christian resolveu não voltar para casa e dormir no alojamento, com Samuel e os demais, porque no dia seguinte eles fariam uma festa surpresa para Arthur Vinícius, outro zagueiro do time. Arthur completaria 15 anos no sábado. Antes de dormir, Christian enviou a Julya um meme que achou engraçado, mas ele nunca receberia os emojis de risada que ela mandou como resposta.

Na madrugada, o aparelho de ar-condicionado de um dos quartos pegou fogo e o incêndio tomou conta do contêiner que alojava Christian, Samuel e Arthur Vinicius, além de outros 23 garotos.

Dez jogadores morreram, os três amigos entre eles.

Quarto

No dia seguinte ao incêndio, com os olhos inchados de tristeza, Julya encontrou a mãe de Christian em seu quarto, na casa da família do namorado. As duas se deitaram na cama, choraram e se consolaram. "Ele deitava assim comigo", disse Andréia, apoiando-se sobre o colo da namorada de Christian, querendo senti-lo por meio da presença dela. "Ele te amava tanto que toda vez que eu olhar para você eu vou lembrar dele."

Juntas, Julya e Andréia viveram a angústia do reconhecimento dos corpos das vítimas da tragédia, bastante magoados pelo calor e pela brutalidade. Juntas, ouviram os relatos de bombeiros e as notícias na televisão. Juntas, ouviram que Christian voltou em direção ao fogo para tentar salvar o amigo Samuel e que os corpos dos dois foram encontrados abraçados. De fato, funcionários do IML comentavam, no dia do incêndio, que dois corpos haviam sido encontrados abraçados.

Juntas, Julya e Andréia ouviram o nome de Christian ser cantado por seus amigos no velório e, juntas, resolveram que o sonho do goleiro não morrerá com ele. Uma vez, Christian disse à namorada que se dedicava tanto aos treinos porque queria dar uma vida melhor para a família e perguntou se Julya estaria ao lado dele para ajudá-lo a realizar essa tarefa. Ela disse que sim.

Um dia, ele perguntou à mãe se ela toparia deixar o pé do morro da Congonha caso sua carreira desse certo e ele conseguisse comprar para ela uma casa mais confortável, em um bairro mais seguro. Ela disse que sim.

"Eu sei que onde ele estiver ele vai estar comigo", afirmou Julya, na última terça-feira, na mesma rua em que Christian costumava andar descalço. "Minha vida agora vai ser estudar, trabalhar e conquistar o que ele gostaria de ter conquistado para a mãe e o pai dele."

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