Renato antes de Renato

Valdir Espinosa criou o "malandro gaúcho", que liberava churrasco, cerveja e até tinha bicheiro como patrono

Bernardo Gentile e Marinho Saldanha Do UOL, no Rio de Janeiro e em Porto Alegre Vitor Silva/Botafogo

O segundo pai de Renato Portaluppi

Hoje o dia amanheceu mais triste. Perdi meu segundo pai, meu irmão mais velho, meu exemplo, meu grande e fraterno amigo".
Renato Gaúcho

A relação entre o treinador do Grêmio e Valdir Espinosa, que morreu ontem (27) no Rio de Janeiro, teve início no fim da década de 70, quando o ex-lateral direito jogava no Esportivo de Bento Gonçalves e estava próximo de encerrar a carreira. Renato ainda era das categorias de base e eles duelavam nos treinamentos. O folclore diz que o experiente jogador não conseguia parar o impetuoso jovem atacante e, por isso, decidiu se aposentar — Espinosa ainda jogou mais duas temporadas no Vitória, mas a lenda é muito mais legal que a realidade...

O fato é que foi justamente neste momento que começou uma duradoura relação entre os dois. Espinosa logo indicou Renato Gaúcho para o Grêmio, que não pensou duas vezes. Quis o destino que os dois estivessem juntos na conquista da Libertadores e do Mundial anos depois.

E, voltando à frase de Renato, lembra que ele falou de Espinosa como "meu exemplo"? Quem olha a dupla pode achar que está mais para uma cópia. Espinosa era um técnico boleiro entre os jogadores, gostava de se vestir com estilo quando isso era pouco comum no meio do futebol e era um gaúcho que fez sucesso tanto em Porto Alegre como no Rio de Janeiro. Mais do que isso, sempre foi um técnico fanfarrão e vencedor. Valdir Espinosa foi Renato antes de Renato.

E Espinosa seguirá vivo em Renato Gaúcho.

Vitor Silva/Botafogo
Botafogo/Divulgação

O técnico e o bicheiro

Para abrir os trabalhos e apresentar para você quem era Valdir Espinosa, vamos voltar a um episódio dos anos 90. Espinosa já era técnico e malandro. E só virou ídolo do Botafogo por causa de um bicheiro.

Emil Pinheiro foi presidente do clube entre 1991 e 1992, mas dava as cartas como dirigente há alguns anos. Apaixonado pelo Alvinegro, ele colocava seu dinheiro à disposição do clube na época. Para quem não sabe, ele era um dos bicheiros mais poderosos do Rio de Janeiro e chegou a ser preso por contravenção em 1993 — quando seu vínculo com o Botafogo foi oficialmente quebrado.

Mas o ano era 1989 e Emil decidiu pela contratação de Valdir Espinosa. Foi até Porto Alegre fechar o negócio. Voltou ao Rio de Janeiro com o treinador na bagagem e deu início ao projeto que tiraria o Botafogo da fila após 21 anos sem títulos.

Quando entrou em General Severiano pela primeira vez, Espinosa foi recebido por Emil, que perguntou de imediato: "Qual jogador você quer que eu compre?" O novo treinador ainda não conhecia profundamente o time que comandaria e pediu um tempo. No fim, apostou nos que já estavam lá.

A relação com Emil Pinheiro era muito próxima. Tanto que o treinador se sentava ao lado do bicheiro cada vez que entrava no ônibus a caminho das partidas. Conversavam sobre os mais variados assuntos, mas o futebol era o que reinava no bate-bapo. Principalmente o Botafogo.

Os dois se tornaram muito próximos. Mesmo após anos da conquista de 1989, era comum ouvir Espinosa falar bem de Emil. Os dois trabalharam juntos novamente no Botafogo em 91, quando o bicheiro já havia assumido a presidência do clube. Não por acaso, foi nessa época que Renato Gaúcho foi contratado pelo Alvinegro — na foto acima.

Reprodução

Um jogador estiloso

Valdir Espinosa esteve à frente de seu tempo em vários momentos. Entre 1970 e 1973, como jogador do Grêmio, foi um dos precursores dos "atletas estilosos". Se hoje a moda é o cabelo descolorido e tatuagens ao longo do corpo, naquela época ele inovava com cabelos longos e calças extravagantes.

Um dia, ele chegou no Olímpico com uma perna de cada cor. Inicialmente arrancou risos dos presentes. Em alguns dias, foi copiada por outros jogadores.

Reis era o nome do alfaiate especial dos jogadores da época. Junto com Escurinho, Espinosa mandava fazer roupas especiais e únicas. Além da calça multicolorida, por exemplo, encomendou um casaco com um lado liso e outro quadriculado, que também desfilou antes dos treinamentos.

Nem mesmo a idade acabou com o estilo "pra frentex". Em 2014, Espinosa foi personagem de um especial da Grêmio TV sobre o aniversário da conquista do Mundial de Clubes de 1983. Enquanto concedia entrevista em uma praça de Porto Alegre, seu celular tocou. Para surpresa de todos, a música era o "Show das Poderosas", de Anitta.

Anos mais tarde, quando foi recontratado pelo Tricolor como coordenador técnico, avisou aos jornalistas que havia "trocado a música do celular", arrancando gargalhadas dos presentes.

RODRIGO RODRIGUES/GREMIO FBPA RODRIGO RODRIGUES/GREMIO FBPA

Duas mulheres no quarto para controlar Renato

A relação com Renato Gaúcho foi um dos pilares da passagem de Espinosa como treinador pelo Grêmio. E há três versões da chegada dele. Enquanto ex-dirigentes reivindicam a descoberta do jogador, Espinosa é quem carregava o orgulho de ter ido buscar Renato no Esportivo, clube em que os dois jogaram.

Em dado momento, a direção gremista estava decidida a dispensar o atacante. Hélio Dourado e Fábio Koff fizeram ponderações sobre as saídas noturnas do jogador e o temperamento forte. Mas Espinosa avisou: "O Renato eu garanto". Juntos, conquistaram a Libertadores e o Mundial de 1983.

Essa certeza tinha base no controle sobre o atacante. Espinosa costumava contar que mais de uma vez precisou segurar seu "artilheiro". Em uma delas, era véspera de jogo no Rio de Janeiro e ele viu chegar ao hotel do Grêmio uma dupla de meninas. Chamando atenção pela beleza, elas pediram algo no bar da concentração. Inquieto, o treinador foi até a mesa e perguntou de onde elas eram. A resposta: "Porto Alegre". Na hora, o comandante pegou a chave e disse: "Eu vou até o quarto de vocês".

As meninas riram e autorizaram. Chegando lá, Espinosa pegou o telefone e ligou para o quarto de Renato. "Eu estou aqui e você não vem". Espinosa passou a noite no quarto (apenas por segurança, segundo o próprio). No outro dia, o treinador estava cansado, mas Renato tinha 100% de condições físicas. E o Grêmio venceu o jogo.

Vitor Silva/Botafogo

Churrasco, cerveja e futebol

Quando chegou ao Botafogo, em 1989, Espinosa foi chamado de louco por Telê Santana. Ele tinha acabado de aceitar o emprego de técnico do clube, mas o ex-técnico da seleção avisou que os 21 anos de jejum deixavam o clima no clube pesado e só aumentava a pressão da torcida. Como resolver isso?

A saída encontrada não foi nada ortodoxa. No dia seguinte após cada partida, jogadores pegavam seus familiares e se dirigiam para o hotel onde o Bota se concentrava. No local, se encontravam com o técnico. Reunião? Não. Churrasco! E regado a cerveja gelada. O treinador queria que todos estivessem na mesma página.

O objetivo era aumentar o entrosamento dos jogadores e criar um sentimento de família no grupo que tinha a dura missão de quebrar o jejum. Só se podia falar de futebol. Sobre o jogo passado e o próximo duelo.

Mulheres e filhos não ficavam na mesma mesa dos jogadores. Não poderia haver distração nesse sentido. Apenas cerveja, os companheiros e o futebol. A tática deu mais que certo. Esses churrascos, bancados pelo bicheiro Emil Pinheiro, são lembrados até hoje.

Fernando Santos/Folhapress Fernando Santos/Folhapress

"A menor palestra do mundo"

A relação com os jogadores era direta. Ainda que carregasse apreço ao jogo tático, Espinosa usava muito de sua capacidade de liderança para garantir o empenho dos atletas. Em 1983, antes de uma partida contra o Bolívar, em La Paz, pela Libertadores, ele minimizou os efeitos da altitude de uma maneira inusitada: ignorando o assunto.

Enquanto todos falavam (e se preocupavam) com o tema, Espinosa se calava. Tratava de todos os temas, falava de outras coisas, brincava, mas nunca pronunciava a palavra altitude. Perguntado sobre isso, respondia outra coisa. Aos jogadores, sequer citava as dificuldades que isso poderia impor ao time.

Nos minutos que antecederam a partida, todos esperavam uma palestra mais longa, com indicações de como agir em campo, orientações para driblar os efeitos climáticos. Mas o que veio foi "a menor palestra do mundo".

"Espinosa chegou aos jogadores e falou: 'Pessoal, o assunto é o seguinte: hoje é chocolate neles'"

Quem conta a história é o jornalista Darci Filho, que acompanhou os momentos antes do jogo e a partida pela Rádio Gaúcha. A atitude não foi bem vista pelo então presidente Fábio Koff, que estava decidido a demitir o treinador caso a estratégia não desse certo. Em campo, o Grêmio venceu por 2 a 1, ele foi mantido no cargo e conquistou o título ao fim do torneio.

Lancepress

Mentiu para jogador que virou herói do título

Se Valdir Espinosa entrou para a galeria de ídolos do Botafogo, muito se deve também a Maurício. O atacante fez história ao se desvencilhar da marcação de Leonardo, o lateral esquerdo do Tetra que hoje é dirigente do PSG, e completar cruzamento de Mazolinha para o fundo das redes. A vitória por 1 a 0 sobre o Flamengo tirou o Alvinegro da fila em 1989 e todo mundo sabe.

O que pouca gente sabe é que o herói do título por muito pouco sequer entrou em campo. Um dos destaques do time, Maurício acordou com febre naquele 21 de junho. Com dores no corpo, estava decidido a não jogar. Foi aí que Espinosa entrou em ação.

O treinador escutou o que Mauricio tinha a dizer, mas logo foi a sua vez de falar. E de mentir. Espinosa deixou sua emoção florescer, disse que havia sonhado que o camisa 7 seria o responsável pelo gol do título.

Após o primeiro tempo, 0 a 0. Maurício entrou no vestiário cansado e desconfiado. Onde estava o gol que havia sido prometido? Mais uma injeção de ânimo e o atacante voltou para a etapa complementar. Espinosa o manteria em campo até os 20min do segundo tempo, devido às condições físicas. Foi então que, aos 12min, Maurício desentalou a garganta da torcida.

Na comemoração do título, Espinosa não se segurou e revelou a verdade: como poderia ter sonhado com Maurício se nem dormido ele tinha conseguido? Tratava-se da mais pura mentira. Não teve sonho, mas teve gol. E taça.

Luís Ávila/Agência RBS Luís Ávila/Agência RBS

Campeão da Copa do Brasil, da Libertadores, do Mundial...

Valdir Espinosa respirava futebol. Não à toa participou do esporte em três funções diferentes: jogador, técnico e dirigente. Desde os primeiros anos, teve sua vida diretamente ligada ao campo, onde ficou até os últimos dias em que respirou. Venceu quase tudo o que disputou. Em sua galeria de conquistas tinha Libertadores, Mundial, Campeonato Gaúcho, Carioca e Copa do Brasil. Teve título também na Arábia Saudita e no Paraguai.

Formado nas categorias de base do Grêmio, se tornou jogador profissional em 1970. Ficou no Tricolor por quatro anos, quando passou a rodar o Brasil. Passou por CSA, CRB e Esportivo até encerrar a carreira no Vitória, em 1978.

A partir de 1979, virou treinador. E a carreira decolou definitivamente. Foi quando viveu seu momento mais vitorioso, principalmente após voltar para o clube que o revelou como atleta. No Grêmio, ganhou os troféus mais cobiçados e virou ídolo.

Rodou o mundo por alguns anos e voltou ao Brasil para treinar o Botafogo. Foi o técnico que comandou o time na competição que rompeu o jejum de 21 anos sem título. Assim como no Grêmio, também virou ídolo no Alvinegro.

Em 2014, mais uma vez se reinventou no futebol. Voltou ao Esportivo de Bento Gonçalves para uma nova função: dirigente. Chegou a trabalhar até mesmo nos Estados Unidos, mas foi novamente no Grêmio em que voltou a viver momentos de glória, ao lado novamente de Rento Gaúcho, já treinador. Por lá, a dupla venceu a Copa do Brasil — a Libertadores o Grêmio venceu após a saída do agora dirigente.

Voltou ao Botafogo em 2020, após alguns anos afastados do futebol — desde que havia sido demitido do Grêmio, em 2017. Chegou com status ao Rio de Janeiro e vinha desempenhando p trabalho sob a batuta de Carlos Augusto Montenegro até se afastar por motivos de saúde na semana passada.

Espinosa morreu no Rio de Janeiro no dia 27 de fevereiro, aos 72 anos.

Vitor Silva/Botafogo Vitor Silva/Botafogo

Homenagens a Espinosa

Hoje o dia amanheceu mais triste. Perdi meu segundo pai, meu irmão mais velho, meu exemplo, meu grande e fraterno amigo. Foi pelas suas mãos que cheguei ao Grêmio e consegui dar para a minha família tudo que sempre quis. Vai ser difícil superar mais essa perda, mas temos de seguir em frente. E tenho certeza que ele sempre estará nos olhando, cuidando e guiando. Vai com Deus meu grande amigo".
Renato Gaúcho, técnico do Grêmio e jogador de Espinosa no título mundial de 1983

Pode dizer que aquela estrela que ele viu no céu em 1989 agora virou a casa dele. Muito obrigado por tudo. Beijo carinhoso".
Carlos Augusto Montenegro, presidente do Botafogo

Eu perdi um grande amigo, uma pessoa muito querida. Não era professor, era psicólogo, uma pessoa que tinha um carinho com todos os atletas em uma igualdade fantástica. Um cara que pensava sempre no próximo. Esse legado que ele deixou para a gente, essa conduta: ajudar a quem precisa, sem olhar nada. Ele conseguiu, naquele grupo de 89, trazer esses jogadores tidos como indisciplinados: Maurício, Josimar e outros. Com técnica de psicólogo, conseguiu agregar tudo e fazer com que nos tornássemos campeões. Nós encerramos nossas carreiras, mas continuamos com a amizade".
Maurício, atacante do Botafogo que quebrou o jejum de título do clube em 1989

É com muita tristeza que nos despedimos de um dos grandes nomes da nossa história e de todo futebol brasileiro. Valdir Espinosa deixa, hoje, o mundo que nos ajudou a conquistar em 83. Um eterno obrigado por todas as oportunidades em que honrou o nome do Grêmio".
Romildo Bolzan, presidente do Grêmio

Foi muito importante para todos os botafoguenses por tudo que ele representou e por todo o sentimento que ele manteve durante esse tempo. Depois de 31 anos do título de 89, o Valdir ainda falava com enorme carinho do sentimento que ele tem do Botafogo. É uma perda irreparável para nós. Perdemos um companheiro e um amigo que fará muita falta no dia a dia. Ele estava muito bem, estava muito antenado com futebol, com os jogadores, observando os atletas em campo, tinha uma habilidade muito grande de convencimento".
Ricardo Rotenberg, dirigente do Botafogo

Uma perda dupla porque, ao mesmo tempo que o Botafogo perde um grande profissional, que estava ajudando o clube nesse processo de recuperação, de reorganização do departamento de futebol, a gente perde um ídolo. Uma pessoa que conduziu aquele peso de 21 anos, conduziu aquele grupo maravilhoso e conseguiu liberar o Botafogo daqueles momentos tão difíceis. Eu jamais vou esquecer o Valdir Espinosa no campo, apontando para o placar e só se dando por satisfeito a partir do momento que o placar iluminou o Botafogo campeão. Isso é inesquecível. Ele vai estar sempre em nossos corações".
Carlos Eduardo Pereira, ex-presidente do Botafogo

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