A nova voz do Fifa

Guga Villani: 'Foram 80 sessões de cinco horas cada; é mais desgastante que narrar uma partida de futebol'

Eduardo Ohata Colaboração para o UOL, em São Paulo Arquivo pessoal

Narrador do Grupo Globo, Gustavo Villani um dia foi pego de surpresa ao receber uma ligação de Tiago Leifert, apresentador dos realitiy shows "BBB" e "The Voice". "'Guga, tudo bem? É o Tiago Leifert'. Eu nunca tinha falado com ele. Tinha acabado de chegar na Globo, 2018, mais ou menos. 'Cara, vou te fazer uma pergunta muito simples e direta: você quer narrar o Fifa um dia?"

Ao ouvir uma resposta entusiasmada, Leifert soube que encontrara o sucessor para o papel que desempenhava há quase uma década. A EA (Eletronic Arts), desenvolvedora da franquia Fifa, mirava em uma renovação e, fora as indicações do próprio Tiago e do comentarista do Fifa Caio Ribeiro, baseou a escolha numa pesquisa realizada junto a gamers que demonstrou a receptividade ao nome de Guga. Ele foi anunciado hoje (11) pela empresa.

Ter um representante atuante junto à nova geração de torcedores, muito seduzida pelos craques dos gramados internacionais, também é visto como benéfico pelo Grupo Globo. "É importante nossa penetração para a renovação de um público que ainda não tem contato com o futebol em si, mas que gosta muito do game", explica Guga, o mais jovem integrante do G5 — o quinteto formado pelos principais narradores do Grupo Globo, logo depois de Galvão Bueno.

Arquivo pessoal

O Tiago conta uma história maravilhosa: ele entra no avião, já apresentador consagrado, e uma criança na poltrona ao lado ouve a voz dele, se admira, aponta e diz: 'você é o cara do Fifa'. Ele não o conhecia do BBB ou do The Voice. Dá uma ideia do público que pode ser alcançado

Gustavo Villani, sobre o alcance de se tornar a voz da franquia Fifa

Veja: Villani conta como virou o novo narrador do Fifa

Arquivo pessoal

80 sessões de cinco horas

Firmado o contrato com a EA, começou o trabalho mais difícil. "Foram 80 sessões de cinco horas cada", esclarece Guga ao ser questionado se para alguém que narra partidas do Brasileirão, Olimpíada e até Copa do Mundo, um game seria narrado "com um pé nas costas".

Segundo ele, para entender o desafio é preciso somar cansaço físico e o desgaste mental. O resultado é que narrar o Fifa pode ser "mais desgastante do que narrar uma partida de futebol".

"Em todas as jogadas, seja numa situação de gol, batida de tiro de meta, arremesso, lateral, falta no meio campo ou próximo à grande área, eu tenho que imaginar. É um exercício não apenas físico, de desgaste, de 80 sessões de cinco horas cada nesses últimos 11 meses. É muito desgastante mentalmente", revela Guga.

"Era sempre uma dificuldade me inspirar numa jogada imaginária, porque eu só tinha a descrição do lance descrito em um roteiro, ou seja, eu tenho o contexto, que eu não posso mudar; mas posso mudar a minha linguagem, estilo, colocar no game o que sou no mundo real; mas não é tão simples, até porque todos temos dias nos quais estamos melhores, e em outros, nem tanto."

Divulgação

Mais brincadeiras do que na vida real

Narrar um game porém, tem vantagens: "O mundo real é o mundo das ruas, dos estádios. E, no mundo real, o torcedor senta lá na expectativa de ver o time dele se dar bem, e isso nem sempre acontece", define Guga. "Narrar uma partida real exige o exercício constante de equilibrar uma emoção que é genuína e verdadeira, então dá muito menos margem de manobra para o narrador brincar, ironizar, satirizar, o que no game cabe".

Segundo Guga, no Fifa, para o narrador e o comentarista, vale até brincar consigo mesmo. "Quem jogar o Fifa-21 vai ver que o Caio [Ribeiro] até cantou o 'We´ll Never Walk Alone', do Liverpool. E eu embalei com ele?", pergunta, de maneira retórica, sem esticar o suspense. "Confesso que sim. Tem vários outros 'easter eggs' no Fifa-21 permitidos dentro do videogame, mas na vida real, não."

Ao substituir Leifert como a voz do Fifa, "pelos próximos três anos pelo menos", Guga conta com a experiência de ser um narrador, mas reconhece que não é um entertainer nato como Leifert. "Dá, sim, um frio na barriga, afinal, são dois anos de expectativa", reconhece.

A parceria do Tiago, um baita apresentador e entertainer, com o Caio está bem azeitada, foram muitos anos juntos. Além disso, ele [Leifert] é um heavy user, joga muito bem, leva o comando do game para a transmissão, o que eu não consigo

Gustavo Villani

Voltei a jogar Fifa nas edições 19 e 20 para ver como era o trabalho do Tiago, tatear o que iria fazer. Ele é mais técnico em relação ao jogo do que eu. Então, não existe essa de melhor ou pior. Cada um traz suas características. Ganha de um lado, perde de outro

Gustavo Villani

Fifa - As vozes brasileiras na franquia de games

Ricardo Borges/UOL Ricardo Borges/UOL

Sessões a 400 km de casa

A pandemia também tornou difícil a estreia. "No meio da produção do game, das sessões de gravação, o planejamento do marketing, surge essa terrível pandemia. Moro no Rio e parte das sessões de gravação do Fifa-21 foram realizadas em São Paulo", conta.

"Teve o desafio logístico em meio à pandemia, que coincidiu com o período do nascimento da minha filha mais nova, e eu apartado da minha família, dos meus filhos [Luca e Isabela]", lembra Guga. "Adaptei meus horários à escala da Globo, cuja programação tem horários fixos, mas, por vezes, exigia meu deslocamento para outros locais [fora Rio e São Paulo], não tinha margem para erros".

Os efeitos do covid-19 também aparecem no lançamento arquitetado pela EA para o Fifa-21, que era um evento muito esperado especialmente pelo narrador. "A apresentação estava planejada para o Museu do Futebol do Pacaembu, cheguei a sonhar com o evento [do lançamento], sabe o que é isso?", lamenta Guga. "Agora [o lançamento] será por meio de eventos remotos, é o que temos; mas... Que bom estarmos vivos, o que interessa é estar com saúde."

Villani fala das 400 horas para narrar

Ivan Moré quase acabou com segredo que durou 3 anos

Outro desafio para Guga foi, apesar da empolgação, manter segredo durante três anos de que seria a voz do principal game de futebol do planeta. A missão tornou-se mais difícil por conta de "fogo amigo". "O Ivan Moré, que é um grande amigo, sou até padrinho da filha dele [a Mel], foi fazer um podcast e deu com a língua nos dentes; disse que eu estava gravando para jogos eletrônicos e isso foi antes do lançamento do Fifa-20", lembra Guga.

O problema é que ele não podia revelar o acerto por cláusulas contratuais. "Rapaz, minha vida virou de cabeça para baixo, com a quantidade de gente me ligando, querendo saber se eu era o novo narrador do Fifa", conta.

"Eu omiti algumas coisas, não podia mentir. Mas ninguém veio de maneira assertiva e fez a conta que para gravar demora um ano. Existe um ano de antecedência para o fechamento do contrato. Um ano de gravação. Ninguém fez as contas que são dois, três anos para isso".

Reprodução Reprodução

Fifa x PES: EA vendeu 22 vezes mais

Quando se pensa em games de futebol, dois jogos logo surgem: as franquias Fifa, da EA Sports, e PESO, da Konami. A briga, porém, não é tão equilibrada quanto você pode pensar. A edição 2019 do Fifa vendeu 12,2 milhões unidades, contra 550 mil do PES. Um dos motivos apontados por especialistas para esse domínio é o Fifa contar com as principais competições do mundo, como a Uefa Champions League, a Copa Libertadores, a Premier League e La Liga, incluindo seus clubes e jogadores.

O Brasil, porém, é uma exceção. O Fifa não conta com o Campeonato Brasileiro e tampouco com os atletas dos clubes nacionais. A EA enfrenta dificuldades pelo fato de os direitos no país serem fracionados entre vários detentores, cenário diferente do que acontece em outras praças. Na Europa, graças a uma convenção coletiva, os atletas cedem seus direitos de imagem aos sindicatos, que por sua vez, ao se filiarem à FIFpro, que representa os jogadores de futebol no cenário internacional, os repassa à entidade.

Porém, como o Brasil não é representado pela FIFpro, a desenvolvedora precisa negociar separadamente com CBF, clubes e atletas, em um processo muito complexo. Nesse cenário, a EA foi alvo, há alguns anos, de ações movidas por sindicatos estaduais que representaram dezenas de jogadores profissionais de futebol por uso indevido da imagem. Após sofrer revés na Justiça em primeira instância, a EA recorreu da decisão.

Reprodução

PES deve ser próximo a ser acionado

O PES, que atualmente conta com os direitos do Brasileiro, clubes e atletas, entrou na mira do Sindicato de Atletas Profissionais do Estado de São Paulo. "A Konami contrata os jogadores por meio dos clubes, pagando muitas vezes valores menores do que os que foram praticados pela EA; mas qual jogador vai dizer não para o próprio clube?", pergunta Rinaldo Martorelli, presidente do sindicato. "Estamos estudando entrar com uma ação [na Justiça]."

Questionada sobre como vê a situação dos direitos de uso dos nomes do jogadores, a Konami não se pronunciou até o fechamento desta matéria.

"Uma pena"

No meio disso, Guga classifica como "uma pena" a ausência do Brasileiro no Fifa-21, ao citar que os atletas brasileiros perdem a exposição que um game como o Fifa, o mais consumido de futebol, pode proporcionar internacionalmente.

"Imagino que um garoto na Inglaterra, vendo o que fez um Gabigol em 2019, talvez tivesse a curiosidade de entender o Gabigol jogando com ele. Como são as qualidades dele, quem é ele, o que o faz comemorar daquele jeito? O carisma do Gabigol seria mundialmente divulgado, mas é assim que é. São diferentes realidades na Europa e no nosso continente."

Há um vínculo afetivo, aprendi a narrar futebol brincando de narrar jogo de videogame, jogo de botão

Gustavo Villani

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