Você está demitido

Como é o processo de demissão de um técnico no futebol? UOL conta passo a passo

Igor Siqueira Do UOL, no Rio de Janeiro Marcos de Lima/UOL

Enquanto o Botafogo foi líder do Campeonato Brasileiro, houve quatro trocas de técnicos — três por iniciativa do clube —, entre efetivos e interinos. Em todo o Brasileirão, foram 30 mudanças de treinador desde a primeira rodada. E apenas cinco clubes mantiveram o comando da comissão técnica do início ao fim da competição.

Mas o que faz um clube demitir um treinador?

Para responder essa pergunta, o UOL conversou com técnicos e diretores para entender qual o mecanismo que trabalha para definir quando chega o momento da troca. E, para surpresa de quem apurava, essa máquina começa a agir logo no primeiro dia de um treinador em um clube...

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Conhecendo o técnico que você contratou

No mundo ideal, quando um clube escolhe um treinador, ele sabe como esse profissional trabalha, quais são os métodos e como ele deve interagir com o grupo de jogadores que terá em mãos. Mas na prática não é bem assim.

Por diversas razões, inclusive uma deficiência no processo de contratação, os clubes nem sempre conhecem como seu novo técnico é no dia a dia. E, às vezes, se surpreendem com o que acontece nos primeiros treinos.

Frequentemente, é preciso lidar com a insatisfação do elenco, mesmo que o treinador em questão já esteja no mercado há muito tempo. Se essa relação já começa tensa, contam algumas das fontes ouvidas pela reportagem, fica difícil projetar um trabalho a longo prazo.

Um exemplo dessa surpresa (e não da insatisfação do elenco) foi a chegada de Fernando Diniz, hoje na seleção, ao São Paulo, em setembro de 2019. Embora já tivesse frequentado o dia a dia do clube, acompanhando treinos de Dorival Júnior dois anos antes, o treinador disse a Raí e Alexandre Pássaro, diretor e gerente de futebol à época no Tricolor:

"Vocês acham que me conhecem? Agora é que vocês vão conhecer mesmo como é que eu trabalho".

Isso acontece porque é comum técnicos com ideias opostas estarem entre os cotados quando surge uma vaga de trabalho. E também é comum que técnicos de escolas diferentes substituam uns aos outros nos times brasileiros. Assim, clubes transitam muito entre filosofias e estilos de trabalho — na horas de escolher técnico, muitas vezes vale mais a marca do que o conteúdo.

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E esse treino aí? Tirou de onde?

E é justamente o conteúdo que começa a ser conhecido quando o treinador chega a um novo clube. Ele traz consigo conceitos sobre o jogo e a metodologia de trabalho. Nesse momento, os profissionais que atuam no departamento de futebol ficam de olho nas atividades diárias. A tarefa é entender como o técnico:

  1. Monta o time;
  2. Passa o que quer aos jogadores;
  3. Atua nas questões táticas e físicas;
  4. E se isso tudo bate com a metodologia de jogo do clube.

Se o treinador tem deficiências na hora de ensinar ou os jogadores estão com dificuldade de entender, já surge o sinal de alerta.

"Quando se tem certeza de que o método que ele está aplicando no treino e nos jogos é o que o clube definiu como ideal, você sustenta o técnico muito mais. Quando você percebe que o negócio não vai andar, aí que é levado à interrupção do trabalho", conta Rodrigo Caetano, executivo de futebol do Atlético-MG.

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Treinou bem, impressionou a diretoria, mas não ganhou

Mas só conteúdo não mantém um técnico trabalhando. Às vezes, ele pode passar a semana toda (ou parte dela) treinando, a diretoria acompanhou e acreditou que iria dar certo e, na hora H, o time perde. E perde de novo. E de novo. E de novo. Por melhores que sejam a convivência e os treinos, propriamente ditos, um treinador sempre começa a balançar quando não há vitórias.

"O trabalho do treinador é um conjunto. É o trabalho físico, o lado técnico, a capacidade de diagnóstico dos jogadores, de sistematizar o jogo, de enxergar o jogo, mudar, fixar o padrão tático... Tudo isso faz parte do treinador", diz Romildo Bolzan, ex-presidente do Grêmio.

"Mas o melhor treino não significa que o resultado de campo vai aparecer. Quando o resultado de campo não aparece, esse é o primeiro sintoma que tu vai começar a avaliar o trabalho do treinador".

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A panela de pressão externa

Os sinais de que o cargo está por um fio não são apenas os resultados de campo. A pressão quando as coisas não dão certo aparecem por todos os lados, especialmente o de fora: da torcida, de setores da imprensa e de influenciadores, que ficam no limbo entre os dois lados. Isso toma corpo da porta do vestiário para fora, mas os dirigentes ouvidos admitem: não conseguem ignorar, mesmo que tentem.

"Quem disser que não tem efeito é mentiroso. O ambiente gerado para o treinador trabalhar é fundamental. Tu tens que estar muito convicto de que aquilo que o cara está fazendo é excepcional e vai chegar a algum lugar. Porque se o ambiente externo não te sustenta e não te dá estabilidade para trabalhar, tu estás sempre sendo questionado. Imprensa e torcida questionam. Os jogadores começam a ter desconfiança", relata Romildo Bolzan.

Rodrigo Caetano, que chegou ao Atlético-MG em 2021, tem um exemplo de como funciona essa pressão externa. O único técnico que o clube demitiu nesse período foi Turco Mohamed, em julho de 2022. A queda do argentino veio no embalo da eliminação para o Flamengo na Copa do Brasil, de uma vitória apertada sobre o Botafogo e um empate com o Cuiabá. Olhando para trás, o dirigente admite que o maior impulso para tomada de decisão não veio de dentro do clube.

"Nós nos deixamos valer muito pelo externo. Ele tinha excelentes números. O externo pretende definir tudo, né? E muitas vezes consegue. Com as redes sociais, a exposição é absurdamente maior do que era antigamente. Não são apenas os profissionais do jornalismo. Tem uma série de influenciadores identificados com os clubes que pensam também muito no imediatismo. E isso não tem controle. E aí, começa-se a fazer uma pressão", descreve.

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Quando roupeiro e massagistas sentem a pressão...

Outro sintoma de que um trabalho está chegando ao fim é o clima nos corredores do clube. Não necessariamente entre diretores, mas em funcionários da base da pirâmide.

"O ambiente começa a ficar desfavorável e as pessoas não conseguem se conter diante disso. É um negócio velado. Em uma conversa, você percebe isso. E não só conversas das pessoas que tomam decisões, mas de todas as outras. Roupeiro, massagista, fisioterapeuta. Uma coisa muito engraçada isso, mas todo o entorno exerce algum tipo de pressão, mesmo que não seja uma pressão maldosa", descreve o técnico Vágner Mancini, atualmente no Ceará.

A descrição desse cenário feitas pelas fontes pode ser entendida com uma metáfora: é como se as paredes, além de terem ouvidos, também falassem.

"O profissional vê o jornal, chega na rede social, chega em casa, os pais comentam, o empresário comenta. 'Estão falando que se o treinador não ganhar domingo...' Você absorve um pouquinho disso. O problema é que 30 pessoas absorvendo um pouquinho vira um montão", pontua Alexandre Pássaro.

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Quando o técnico começa a mudar, ele se perdeu

Nesse momento, pode começar um movimento de autopreservação em que se muda o time alucinadamente, jogo após jogo. Quem trabalha com futebol vê essa movimentação como um sinal de que o treinador já sabe que a demissão pode acontecer a qualquer momento. No Flamengo de Jorge Sampaoli, por exemplo, foram 39 formações diferentes em 39 partidas.

"O treinador sabe quando ele está conseguindo dar jeito e quando as coisas estão escapando entre os dedos", acrescenta Mancini, que tem trânsito com a categoria de técnicos por ser uma das lideranças da Federação Brasileira de Treinadores de Futebol (FBTF). "O teimoso faz sempre as mesmas coisas e o perseverante vai mudando a forma para que você tenha um resultado diferente".

As exceções são as situações nas quais as mudanças ocorrem por questões físicas ou rotação do elenco. Exigências de um calendário tão intenso quanto o brasileiro.

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Saiu do buraco, mas e a longo prazo?

Às vezes, as mudanças funcionam. Aconteceu com Fernando Diniz no São Paulo, em 2020. "O ambiente geral, não a diretoria, apontava que a continuidade ficaria muito difícil se não ganhasse do Sport, na Ilha do Retiro, no domingo seguinte", lembra Alexandre Pássaro.

No último treino antes da viagem ao Recife, Pássaro tomou um susto. "Eu falei: 'Meu Deus do céu que que é isso'", confessa. Diniz tinha barrado Arboleda e Bruno Alves, dupla de zaga titular até então, para escalar Diego Costa e Léo Pelé na zaga. Pela primeira vez.

"Quando eu falo com o Diniz, ele me explica exatamente o que ele queria com aquela mudança e que ele já estava ensaiando isso. Ele não protegeu o cargo dele. Ele se expôs", cita Pássaro. O São Paulo venceu o Sport por 1 a 0, ganhou fôlego no campeonato e chegou a ser líder.

Diniz só foi demitido na reta final do Brasileirão, quando caiu para a quarta posição. A campanha terminou com o interino Marcos Vizolli. O São Paulo terminou mesmo em quarto.

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Dia da demissão

Quando chega o momento da demissão, a decisão já está praticamente tomada. Como você viu até aqui, os resultados, a análise do trabalho interno e as pressões externas já fizeram sua parte. Resta aos dirigentes que têm o poder de demitir realmente chegar à conclusão de que a troca será feita.

Às vezes, é preciso debater por dias os prós e contras da saída. Foi assim com Turco Mohamed no Atlético-MG: Rodrigo Caetano e o presidente do clube, Sérgio Coelho, passaram dias falando sobre a troca de comando e suas repercussões — incluindo o impacto financeiro da saída, já que demissões são acompanhadas de multas rescisórias.

No Flamengo, por exemplo, a rotina de demitir técnico já gerou um montante acumulado de R$ 46 milhões em multas pagas a Domenéc Torrent, Rogério Ceni, Paulo Sousa, Vítor Pereira e Jorge Sampaoli. Perdida a final da Copa do Brasil 2023, o anúncio da diretoria ao treinador argentino, em setembro, foi rápido: uma reunião de menos de dez minutos em um hotel de frente para a praia na Barra da Tijuca.

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Arrependimento pode vir

Em um processo tão caótico, não é surpresa que existam arrependimentos. Romildo Bolzan, ex-presidente do Grêmio, diz que aconteceu uma vez. Ele prefere não dizer qual é o caso concreto — os indícios apontam para a saída de Renato Gaúcho —, mas reconhece que já demitiu técnico em um momento no qual não deveria.

"Num momento de dificuldade enorme que se criou, eu poderia ter apostado um pouquinho mais. Mas eu também estava num nível de esgotamento muito grande e aí acabou sendo trocado", contou.

Rodrigo Caetano é mais direto em relação ao arrependimento pela demissão de Turco Mohamed. O clube, como um todo, se deixou levar pela torcida. A comparação com o ano anterior trazia um sarrafo elevado: o time tinha conquistado Brasileirão e Copa do Brasil sob a tutela de Cuca, que decidiu sair ao fim de 2021.

"Sempre serei contrário à interrupção de trabalho, tá? Por que eu falo isso? A experiência diz que o prejuízo é muito maior. Com a evolução do método de trabalho dos técnicos, eles organizam o modelo de jogo do time com seus conceitos. Então, hoje, quando você tem a interrupção, o período que você tem para readaptar a uma nova metodologia é demorado. Às vezes, a montagem de elenco também é baseada no modelo de jogo do técnico", aponta Rodrigo Caetano.

Depois que tirou Mohamed, o Galo trouxe o próprio Cuca de volta. Efeito imediato? Nada disso. Por mais que conhecesse o elenco, era preciso virar a chave. "Para você ter uma ideia de como são as coisas. O elenco era praticamente o mesmo, mas ele já tinha sido treinado de uma outra forma pelo Turco", completou Caetano.

Em 2022, o Atlético-MG terminou em sétimo no Brasileirão.

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