Alerta de gatilho: Esse texto aborda temas como abuso sexual e violência contra a mulher.
Meu avô criou o jiu-jitsu para combater a covardia, mas quando dois faixas-pretas me agrediram nada aconteceu
Especial para o UOL, em Florianópolis (SC) DiVascaAlerta de gatilho: Esse texto aborda temas como abuso sexual e violência contra a mulher.
O fruto nunca cai longe do pé, diz o provérbio. Eu penso nele quando lembro da mesa de café da manhã tombando na minha frente depois do surto que fez um faixa-preta de jiu-jitsu perder a cabeça. A briga tinha começado por um motivo idiota qualquer porque naquela época sempre brigávamos por qualquer coisa.
Ele jogou o conteúdo de um copo na minha cara. Os talheres, os copos, os pratos e a comida caíram no chão enquanto ele me ameaçava e xingava com fúria. Não tinha sido a primeira vez e nem seria a última. Quando fui reclamar, seus pais me acolheram e falaram que me apoiariam se eu decidisse me separar. Eles conheciam o filho que tinham. Provavelmente sabiam que ele tinha agredido a namorada anterior.
Insisti na relação porque tinha uma filha de cinco meses. As brigas continuaram, assim como os xingamentos, motivados sempre por discussões banais: quem vai lavar louça, quem vai ficar com o bebê...
Vou omitir o nome dele, mas nesse texto o chamarei de Quimono Branco. Eu o havia conhecido na Gracie Tijuca, uma academia de jiu-jitsu na zona norte do Rio.
Sou filha de Relson Gracie, neta de Hélio, que, ao lado do irmão Carlos, fundou o jiu-jitsu brasileiro no começo do século 20. Assim como a maioria dos Gracie, cresci no meio de lutadores, mas só comecei a treinar a sério por volta dos vinte anos, depois que voltei de uma temporada no Havaí na academia do meu pai.
Nas academias que levam o nome da minha família (e imagino que em muitas outras), era comum ouvir lutadores dizendo que "faziam e aconteciam" com as mulheres, que "passavam o carro mesmo", que mulher que trai é piranha e tem "mais que apanhar".
Em uma das equipes, havia um atleta que costumava treinar sem cueca, alegando que a roupa de baixo incomodava seus movimentos. Não raramente, a calça do quimono caía, e o atleta exibia sua bunda ou sua genitália em público. Sendo a única a mulher no time, me sentia constrangida diante da cena, mas não teria voz para reclamar de um hábito que todos viam apenas como uma excentricidade, uma piada de um menino travesso.
Alguns lutadores projetavam o peso de seu corpo de propósito nos meus seios, que pressionados provocavam muita dor, para me fazer desistir do combate. Outros esfregavam a genitália no rosto das atletas mulheres para intimidá-las e constrangê-las.
Formado em um ambiente que vê mulher como um bicho inferior, Quimono Branco logo traria esse tipo de discurso para dentro de casa e o transformaria em ato físico contra mim.
Depois que nos separamos, ele foi à minha casa para tratar de um assunto familiar. Brigamos novamente e, dessa vez, sua frustração desceu pelos punhos. Quimono Branco me agarrou pelo cabelo e me puxou para o chão da cozinha. Minha avó, que tinha 71 anos e estava com câncer, viu a cena e levantou para me acudir.
Isso foi por volta de 2002. Naquela época, não se falava muito sobre violência contra a mulher e eu não pensei em denunciá-lo à polícia. Quimono Branco, com o tempo, foi se afastando da minha vida. Que eu saiba, ele continua treinando jiu-jitsu no mesmo lugar.
Levou cinco anos para eu querer me relacionar com outra pessoa. Quimono Azul era bem mais novo que eu, treinava jiu-jitsu na Brazilian Top Team (BTT) e também lutava MMA. Parecia ser um cara diferente. Nos conhecemos num campeonato de jiu-jitsu e dois meses depois começamos a namorar.
Com quatro anos de namoro, resolvi acompanhar minha mãe que tinha decidido vir morar em Florianópolis. Aluguei um apartamento na cidade e o chamei para viver comigo e com minha filha, que o tinha como uma figura paterna. Quimono Azul era muito ciumento e não aceitava que eu saísse sozinha. Era uma relação desigual. Ele olhava meu celular, mas eu não podia olhar o dele. Ele viajava sozinho, mas eu não podia viajar sozinha. O dinheiro dele era só para ele, mas o meu dinheiro era nosso.
Isso gerava brigas. Logo começaram os dedos na cara, os pequenos empurrões, os palavrões, as promessas de violência e suas realizações.
Ameacei abandoná-lo quando ele me deu um tapa na cara; ele ameaçou se jogar do 11º andar se eu o deixasse. Quimono Azul tentava inverter a situação, fazendo eu me sentir culpada por seu sofrimento. Cansada, resolvi me separar. Ele saiu de casa, mas mantivemos ainda assim uma relação de idas e vindas.
Um dia, porque eu não quis lhe mostrar mensagens em meu celular, Quimono Azul segurou minha mão com força e entortou um dedo da minha mão esquerda. Resolvi prestar queixa.
"Relata a comunicante que o autor é seu ex-companheiro e estão separados há uns dois anos", diz o boletim de ocorrência que registrei em 14 de setembro de 2014, às 22h, na Delegacia de Proteção à Mulher de Florianópolis. "Que na data acima citada o autor fez ameaças dizendo para a comunicante que a mesma não sabe do que ele é capaz, e na ocasião ele também a agrediu fisicamente onde a comunicante ficou lesionada no dedo da mão esquerda; informa não ser a primeira vez que ele a agride fisicamente e também a ameaça; solicita providência."
A providência nunca aconteceu. A polícia disse que entraria em contato. Cinco anos depois, ninguém apareceu.
E obviamente eu não fui a única Gracie a ser agredida pelo marido. Uma parente minha, cuja identidade eu preservo, já sofreu violência do cônjuge, outro lutador faixa-preta formado em uma academia da nossa família. Uma das agressões aconteceu em público, e eu presenciei.
A maioria dos homens da minha família sempre foi muito machista. Se uma mulher Gracie decide levar o esporte a sério, ela precisa de muita força de vontade para superar as barreiras impostas pelos parentes. Na visão de meu avô, seu irmão e os filhos deles, as mulheres são seres reprodutores que devem ficar em casa cuidando da família. Jiu-jitsu, para elas, deveria ser só uma forma de defesa pessoal, não uma luta competitiva.
Quando penso em Quimono Branco e em Quimono Azul, e em outros faixas-pretas da arte marcial que meu avô inventou, eu penso no provérbio segundo o qual o fruto nunca cai longe do pé.
Nunca ouvi Hélio Gracie levantar a voz para uma mulher. Suas filhas e netas sempre foram tratadas com cuidado e respeito, mas como pessoas de importância menor. Desprezando as mulheres, lutadores formados por ele e por seus discípulos acabaram naturalizando formas de violência contra mulheres. Até que eles mesmos se tornaram os agressores.
A ideia por trás do jiu-jitsu é uma pessoa indefesa poder se defender de uma agressão injusta usando a técnica certa, o movimento preciso. O esporte que Hélio e Carlos criaram era para ser um antídoto contra a covardia, mas acabou produzindo covardes em série.
Quando meus mestres souberam o que seus alunos estavam fazendo comigo, a reação deles foi cobrar uma atitude. Uma atitude minha. "Por que você ainda está com ele? Por que você permite isso?"
Que eu saiba eles nunca fizeram uma cobrança parecida aos agressores, que nunca foram chamados a rever suas ações. Os dois seguem a vida, impunes.
Acredito que meu avô, meu pai, meus tios e os Gracie que levam os fundamentos do esporte ao mundo todo não seriam capazes de fazer o que Quimono Branco e Quimono Azul fizeram comigo. Mas a cultura do esporte que minha família criou permite e incentiva esse tipo de violência contra nós.
Quando lutadores de jiu-jitsu violentam suas esposas e namoradas, a comunidade corre para esclarecer que eles são maçãs podres, marginais que se afastaram dos nobres valores da arte marcial. Mas, diante de tantos casos, prefiro olhar para o outro lado: se a maçã nasceu podre, talvez alguma doença tenha apodrecido a árvore que a originou.
O jiu-jitsu e a família Gracie não são inocentes. O fruto nunca cai longe do pé.
Você já passou por uma situação como essa? Conhece mulheres que tenham sofrido alguma forma de abuso em academias de luta? Compartilhe a sua história com a #QueroLutarEmPaz e divulgue a série Vozes no Tatame do @UOLEsporte.
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