'Sai daí, seu gordo'

Walter conta qual treinador o magoou e quando se sentiu injustiçado

Marinho Saldanha e André Lucena Do UOL, em Porto Alegre e São Paulo Lucas Canez - AI/ECP

Walter é o tipo de jogador pelo qual em algum momento você já deve ter torcido. Mesmo que não fosse sequer próximo das camisas que defendeu, como Inter, Athletico, Goiás, Fluminense ou Cruzeiro, mas por perceber nele uma grande dose de sinceridade. Seja na insistência, na capacidade, nos erros e acertos, nas qualidades e defeitos que muitas vezes colocam o atacante como reflexo de todos nós. Walter não esconde quem é.

De coração aberto, ele jamais se omite. E foi assim em uma entrevista de mais de uma hora ao UOL. Detalhes de quando palavras doeram mais do que qualquer entrada brusca em campo foram revelados pelo jogador de 33 anos que hoje defende o Pelotas, no Rio Grande do Sul. Um treinador o chamou de gordo, e isso doeu. Marcou.

O problema de peso é tratado com naturalidade. Walter entende que isso brecou sua carreira e que poderia ter ido muito mais longe se não fossem os quilos de sobra. Entre sorrisos, lembra bons momentos, colegas e times e mostra que está feliz mesmo percebendo os últimos anos da carreira passarem. Estar perto da filha Catarina Vitória, de 12 anos, ao lado dele na festa com a qual foi recebido em Pelotas, não tem preço.

Seja nas glórias ou nos piores momentos, Walter revisita sua vida e sua carreira com a segurança de quem sempre tentou o melhor. Antes de fazer tudo virar livro, ele ainda contou como se sentiu injustiçado na punição por doping e a tristeza por simplesmente não ter notícias do pai, desaparecido desde 2018.

Lucas Canez - AI/ECP Lucas Canez - AI/ECP
Divulgação/Goiânia

'Vai emagrecer'

"Ele chegou para mim e disse: sai daí, seu gordo, vai emagrecer". Assim Walter relatou quando as palavras lhe atingiram mais do que qualquer zagueiro. Aconteceu na época em que defendia o Botafogo-SP e enfrentava o Figueirense. O treinador rival que falou isso: Jorginho, que passou por Palmeiras, Portuguesa, Bahia, entre outros. Atualmente está no Juventus-SP.

"Um profissional não pode falar assim para outro profissional. Aquilo me doeu um pouco. Ele me conhece", continuou o centroavante que, admitiu que as palavras do treinador vieram durante uma discussão. Walter foi expulso naquela partida por tentar agredir Jorginho após o insulto. Depois do jogo, em coletiva, o treinador pediu desculpas pela conduta.

Foi um ato isolado. Entre atletas sempre houve respeito, nenhuma piada chegou a atingir o jogador, seja ela de quem for. Nem mesmo os torcedores — que vez por outra pegavam no pé pelo porte físico — jamais incomodaram.

"Torcedor é assim mesmo, pegam no pé e depois vão lá pedir para tirar foto. É normal", contou.

O problema de peso pautou a carreira de Walter, e a razão para isso, segundo ele, não é genética ou algo deste tipo: foi o destino.

"Se você pegar meus vídeos de 2009, 2010, não vai me ver gordo. Não foi minha infância. Eu comecei a engordar em 2013, no Goiás, porque dei uma relaxada. Eu não pensei grande, entendeu? [Não pensei] Vou arrebentar e vou para um time gigante", admite.

'Sai daí, seu gordo'

'Foi uma covardia o que fizeram comigo'

Não era novidade na carreira de Walter a luta contra a balança. Como ele próprio admite, desde 2013 os quilos a mais se tornaram comuns. Geraram até a famosa comemoração 'deita e rola' feita por ele para celebrar gols.

Mesmo que não atrapalhasse tanto ou impedisse os gols que ele sempre foi acostumado a marcar, o porte físico incomodava de alguma forma. Walter decidiu que era hora de emagrecer novamente.

Foi quando acabou abordado em uma rede social por uma vendedora oferecendo um produto natural que auxiliaria na perda de peso. Depois de algum tempo de conversa, o atleta resolveu comprar. Antes de tomar, consultou o médico do CSA, clube que defendia na época, e foi autorizado a usar o medicamento.

A surpresa veio num exame antidoping. Em 2018, Walter foi flagrado com a substância furosemida e metabólicos da sibutramina no sangue, proibidas para atletas profissionais. Julgado, ele pegou um ano de suspensão.

"Eu nunca tinha tomado remédio para emagrecer. Você é julgado, não querem saber de nada, você é o jogador, é culpado", disse. Hoje, Walter move processo contra o médico e contra a vendedora da medicação.

Mas o pior ainda estava por vir. Prestes a voltar a jogar, já de volta ao Goiás, Walter foi julgado novamente em recurso contra a primeira punição e pegou mais um ano de suspensão.

"Foi bem na época do Guerrero [Paolo, atualmente no Racing], não sei o problema dele, mas deu droga, e ele pegou um ano e dois meses, entendeu? Teve que voltar, jogou a Copa do Mundo. Eu, um remédio que não me ajudou em nada, peguei dois anos", disse, completando:

"Foi uma revolta tão grande que fiquei sete meses sem ver futebol. Um ano, beleza, você aprende, mas dois anos, cara? Eu gastei quase R$ 2 milhões nesses dois anos dentro de casa. Na minha opinião, foi uma covardia o que fizeram comigo".

Walter teve contrato suspenso com CSA na época. Quando o período estava completo, o Athletico Paranaense lhe abriu as portas.

Suspensão magoou Walter

Os melhores para Walter

  • Atancante

    O Hulk está com 36 anos e está arrebentando no Brasil. Imagina com 23, 24 anos no Porto. Ele fez quatro vezes mais no Porto do que está fazendo no Brasil. Eu ficava no banco olhando e dizia pra ele: não tem graça pra ti jogar. E quem sofreu com ele foram o David Luiz, o Luizão e o Jorge Jesus (zagueiros e técnico do Benfica, rival do Porto, na época).

    Imagem: Ernesto Benavides/AFP
  • E o Haaland?

    O que esse cara está fazendo... Antes de começar a Liga dos Campeões, eu falei que o City seria campeão por causa dele. Se você for ver, a bola chegava toda hora e antes não tinha um centroavante. Gabriel Jesus, Aguero, tudo bem, mas não era um camisa nove. Esse cara é diferente demais. Ele tem tudo para ganhar a Bola de Ouro.

    Imagem: Twitter / Reprodução
  • Zagueiros

    Dois caras que eu sempre gostei de jogar a favor foram o Rodrigo (ex-Vasco) e o Thiago Heleno (do Athletico). Eu olhava para eles jogando e falava: ainda bem que estou a favor. E um zagueiro bem difícil de enfrentar foi o Leonardo Silva (ex-Atlético-MG). Ele é gigante, cara. Eu ficava pequeno perto dele, olhava ele pra cima. Complicado demais.

    Imagem: Gabriel Machado/AGIF
Reprodução/Instagram

'Tenho muito orgulho de mim'

Walter foi longe na carreira, mas poderia ter ido mais. Depois de despontar pelo Inter, ele conheceu o futebol europeu pelo Porto, voltou ao país para jogar no Cruzeiro, depois Goiás, Fluminense, Athletico Paranaense, Paysandu, CSA, Vitória, São Caetano, Botafogo-SP, Santa Cruz-PE, Amazonas, Goiânia e Afogados, até o Pelotas.

Além das camisas de clubes, vestiu a da seleção brasileira de base, mas não da principal. Ele ainda esteve na seleção do Brasileiro de 2013 e levou o Troféu Armando Nogueira, concedido ao melhor jogador da competição.

"Eu cheguei onde eu cheguei. Acho que eu poderia ir mais longe, na seleção brasileira, entendeu? Eu poderia ir um pouquinho mais longe, mas onde eu cheguei foi pelo meu talento, pelo meu dom. Ser o craque do Brasileiro acima do seu peso é para poucos. Eu tenho muito orgulho de mim", disse.

'Não pensei grande'

'Eu não tinha roupa'

Mas toda trajetória heroica tem um começo difícil. Longe da popularidade que tem hoje em dia, Walter chegou ao Rio Grande do Sul com 15 anos para defender o São José. Depois de um bom desempenho partiu para a base do Inter, mas o clima e a falta de condições para lidar com ele assustavam.

Walter é natural de Recife, no Nordeste. Viajando o Brasil atrás do sonho de jogar futebol, se deparou com o frio do inverno gaúcho. Na época, não tinha roupas para vestir e vivia de doações.

"Saí de Recife com 15 para 16 anos, um calor danado, e cheguei no Sul, um frio. Eu sou um cara muito simples. Põe um chinelo, uma bermudinha, uma camiseta e tá bom demais para mim. Mas não é porque eu podia, é porque eu não tinha mesmo. Eu não tinha casaco para colocar, não tinha calça para colocar, não tinha roupa. Um grande amigo meu, hoje meu irmão, chamado Marcos, é que me dava roupa dele", contou.

Foi no Inter que tudo mudou. Depois de um início empolgante, Walter sofreu mais um revés: uma lesão nos ligamentos do joelho. Quase uma temporada parado não impediu a ascensão que o catapultou ao time principal rapidamente e rendeu cinco anos de contrato.

"Era a chance da minha vida, era minha vida que estava em jogo, era a vida da minha mãe, eu tinha de aproveitar", contou. E aproveitou.

'Eu não tinha casaco'

Edu Andrade/Freelancer

'Não me deram aumento, vou pra casa'

Mas nem tudo foram rosas no Colorado. Irritado com a falta de aproveitamento após arrancar elogios da torcida e da imprensa, Walter viveu dois momentos de reclusão. Simplesmente foi embora para casa e não voltou para treinar. O motivo: o salário baixo.

"Eu estava jogando de titular, e o Inter contratou dois jogadores, com todo respeito a eles, que são grandes jogadores: Edu e o Kléber Pereira. Eu ganhava R$ 7 mil, eles chegaram ganhando R$ 250 mil, e quem jogava era eu", contou.

Walter procurou a direção do Internacional pedindo aumento para R$ 35 mil. Ouviu do presidente Vitório Píffero que o novo contrato seria feito, mas o tempo passou e a promessa não foi cumprida:

"O tempo foi passando, passando, teve um dia que cheguei pra treinar e falei: "cara, vou pra casa". Peguei e fui, fiquei 15 dias trancado em casa. E eles doidinhos atrás de mim: "cadê o Walter, cadê o Walter?".

Walter se reapresentou depois disso, foi punido e relegado ao time B, mas o futebol lhe deu nova chance. O rendimento em campo recolocou o jogador como protagonista do time que se preparava para ser campeão da Libertadores de 2010. Mas o aumento de salário que tinha sido prometido caiu no esquecimento. Irritado, ele fugiu de novo.

"Me chamaram porque o time estava mal na Libertadores. Na minha volta, faço gol, ou dou passe, algo assim, e dou a volta por cima. Veio a parada para a Copa do Mundo e nada do meu aumento. Eu estava no hotel que o Inter costumava concentrar e me deu uma dor disso, eu falei: "não me deram aumento, vou para casa". Voltei para casa, fiquei 20 dias e foi minha última palavra, não joguei mais no Inter", recordou.

Peso pode abreviar carreira de Walter

'Perdi muito dinheiro'

O mundo do futebol nem foi sempre afável com Walter. E isso não diz respeito apenas às trocas de clube que acompanham a fase atual da carreira, mas aos pagamentos. Se no Inter ele teve que forçar para receber aumento, atualmente se decepciona pela falta de organização de clubes que nem sequer pagam.

"Fui para o Afogados, pensava que era uma coisa e foi totalmente outra. Em quatro meses que trabalhei, recebi apenas um. Eu pensei: "cara, será que eu quero isso? Não quero mais", disse ele, que admitiu ter pensado em aposentadoria.

Walter sustenta quatro famílias graças a apartamentos que comprou em Goiânia, Recife e Porto Alegre. Uma pessoa, para ele, é especial: a mãe.

"Eu falo que minha mãe é a primeira pessoa. Eu jamais tenho de faltar com a pensão da minha mãe. Se eu ganhar um real, 50 centavos vão para ela. Primeiramente Deus, segundo a minha mãe, que fez tudo por mim. São três ou quatro famílias, não são três ou quatro pessoas que dependem de mim. E as minhas filhas também dependem de mim, as duas. Sem dúvida são muitas pessoas. E isso começou com 15 para 16 anos, imagina a cabeça", explica.

Lucas Canez AI/ECP Lucas Canez AI/ECP

'Não posso perder pra mim mesmo'

Walter hoje joga futebol pelo amor ao esporte, porque acredita que ainda pode ter nele sua razão de viver. "A gente que joga futebol só sabe jogar futebol, nossa cabeça está no futebol desde criança", disse.

Hoje no Pelotas, ele não procura uma retomada que lhe coloque na Europa novamente. A felicidade que achou no Sul é estar perto da filha, que já viu uma série de vezes desde a chegada. É perceber um projeto em que possa atuar regularmente, ter sonhos, objetivos.

"É muito importante para mim estar perto da minha filha. Fazia quase um ano que não a via e logo na primeira semana vi três vezes. Eu e minha filha somos muito apegados. Mesmo quando estávamos longe era assim. Isso foi tudo para mim, uma alegria muito grande e sou grato a Deus por me trazer essa alegria", disse.

Walter planeja renovar contrato com o Pelotas, jogar mais alguns anos e então se tornar treinador. Ele já se matriculou no curso da CBF e pretende estudar para se arriscar na beira do campo. "Eu digo que o time precisa de dois rapidinhos, um meia e um centroavante", opinou o "técnico".

E toda sua história será contada em um livro, cujo lançamento atrasou para novos capítulos. A passagem pelo futebol 7 e, certamente, o recomeço no Pelotas vão colorir as páginas da biografia de um vencedor, que superou tristezas, lutou contra o próprio corpo e encheu de alegria os gramados nos quais deitou e rolou.

Arquivo pessoal

'Sinto que ele está vivo'

Em meio a tantas coisas, a carreira, o futuro, a luta para emagrecer, Walter ainda vive um drama familiar. O pai, José Amaro Ferreira, está desaparecido desde 2018 e não há qualquer informação consistente sobre o paradeiro dele.

Era sábado de Carnaval e Amaro, então com 69 anos, deixou a casa da ex-mulher, Edith, mãe de Walter, perto da Praia de Boa Viagem, em Recife, por volta da 19h30. Teria ido comprar cigarros, mas nunca retornou.

O desaparecimento tomou o noticiário da época, mas ainda que o atleta e outros familiares tenham pressionado muito, ao longo de vários anos, nunca houve resposta. Walter foi chamado pela polícia três vezes para fazer exames de DNA em corpos sem identificação. Nenhum deles deu positivo.

"Eu sinto que ele está vivo. Ele estava perdendo a visão, os olhos não estavam legais, sabe. Ele já estava velho, eu sei. Sinto que ele não morreu. Mas é bem difícil, complicado, machuca", contou. "Achei que quando estivesse em Recife conseguiria resolver isso. Mas nada, nada, nada. Eu penso nisso todos os dias", completou.

Drama familiar

Esse é um assunto que me dói. Não tenho notícia nenhuma. Já fui fazer três exames para ver se era meu pai que tinham achado, que ele tinha morrido, mas não era. Não sei se é bom ou ruim. É mais fácil se estiver morto e achar, pronto, acabou, sabe... A gente sofre, mas sabe que está morto. Agora, não saber nada é muito difícil. Isso em dói todos os dias, machuca muito, não sei onde está meu pai"

Walter, sobre o pai, José Amaro, desaparecido desde 2018

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