Agora é na calculadora

Ex-zagueiro, comentarista e dirigente, William vira a página e passa a ajudar atletas no mercado financeiro

Diego Salgado e Pedro Lopes Do UOL, em São Paulo Lucas Seixas/UOL

O cliente desavisado que vê William Machado num dia comum de trabalho, entre mesas, computadores, planilhas e calculadoras, não imagina que dez anos atrás ele ergueu duas taças como capitão do Corinthians. Nos últimos anos foi comentarista de TV e dirigente de três clubes. Trocou tudo para trabalhar no mercado financeiro.

A vida do ex-zagueiro mudou radicalmente, mas, de certa forma, segue ligada ao esporte. Há seis meses, William faz o que idealizou para além do futebol, numa espécie de segundo sonho: ajudar pessoas a cuidar dos seus investimentos. Mais da metade dos seus clientes como assessor financeiro são atletas preocupados com o futuro, como o próprio William fora um dia.

O jogador começou a juntar dinheiro em 1998. O objetivo era comprar um carro. "Eu saía com meus amigos, e a gente rachava o táxi. Ia de ônibus e voltava de táxi. Mas, às vezes, vínhamos em horários diferentes. Teve um dia que eu voltei sozinho. O valor deu mais caro que o que tinha gasto na festa. Eu falei que nunca mais ia pegar táxi, que ia comprar meu carro", lembra.

Foram dois anos até conseguir reunir os R$ 8 mil necessários para um Uno Mille 1993. William ainda negociou com o vendedor e conseguiu R$ 50 de desconto. O momento foi marcante para o jovem jogador.

"Foi um marco na minha história. Foi o primeiro bem que tive, o esforço todo que fiz. Fiquei muito feliz e orgulhoso de poder comprar o carro. Só troquei em 2005." O Uno não foi deixado de lado, foi passado para o pai, que aposentou seu Corcel antigo.

Só nos últimos anos da carreira dentro de campo, como atleta de Grêmio e Corinthians, é que William conseguiu investir e gerar patrimônio. Ao mesmo tempo, usou o tempo livre nas concentrações para ler e aprender. Brotava ali, sem que ele soubesse, a segunda carreira.

No Corinthians, William dava conselhos aos companheiros e chegou a ser consultado por alguns deles. A assessoria financeira nasceu informalmente, entre um jogo e outro. Foi questão de tempo até a atividade virar coisa séria.

Lucas Seixas/UOL

Assista à entrevista completa no canal do UOL Esporte no YouTube.

Cada vírgula no caderno

Natural de Belo Horizonte, William cresceu numa família simples e aprendeu desde cedo a controlar os gastos. O pai era seu mentor. Todas as noites, anotava as despesas do dia em um caderno. O filho questionava e sempre ouvia a mesma resposta: "Ganhando pouco, é preciso um controle maior, é preciso saber para onde o dinheiro vai".

Com o exemplo em mente, William conseguiu uma bolsa de estudos destinada a atletas e estudou ciências contábeis numa faculdade particular. O conhecimento adquirido ali foi fundamental para a transição de carreira, mas principalmente para administrar suas próprias finanças de maneira sustentável.

A receita dele, seja em qual clube fosse, era salvar pelo menos 70% do salário. E ter hábitos que não comprometessem o orçamento. Quando chegou ao Grêmio, por exemplo, escolheu um apartamento simples para viver, indo na contramão do perfil ostentação de muitos boleiros.

William jogou profissionalmente por 15 anos, mas só viu a carreira decolar depois dos 30, quando já estava no Grêmio. Até aquele momento, depois de dez anos entre clubes pequenos e médio, o patrimônio do ex-zagueiro ainda não o deixava tranquilo para o pós-carreira.

"Eu não conseguiria viver do que acumulei até ali, mesmo tendo consciência e gastando pouco. A realidade do futebol brasileiro é muito mais dura que parece. Quando cheguei no Grêmio ainda estava em período probatório, cheguei de um time de Série C. Meu salário não era fantástico", relembrou William, que jogou dois anos no time gaúcho e outros três no Corinthians.

Hoje, aos 42 anos, vivendo em São Paulo, ele optou por não ter carro. Tudo em nome das finanças.

Lucas Seixas/UOL

William deixou SporTV porque "era muito téorico"

Depois que deixou o gramado, William iniciou, de imediato, uma carreira como dirigente, mesmo tendo descartado essa possibilidade anos antes, ainda jogador. Ele queria "ajudar a melhorar o futebol" de outra forma. Porém a derrota do Corinthians para o Tolima na pré-Libertadores de 2011 fez o ex-zagueiro mudar os planos e aceitar uma proposta para ser gerente de futebol do clube.

O ofício durou apenas 24 dias. "Minha cabeça não estava ali", disse. Ele ainda teve duas passagens como dirigente: uma no Bahia, em 2014, e outra no Santos, em 2018. Nas duas ocasiões, William pediu demissão - a primeira por questões familiares e a segunda justamente porque recebera uma proposta do mercado financeiro.

"Era tudo aquilo que tinha idealizado em 2010, mas que eu não tinha conseguido fazer. Pensei que não podia abrir mão da oportunidade, porque poderia não receber outra. O Santos foi muito transparente comigo. Eu achava que tinha de ser transparente também. Não era um sonho de criança, mas era um segundo sonho."

Outra tentativa de pós-carreira tradicionalmente boleira foi como comentarista de TV. Mas seus olhos não brilharam. "Eu ainda não tinha descoberto a melhor forma de ajudar o futebol. Tentei fazer isso com os comentários na TV, mas achei depois de um tempo que eles eram muito teóricos. Ficava muito na parte teórica e não na parte prática. Então, quando recebi o convite, pensei em colocar em prática minhas ideias".

Lucas Seixas/UOL Lucas Seixas/UOL

Atletas mostram dificuldade para juntar dinheiro

Capita não esconde que observar as dificuldades enfrentadas por outros jogadores na gestão do próprio patrimônio e finanças foi determinante em sua guinada para o mercado financeiro. O ex-atleta identifica vários obstáculos comuns na trajetória dos colegas, de casamentos prematuros a estafes que exageram na blindagem.

"É muito difícil para um atleta que começa em time grande. Ele tem um relacionamento natural, aquilo caminha e muitas vezes casa cedo, principalmente quando vai para fora do país. Aí, tanto o homem quanto a mulher não estão maduros o suficiente para encarar o que é um casamento. Esse casar cedo acaba impactando, muitas vezes, em passar por um divórcio, um segundo casamento. A pessoa madura toma melhores decisões."

Ele vê os jogadores como "um pouco reféns das características de ser um atleta". Dentre elas, aponta, estão os "estafes" - grupos de profissionais que cuidam de praticamente todos os aspectos extracampo da carreira do jogadores. Isso, por vezes, faz com que jogadores não tenham a preocupação de se preparar para cuidar do próprio patrimônio.

Para William, a solução é ter ao redor profissionais que auxiliem na gestão de patrimônio, mas sempre com participação dos próprios atletas.

"O que vejo hoje é atletas que não se preparam para o pós-carreira durante a carreira. Se preocupa faltando dois, um ano. É um tempo perdido. Pode ficar no hotel jogando videogame, baralho. Mas se separar duas horas, uma hora de cada concentração, dá para ler um livro, fazer um curso".

Até eles se enrolaram

Paulo Fonseca/Folha Imagem

Müller

Apesar da carreira em alto nível, com passagens por São Paulo, Palmeiras, futebol italiano e seleção brasileira, o atacante teve problemas financeiros após deixar os gramados. Em 2011, em entrevista ao jornal "Marca Brasil", disse: "Fiz muita bobagem. Gastei tudo com besteira, com mulheres, carros, etc. Mas graças a Deus nunca usei drogas, nunca fumei nem mesmo um cigarro. Gastei com vaidades pessoais. Por eu ser uma pessoa generosa, muita gente se aproveitou mesmo de mim. Perdi tudo que consegui no futebol. Joguei fora o que construí ao longo de 20 anos."

Boris Streubel/Getty Images for Laureus

Cafu

Com 149 jogos vestindo a camisa da seleção brasileira e três finais de Copa do Mundo, teve carreira em alto nível até os 40 anos. Uma das trajetórias mais vitoriosas da história do futebol não foi suficiente para evitar problemas financeiros. Reportagem da Folha de S. Paulo no último dia 15 de julho mostra que o ex-jogador e sua esposa já perderam cinco imóveis por dívidas, e contam com mais de 15 penhorados em cobranças judiciais. Também é alvo de ações da Receita Federal por dívidas fiscais, e empréstimos em nome de sua empresa, com valores que vão de R$ 1,1 mi a R$ 6 mi.

Reprodução Instagram

Ronaldinho

Nem mesmo um ex-melhor jogador do mundo é sinônimo de finanças em dia. Ronaldinho, que defendeu Barcelona, PSG e Milan, na Europa, além de Grêmio, Flamengo e Atlético-MG no Brasil, enfrenta problemas graves na Justiça e chegou a ter seu passaporte retido pelas autoridades brasileiras no começo do ano. Segundo a Folha de S. Paulo, o ex-jogador possui 57 imóveis penhorados judicialmente, uma dívida ambiental de R$ 9,5 milhões (responsável pela retenção de passaporte) e mais de R$ 7 milhões em protestos em cartórios no Rio Grande do Sul.

Lucas Seixas/UOL Lucas Seixas/UOL

Tempo para estudar

Ler sobre finanças sempre foi um hábito de William. Quando era jogador de times menores, havia tempo de sobra, com toda a semana livre, sem jogos. Por isso, ele conseguiu emendar iniciar a faculdade sem muitos problemas de horários.

Nos clubes médios e grandes, diante de uma rotina pesada de viagem, William encontrou uma saída: passou a ler e fazer cursos nas brechas da agenda. Assim, aeroportos, hotéis e concentração passaram a ser palco de estudos.

Para isso, William abdicou muitas vezes dos passatempos corriqueiros dos atletas, como videogame e baralho. Ele separava duas horas por dia para estudar. "É um momento que o atleta deveria se preocupar em aprender algo além do que ele está fazendo naquele momento, seja no futebol, no vôlei, na ginástica, na natação", disse.

O atleta muitas vezes faz coisas por ser muito generoso. Ele tem amigos de infância, primos, familiares vivendo a vida dele. E ele quer mantê-los perto. O problema é que tem custo. Ele não consegue desmontar essa dependência. Com coração bom, ele não enxerga o que gasta quando é jogador, não cria patrimônio. É preciso ajudar de outra forma para eles serem autossuficiente."

William, sobre a dificuldade em construir patrimônio

Busquei fazer a faculdade durante a trajetória nos times menores. Tinha o meio de semana livre, sem viagens. Fazia o que todas as pessoas fazem: com 18, 20 anos, na faculdade e trabalhando. Por que o jogador não pode fazer isso? O que vejo hoje é atletas que não se preparam para o pós-carreira durante a carreira. Se preocupa faltando dois, um ano. É um tempo perdido."

William, sobre a necessidade em pensar na aposentadoria

Daniel Augusto Jr./Ag. Corinthians

Assessoria começou com Dentinho e Júlio César

William só ingressou na carreira de analista financeiro depois de pendurar as chuteiras, mas já exercia informalmente a profissão. Enquanto alguns jogadores começam a ajustar posicionamento tático de companheiros e mostrar veia de treinador antes da aposentadoria, o Capita distribuía livros de finanças e tentava auxiliar os interessados em aprender a guardar dinheiro.

"No Corinthians, já estava mais no fim de carreira, via a necessidade para mim [de planejamento financeiro] e passei a orientar alguns companheiros. Isso acabou despertando no vestiário interesse. A partir desse momento, me perguntavam sobre investimentos, sobre livros. Passei, então, a compartilhar. Dei para o Júlio César, para o Dentinho".

O interesse dos amigos no assunto foi o que fez William pensar em seguir esse caminho, deixando de lado carreiras mais óbvias para um ex-jogador, como treinador ou comentarista.

"Foi nesse momento que parei para pensar. Eu não pensava nisso como carreira antes, mas como começou o movimento contrário, de eles virem perguntar, isso dava um prazer grande. Foi quando vi que gostaria de fazer."

Lucas Seixas/UOL

Calculadora financeira encerrou discussão de bicho no Ipatinga

Líder dos times em que passou, William negociava bichos dos jogadores. No Corinthians, era ele quem conversava a sós com Mário Gobbi, então diretor de futebol. Ele discutia valores e defendia os interesses do elenco. Anos antes, no Joinville, o ex-zagueiro passou por uma situação engraçada quando fazia parte da comissão. O presidente do clube começou a fazer contas numa calculadora. William, então, sacou uma HP (calculadora financeira, com funções mais avançadas, utilizada com frequência no mercado financeiro). Bastou para a negociação ser encerrada. O dirigente disse que não havia como disputar com uma calculadora científica.

Almeida Rocha/Folhapress

Salário de R$ 24 pós-seleção

Teve uma época em que William não conseguia salvar parte do salário para o futuro. Na verdade, isso aconteceu porque não era nem salário, era uma ajuda de custo. Em 1996, aos 20 anos, quando se sagrou campeão da Copa São Paulo, com direito a gol na final, ele recebia R$ 24,50 por mês [equivalente hoje a R$ 102,68 - valor corrigido pelo índice IPCA). Àquela altura, fazia três anos que ele jogara o Sul-Americano sub-17 como capitão da seleção. "Por mais que quisesse guardar, quando recebia, me desfazia do dinheiro".

Daniel Augusto Jr./Ag. Corinthians

Amigo Ronaldo virou fenômeno

William e Ronaldo começaram a carreira de forma similar: em time pequenos, com uma oportunidade na seleção sub-17 em 1993. Na competição, eles se tornaram amigos. Naquele mesmo ano, Ronaldo, já no Cruzeiro, chegou a frequentar a casa de William em BH. Os companheiros se distanciaram nos anos seguintes, pois Ronaldo explodiu e foi jogar na Europa. Eles se reencontram no Corinthians, em 2009. "Para mim foi o melhor que vi jogar. Conseguir jogar sem joelho e acima do peso e fazer o que ele fez, tinha de ser fenômeno".

Daniel Augusto Jr./Ag. Corinthians

Edu Gaspar sucessor

A saída repentina de William do Corinthians abriu espaço para um novato desempenhar a função de gerente de futebol. Foi assim que Edu Gaspar, hoje no Arsenal e com passagem pela seleção brasileira, teve sua primeira experiência como dirigente.

"Tenho um pouco de culpa nisso [risos]. Quando tomei a decisão, o Andrés [Sanchez] me perguntou quem colocaria no lugar. Eu falei o Edu, que é um cara supereducado, que fala inglês, espanhol, e tem uma história no Corinthians fantástica", disse William.

Edu, revelado pelo clube alvinegro em 1999, voltou ao Brasil dez anos depois. E, no Corinthians, encontrou William, que era um dos líderes do elenco comandado por Mano Menezes.

"A gente era muito próximo, almoçava e jantava junto nas concentrações. Eu via nele essa pessoa com essa capacidade, esse perfil. Uma coisa é ali no almoço e no jantar. Outra foi ele enfrentar os desafios que são enormes no dia a dia. Ele se mostrou muito hábil, com muito talento. Ele é muito merecedor do posto que ele ocupa hoje."

+Especiais

Arte/UOL

Roberto Batata

Camisa 7 do Cruzeiro que morreu antes da final da Libertadores de 1976

Ler mais
Marília Camelo/UOL

O incansável

Alcoolismo e um sonho de estrear profissionalmente no futebol aos 38 anos

Ler mais
Antonio Costa/Gazeta do Povo/Folha Imagem

Washington

Coração Valente relembra como ganhou apelido e o dia em que chorou

Ler mais
Ernesto Benavides/AFP

Gareca

Pede segunda chance no futebol brasileiro e diz que faltou sorte no Palmeiras

Ler mais
Topo