Topo

Piscina de Slater divide opiniões no surfe, mas pode ser "solução olímpica"

Kelly Slater pega onda em Surf Ranch, na Califórnia - WSL / Sean Rowland
Kelly Slater pega onda em Surf Ranch, na Califórnia Imagem: WSL / Sean Rowland

Gustavo Setti e Thiago Rocha

Do UOL, em São Paulo (SP)

06/09/2018 04h00

É unânime a opinião de que o surfe entrará em uma nova era a partir desta quinta-feira (6), com o início do Surf Ranch Pro, na Califórnia. Será a primeira etapa da história do Circuito Mundial disputada em ondas artificiais, uma inovação capitaneada pelo maior nome da modalidade: Kelly Slater. O evento ocorrerá na cidade de Leemore, a cerca de 200 quilômetros de distância do litoral norte-americano.

Construído no meio de uma zona rural, o simulador idealizado por Slater, 11 vezes campeão mundial, após anos de pesquisas científicas em busca da "onda perfeita", virou o mecanismo que pode proporcionar ao surfe chegar a lugares onde jamais existiria por meios naturais. Há também um temor de que a tecnologia desfigure o esporte e o torne artificial demais, uma cruel ironia que afronta o espírito que vigora entre os surfistas: a relação harmoniosa entre o homem e o mar.

A solução artificial virou o principal aliado de um projeto de massificação do surfe após a inclusão da modalidade nos Jogos Olímpicos a partir de 2020, em Tóquio, no Japão, ao lado de outras vertentes dos chamados "esportes radicais", como a escalada e o skate - esses dois, aliás, adaptáveis em espaços fechados, sem depender de cenários naturais para serem viabilizados como competição. 

A novidade vem sendo tratada com entusiasmo dentro do circuito. Desde 2017, os surfistas da elite mundial tiveram acessos esporádicos ao Surf Ranch para treinamentos. Em setembro passado, um torneio para convidados no litoral artificial de Slater teve final brasileira, com Gabriel Medina vencendo Filipe Toledo na bateria decisiva. “É a onda dos sonhos”, disse o campeão mundial de 2014 na ocasião. Houve também uma competição por equipes neste ano, em maio, a Founders Cup, em que o Brasil foi vice.

Existe também uma dose de mistério cercando as ondas artificiais. O torneio vencido por Medina foi fechado ao público e não contou com transmissão por TV ou internet - a Founders Cup, no entanto, foi aberta aos fãs. A divulgação de imagens ficou limitada a clipes oficiais e compartilhamentos em redes sociais (confira abaixo o vídeo do evento). A World Surf League (WSL) chegou a orientar os atletas a não dar detalhes sobre o local e evitar o assunto em entrevistas.

O sigilo tem mais viés comercial do que esportivo. Em 2016, a WSL anunciou a compra de ações para se tornar sócia majoritária da Kelly Slater Wave Company, a empresa que desenvolveu a piscina de ondas artificiais. Em novembro de 2017, a organizadora do circuito mundial de surfe anunciou a inclusão de uma etapa no Surf Ranch a partir de 2018, substituindo o torneio antes realizado em Trestles, na Califórnia.

“Nós compartilhamos a mesma visão e paixão pelo cultivo de surfe de alta performance, e estamos animados para, além de trabalhar juntos sob o mesmo teto, trazer o esporte a níveis e lugares nunca antes possíveis”, disse Paul Speaker, ex-CEO da WSL, na época da aquisição.

No lado esportivo, o surfe em condições artificiais abre um leque para novos formatos de disputa, além de ser mais atrativo para a TV, que não terá problemas de datas e horários para exibir uma competição. A etapa de Surf Ranch servirá como um evento-teste, reunindo a nata do surfe mundial para testar a eficácia da tecnologia e a resposta do público à novidade.

Sem a intervenção da natureza, acredita-se que as ondas artificiais exigirão ainda mais da capacidade técnica dos surfistas. Por outro lado, deixaria em segundo plano a capacidade de improviso e de leitura das condições do mar, deixando as competições mais pragmáticas e menos autênticas. As primeiras impressões, no entanto, só poderão ser tiradas após a competição no “piscinão do Slater”.

Oportunidade olímpica

Medina e Moore - WSL / Sean Rowland - WSL / Sean Rowland
Gabriel Medina e Carissa Moore ganharam torneio em Surf Ranch, em 2017
Imagem: WSL / Sean Rowland

A possibilidade de difundir as ondas artificiais pelo mundo, ainda que não se saiba ao certo como isso ocorreria, tem relação direta na inclusão do surfe ao programa olímpico a partir de 2020. Investir em uma piscina ajudaria a diminuir distâncias, não excluiria países sem praias de organizar o evento e ainda se encaixaria com perfeição à transmissão de TV, com baterias realizadas com hora marcada, sem depender das condições do mar.

Após meses de indefinições, a organização dos próximos Jogos descartou o modo artificial por questões logísticas e confirmou a disputa em Chiba, litoral que fica a 60 quilômetros de Tóquio, mesmo com os riscos climáticos de possíveis atrasos e adiamento de baterias. Porém, a piscina é uma possibilidade real para a Olimpíada de Paris, em 2024.

“Sobre a piscina, é fantástico. É uma coisa para o presente, nem mais para o futuro. Espero que o esporte cresça muito com isso, porque vai chegar em lugares como Índia, China e vários outros países que não têm tanta onda. Temos acompanhado muito a discussão, se a Olimpíada vai usar ou não. Tem uma preocupação geral do COI (Comitê Olímpico Internacional), da gente e da ISA (Associação Internacional de Surfe) sobre o mar no Japão. Teremos 12 dias de janela para fazer o campeonato em três ou quatro dias. Corremos o risco de não ter tanta onda”, alertou Adalvo Argolo, presidente da Confederação Brasileira de Surfe (CBS).

Como funciona o piscinão do Slater

Surf Ranch - WSL / Kelly Cestari - WSL / Kelly Cestari
Formação de ondas em teste no Surf Ranch
Imagem: WSL / Kelly Cestari

O terreno escolhido por Kelly Slater para montar o seu rancho de surfe era um lago desativado para a prática do esqui aquático. Em parceria com Adam Fincham, professor de engenharia mecânica e aeroespacial da Universidade do Sul da Califórnia (USC), eles trabalharam por nove anos em busca de um sistema que permitisse a formação quase perfeita de ondas, de direita ou esquerda, sem irregularidades e com velocidade de deslocamento suficiente para a prática do surfe como competição.

A grande estrela da piscina, que tem 700 metros de comprimento por 150 metros de largura, chama-se “hydrofoil”. É uma lâmina de metal, instalada em uma das laterais, que vai ou volta toda a extensão do lago impulsionada por um sistema de trilhos (cabos de aço e mais de 150 pneus de caminhão), gerando a onda. Bancos de areia e recifes artificiais ajudam na hidrodinâmica para a recriação do fenômeno natural.

No Surf Ranch, a formação de uma onda pode durar até 50 segundos, com estabilidade de altura e formação. Em situações naturais, os surfistas muitas vezes não chegam a ficar 10 segundos em cima da prancha na tentativa de pontuar em uma bateria.

Outras tentativas esbarraram em amadorismo

Filipe Toledo - Divulgação/Wavegarden - Divulgação/Wavegarden
Filipe Toledo, em uma das piscinas da Wavegarden
Imagem: Divulgação/Wavegarden

Apesar de toda a revolução que a piscina de Kelly Slater deverá promover ao surfe, a ideia de competir em ondas artificiais não é nova. Em 1985, os melhores surfistas do mundo participaram de um torneio em um parque aquático de Allentown, na Pensilvânia (EUA), mas o projeto não foi adiante pela tecnologia precária da época.

Já na década de 1990, piscinas de ondas artificiais receberam alguns campeonatos, um deles vencido justamente por Slater na Disney, enquanto outros eventos movimentaram a cidade de Miyazaki, no Japão, onde estava a Ocean Dome, considerada a melhor piscina de ondas da época.

Foi em 2008 que o maior campeão da história do surfe fundou a Kelly Slater Wave Co. Desde então, ele enfrentou processos acusado por um shaper australiano de ter roubado a ideia inicial do projeto, e a principal concorrente do norte-americano atualmente é a espanhola Wavegarden, que usa tecnologia parecida com a do Surf Ranch. Os donos da empresa, inclusive, se consideram pioneiros na ideia.

Como será o Surf Ranch Pro

Surf ranch - Divulgação/WSL - Divulgação/WSL
Evento no Surf Ranch tem venda de ingressos e show de rock
Imagem: Divulgação/WSL

Entre quinta a domingo, 36 homens e 18 mulheres terão três chances de surfar uma onda para a esquerda e uma para a direita em Lemoore. Os oito melhores no masculino e as quatro do feminino que somarem as notas mais altas avançam às finais e decidirão o título novamente com três ondas surfadas para a esquerda e três para a direita. O formato da bateria será diferente - em vez de "um contra um", o atleta cai sozinho na água.

Dentro da piscina, os surfistas irão surfar em horário marcado e pela ordem do ranking mundial. Desta forma, o brasileiro Filipe Toledo, líder até o momento, entrará às 21h56 (de Brasília) de sexta-feira, logo depois de Gabriel Medina, que é o segundo na corrida pelo título, às 21h48.

O evento ainda terá novidades não só dentro d´água, mas fora também. Afinal, esta é a primeira vez na história que uma etapa do Circuito Mundial conta com venda de ingressos. Os preços variam de US$ 99 (R$ 410) por um dia a US$ 30 mil (R$ 124 mil) para assistir a todos os dias do torneio em camarote para dez pessoas com vista privilegiada da piscina e comida e bebida inclusas.

Fora isso, quem comparecer ao Surf Ranch no sábado poderá assistir ao show da banda de rock Blink-182, que irá se apresentar depois que a piscina for desligada.

Opiniões sobre a piscina artificial

Filipe Toledo - WSL / Sean Rowland - WSL / Sean Rowland
O brasileiro Filipe Toledo em ação no Surf Ranch, em 2017
Imagem: WSL / Sean Rowland

"A gente teve várias reuniões durante o ano todo para decidir o formato do campeonato, e acho que vai ser muito positivo, de uma forma diferente do que está acostumado, mas ao mesmo tempo vai ser bem legal.”
Filipe Toledo, atual líder do ranking mundial

Será maravilhoso estar tão longe da praia e ainda assim pegar ondas incríveis. É um sonho. É incrível ver o que o homem está fazendo com a tecnologia e criando as próprias ondas. Com certeza, é um caminho a ser seguido.”
Bethany Hamilton, surfista norte-americana 

Há uma chance real de o surfe profissional mudar-se para um lugar ao qual eu não pertenço. A WSL pode ter tido uma percepção sobre o surfe profissional que eu não tenho. Eles podem estar jogando além do que consigo imaginar. Se tivermos mais tanques no circuito, bem, isso será triste, mas eu simplesmente fecharei o meu laptop e não assistirei.” 
Matt Warshaw – ex-surfista e escritor