Topo

Slater criticou proibição do surfe. É seguro ir ao mar durante a pandemia?

Noe Mar McGonagle, campeão mundial de surfe em 2015, é detido pela polícia por surfar em quarentena - Reprtodução/Surfline
Noe Mar McGonagle, campeão mundial de surfe em 2015, é detido pela polícia por surfar em quarentena Imagem: Reprtodução/Surfline

Marcello De Vico

Do UOL, em Santos (SP)

25/04/2020 04h00

Na semana passada, o surfista 11 vezes campeão do mundo, Kelly Slater, reclamou sobre a proibição do surfe por conta da pandemia do novo coronavírus. O norte-americano de 48 anos usou as redes sociais para expor sua insatisfação com a medida adotada em diversos locais do mundo, questionando a incoerência de o esporte estar proibido ao mesmo tempo em que seguem abertos em certos países.

Na Austrália durante a pandemia, Kelly Slater escreveu sobre ordens dadas pelas autoridades e citou o caso de Trestles, pico de surfe nos Estados Unidos onde o esporte foi totalmente proibido: "Disseram que eu não poderia ficar parado e olhando o mar hoje na Austrália. Isso em primeiro. Abaixo, temos autoridades vigiando Trestles e garantindo que ninguém surfe. Obviamente, esse tipo de coisa faz com que todos se amontoem em qualquer outro lugar em que você ainda possa surfar ou se exercitar (e enlouquecer algumas pessoas)".

Kelly Slater se manifesta sobre proibição do surfe durante a quarentena - Reprodução/Instagram - Reprodução/Instagram
Imagem: Reprodução/Instagram

Ao mesmo tempo em que vários surfistas continuam praticando o esporte mesmo com recomendações e ordens para que se fique em casa, outros profissionais vão pelo lado contrário e dizem entender a necessidade de evitar o surfe durante o período de quarentena. É o caso do pernambucano Carlos Burle, lenda do surfe brasileiro e especialista em ondas gigantes.

"Pelo meu lado de surfista profissional, eu olho e não entendo. Eu posso ir para a água, posso me exercitar, ficar com a cabeça boa... O surfista profissional Carlos Burle acha que podia ser liberado, mas o cidadão Carlos Burle entende que as leis estão aí para serem cumpridas, que não é momento de recreação, é um momento em que precisamos estar unidos pelo bem de todos... E entendo também que se todos tivessem maior conhecimento, poderíamos levar essa situação de maneira mais harmônica, mas é difícil... Você vai liberar e, quando vê, a situação sai do controle", disse ao UOL Esporte.

"Quando você não pode ajudar, pelo menos não atrapalha. Eu prefiro colaborar com a situação".

Surfista Carlos Burle - Divulgação - Divulgação
Imagem: Divulgação

Jessé Mendes, surfista brasileiro que estava na elite do surfe mundial até o ano passado, pensa de forma semelhante: "Então, o surfe, acho que até tem menos risco, porque é aberto e é difícil você estar muito perto na água, então a contaminação pelo surfe é bem mais difícil, mas se você liberar o surfe, outras pessoas vão entender por outro lado e vai ser ruim. Então acho que, por esse lado, foi bom parar o surfe".

O que dizem os especialistas?

Mas o que dizem os especialistas sobre a prática do surfe e de esportes ao ar livre durante o período de pandemia? É seguro continuar se exercitando pelas ruas e praias? Nada disso. De acordo com o Dr. Jean Gorinchteyn, médico do Instituto de Infectologia do Hospital Emílio Ribas, tais esportes oferecem enorme risco de contágio, mesmo com um certo distanciamento.

"Quando o indivíduo chega nesses locais, na praia, na água, ou numa caminhada numa praça... O problema não é estar lá, até porque, muitas vezes, você está solitário no mar. O problema é o que está acontecendo entre você sair de casa e chegar até lá. É o caminho", afirmou.

"Já ficou muito claro que a transmissão não é só por gotículas de saliva, ela também está relacionada ao toque. A hora que você tocou o botão do elevador, o portão do prédio, ou você abrir o elevador e alguém entrar, e começar a falar no celular junto, e gotejar... E a gente aprendeu que o risco está até na roupa. Inclusive, existe relatos de que as mulheres realmente têm que prender o cabelo e todo dia lavá-lo. Então a gente vê que estamos em outro cenário. O problema não é lá [no mar]", diz o médico em entrevista à reportagem.

"É natural que o surfista tenda a se aproximar na água. E quando você se aproxima, você goteja. E o mar, pela distância, pelo barulho, às vezes as pessoas se aproximam: 'O que você falou? Oi?'. E você perde aquela segurança de um metro e meio. E a própria marola, quando vem, aproxima as pessoas, mesmo sem você querer", acrescenta Jean Gorinchteyn.

Segundo o infectologista, até uma 'inocente' caminhada —sem máscara— pode provocar o contágio, mesmo como uma distância aparentemente segura. "Tem um estudo da Bélgica de que, para corrida, a distância tem que ser de uns 20 metros. De 5 metros é pra se você está andando. E você vê as pessoas e elas estão praticamente em fila indiana. E mesmo bicicleta, nessas comunitárias, você precisa higienizar, você não sabe quem usou, quanto tempo ficou...", opina o médico.

Detenção é o caminho?

Em cidades como o Rio de Janeiro, por exemplo, desobedecer as ordens das autoridades em relação às atividades em praias e mares vem provocando até algumas detenções - como o caso da ex-mulher e filha do deputado Luiz Lima no início desta semana. Para citar um exemplo específico do surfe, Noe Mar McGonagle, campeão mundial da Associação Internacional de Surf (ISA) em 2015, foi detido pela polícia da Costa Rica por furar a quarentena.

E de acordo com Jean Gorinchteyn, esse deve mesmo ser o caminho para se reduzir ainda mais a propagação do vírus. "Não tenha dúvidas. Em Israel, aconteceu isso essa semana. Isso é perfeito. Precisa. Alguém vai ter que ser usado como forma de orientar as pessoas", completa.

Veja o depoimento completo de Carlos Burle

Tem leitos que podem ser comprometidos

É um momento que pensar em recreação seria muito egoísmo. Mas o surfe pra mim não é só recreação, é prática de esporte. Inclusive o que mais motivo hoje a surfar é praticar o esporte do que a recreação em si. Lógico que eu me divirto. Inclusive eu gosto mais de situações em que você está compartilhando com os amigos, o ritual do surfe pra mim é saudável: água salgada, sol, praia, exercício físico, ar puro, tudo isso é ótimo. Então, você olhando por esse lado, por que as pessoas não estão surfando? Se estão dando uma caminhada...

Agora, se você for olhar pelo lado de que está todo mundo concentrado em lidar com essa pandemia da melhor forma possível, e você tem o risco dentro do esporte de algum problema acontecer, algum acidente... Tem leitos que podem ser comprometidos por pessoas que estão precisando, um profissional da área de saúde que poderia estar dando ajuda pra outra pessoa, vai dar ajuda pra quem estava pegando onda...

Esse aspecto me chama atenção. Numa grande metrópole, onde a necessidade de leitos é bem maior que o Havaí, por exemplo, que tem população menor e está tudo mais controlado... E dependendo da população também, se vão entender a mensagem de que pode surfar, mas não pode aglomerar... Porque às vezes você passa a mensagem, mas a população absorve de outra forma, você vê e tá todo mundo na praia...

"Eu prefiro colaborar com a situação"

O meu lado de surfista profissional, eu olho e não entendo. Eu posso ir pra água, posso me exercitar, ficar com a cabeça boa... O surfista profissional Carlos Burle acha que podia ser liberado, mas o cidadão Carlos Burle entende que as leis estão aí para serem cumpridas, que não é momento de recreação, é um momento em que precisamos estar unidos por uma causa maior pelo bem de todos... E entendo também que se todos tivessem maior conhecimento, discernimento, sabedoria, poderíamos levar essa situação de maneira mais harmônica, mas é difícil... Você vai liberar e, quando vê, a situação sai do controle... Essa é a minha visão. Quando você não pode ajudar, pelo menos não atrapalha. Eu prefiro colaborar com a situação.

Veja o depoimento completo de Jessé Mendes

Surfista brasileiro Jessé Mendes - WSL / Matt Dunbar  - WSL / Matt Dunbar
Imagem: WSL / Matt Dunbar

"No Brasil é mais um lado cultural"

Eu acho que, olhando pelo lado do Brasil, é mais um lado cultural. As pessoas já estão desrespeitando a lei normalmente e com o que está acontecendo. Pelo que estou sabendo por familiares meus, o pessoal está tirando o mercado hoje em dia como um lugar de lazer, está cheio de gente, vai a família inteira fazer compra... Você tem que tomar um cuidado e uma restrição, e as pessoas estão tirando isso como um meio de sair de casa, então vai a família inteira... As pessoas, acho que, culturalmente, muitas delas, não se importam com as pessoas que têm mais risco. Então acho que o surfe está sendo bloqueado por esse fato, porque se você abre o surfe, muita gente vai falar: "ah, pode surfe, então vou pra praia". No Guarujá, quando tinham fechado, era fim de semana e estavam tratando como férias, estava entupida, um do lado do outro, e isso é um meio de contaminação. Até o prefeito teve que ir lá, passando de quadriciclo, com um megafone, mandando todo mundo embora, e mesmo assim disseram que muita gente ficou na praia.

"Se estão falando pra fazer isso, tem que respeitar"

Então, o surfe, acho que até tem menos risco, porque é aberto e é difícol você estar muito perto da água, então a contaminação pelo surfe é bem mais difícil, mas se você liberar o surfe, outras pessoas vão entender por outro lado e vai ser ruim. Então acho que, por esse lado, foi bom parar o surfe porque tem muita gente que não tem condição cultural, entendimento e, talvez, nem preocupação com o próximo para entender que o surfe só está liberado e respeitar só o surfe e não praia. Acho que a galera, culturalmente, no Brasil, principalmente, não está apta a isso. Então, se eles estão falando pra fazer isso, acho que tem que respeitar.

Como está a situação no Havaí

Aqui no Havaí é outra situação. Numa ilha inteira onde eu moro tem 70 mil habitantes, e no Guarujá, sozinho, tem 300, então já é muito mais denso. Tem muito menos gente aqui e a galera tem bem mais noção, americano já um pouco mais 'noiado' com essa coisa de vírus e gripe, em qualquer situação. Qualquer gripe normal, se você tosse do lado de alguém, você já vê o americano se afastando. O social distance [distanciamento social, em português] deles já é assim, é da cultura deles, e ainda mais com uma coisa tão séria assim, é ainda maior. Aqui a galera está surfando e está respeitando esse lado de não ir à praia, mas no Brasil não respeitam isso. E é uma cultura um pouco diferente. Aqui a galera vai pra praia, fica um pouco e vai embora. Você vê um ou outro desrespeitando, que não estão fazendo exercício na praia, que aqui está liberado, e eles estão lá só sentado e tomando sol, que aqui não pode fazer. Mas são poucos. É muito menor e a polícia fica em cima também.