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Brasileiras que enfrentaram 1ª atleta trans da história defendem Tifanny

Renée Richards devolve a bola em partida de tênis em 1º de setembro de 1977 durante o US Open - Dave Pickoff/AP
Renée Richards devolve a bola em partida de tênis em 1º de setembro de 1977 durante o US Open Imagem: Dave Pickoff/AP

Rubens Lisboa

Colaboração para o UOL, em São Paulo

11/04/2019 14h44

A presença de Tifanny Abreu na Superliga Feminina de vôlei ainda divide opiniões no esporte brasileiro. O tênis vivenciou situação semelhante e a superou há quatro décadas, quando a norte-americana Renée Richards foi a primeira atleta transgênero do esporte mundial a obter o direito de competir entre as mulheres. Duas brasileiras que conviveram e duelaram com Richards, hoje defendem o direito de Tifanny.

Oftalmologista mundialmente conceituada, Renée nasceu Richard Raskins, que foi atleta universitário e jogou cinco vezes o Aberto dos Estados Unidos, entre 1953 e 1960. Casado com uma modelo e pai de um menino, Raskins optou pela cirurgia de redesignação sexual em 1975, aos 41 anos. E então travou uma batalha judicial na Suprema Corte de Nova York até conseguir a autorização para competir no circuito profissional de tênis feminino. Com a liberação das autoridades, Renée fez história e seguiu jogando profissionalmente de 1977 a 1982.

"Sei bem a história dela, porque a conheci bastante. Tivemos muitas conversas, ela me ajudou tecnicamente, falava muito com a minha técnica, a argentina Raquel Giscafré. Ela mudou o meu voleio de direita, mudou o voleio da Martina [Navratilova]. Inicialmente, quem achou que ela deveria jogar com as mulheres foi uma mulher chamada Gladys Heldman, que foi responsável por começar o circuito Virginia Slims. Ela ouviu falar da Renée e fez o circuito no Texas para deixá-la jogar", lembra Claudia Monteiro, ex-tenista brasileira que foi top 100 e conviveu com Richards.

Patricia Medrado - Reprodução - Reprodução
Patricia Medrado foi top50 do mundo e a primeira tenista do país a enfrentar Richards no circuito feminino
Imagem: Reprodução

Uma das poucas brasileiras que estiveram no top 50 de simples da WTA, a baiana Patrícia Medrado foi a primeira tenista do país a enfrentar Richards em um torneio do circuito feminino. Ela foi derrotada pela americana em San Antonio e lembra de todo o período conturbado que foi o início de atletas trans no esporte.

"Para mim o que ficou muito claro e evidente foi que ela ganhou na justiça o direito de participar do circuito, então para mim isso é um divisor de águas. Foi uma polêmica muito grande na época. Lembro que várias tenistas não queriam entrar em quadra, algumas entregaram jogo, o circuito estava muito dividido com relação a isso. Mas ela jogou o circuito normalmente, nunca foi impedida", recorda Medrado.

Claudia lembra o processo que permitiu a Renée competir no feminino: "Ela ganhou na justiça, porque ela fez todos os testes hormonais. Ela era uma mulher, então a WTA não pôde falar não para a Renée. Aliás, não só a Renée teve que fazer testes hormonais, como todas as jogadoras do circuito também tiveram, eu lembro disso", completa a paulista que vive há 30 anos nos Estados Unidos.

Entre suas viagens a torneios pelo mundo, Renée Richards passou inclusive pelo Brasil. Em outubro de 1977, meses após ser vice-campeã de duplas do US Open, ela jogou o WTA de São Paulo, onde perdeu justamente para Martina Navratilova, de quem foi treinadora ao encerrar sua curta carreira.

Ex-tenista Renée Richards - Mike Segar/Reuters - Mike Segar/Reuters
Renée Richards em sua casa, em Nova York: hoje, ela tem 84 anos
Imagem: Mike Segar/Reuters

De adversária a paciente

O último jogo profissional de Richards foi justamente contra a brasileira Claudia Monteiro, que venceu o duelo pela primeira rodada do torneio de Orlando, nos Estados Unidos. Depois de aposentar a atleta que se tornou ícone pelos direitos trans, Claudia se tornou paciente da norte-americana, em sua clínica na 4ª Avenida, em Nova York.

"Eu adoro a Renée. Ela é uma pessoa muito interessante, ela era cirurgiã oftalmologista, tenho quase certeza que ela fez a primeira operação a laser em pessoas que tinham estrabismo. Na última partida que ela jogou comigo, ela queria aposentar de jogar tênis. Ela continuou sendo técnica da Martina por mais um ano e depois decidiu voltar a ser médica. E ela ficou como minha oftalmo. Aliás, muitos jogadores, homens e mulheres, iam na Renée", diz Claudia.

Renée levava vantagem?

Mas teria Renée Richards vantagem no circuito feminino por ter sido um homem que jogou tênis? As ex-tenistas brasileiras apontam vantagens e também desvantagens. Mas reforçam que não se tratava de nada desleal, e ressaltam que ela não conseguia fazer frente às principais jogadoras da época, embora tenha sido número 20 do mundo no ranking da WTA.

"As jogadoras como a Martina, a Chris Evert, todas 'matavam' ela. Agora, a grande vantagem que ela tinha obviamente naquela época é que ela era bem alta. Hoje em dia, todo mundo é alta. Eu tenho 1,62 m, ela devia ter 1,90 m. Isso já era uma coisa diferente na nossa época, mas eu sei que com as jogadoras boas, ela não tinha chance", afirma Claudia.

"Como tinha um passado de homem, ela trouxe alguns atributos, mas também perdeu outros, porque acabou se tornando uma tenista potente, mas lenta. Joguei com ela em um torneio em que se eu ganhasse a partida, jogaria com ela na segunda rodada. Me esforcei o bastante, cheguei a ter essa oportunidade de ver como seria jogar contra ela. Ela ganhou de mim com facilidade, mas nunca considerei que era um homem jogando no circuito", conta Medrado.

Mundo em transição

Passados 37 anos do fim da carreira de Renée Richards, a participação de mulheres trans no esporte ainda está em discussão. No Brasil, o foco está em Tifanny, ponteira do Bauru. Para quem conviveu com um caso semelhante em outra modalidade -- e individual, o que poderia gerar maior polêmica --, o mundo deverá se acostumar com a presença de Tifanny nas quadras. E de novas atletas no futuro.

"Eu acho espetacular que o mundo esteja mudando, acho normal que a gente tenha essas questões, porque o mundo muda. Vai ser interessante ver como se aceita essas coisas, é uma transição que estamos passando, não sei o que vai acontecer. Eu acho interessante. Cientificamente, elas são mulheres", afirma Monteiro.

"No circuito, as pessoas adoravam a Renée. O começo foi um pouco estranho, se preocupavam com o vestiário, mas ela era super discreta, uma intelectual, muito inteligente, super interessante, que ajudava às pessoas", lembra Claudia Monteiro, a brasileira vice-campeã de duplas mistas em Roland Garros 1982.

Aos 84 anos, Renée Richards ainda atua em seu consultório de oftalmologia e o único esporte que pratica é o golfe. Embora não costume dar entrevistas, disse ao jornal inglês "The Telegraph", em março deste ano, que acredita que atletas trans deveriam poder competir entre atletas após tratamento hormonal desde façam a cirurgia de redesignação sexual. O tema já havia havia causado polêmica pouco tempo antes com declaração semelhante de sua ex-atleta Martina Navratilova.

"A noção de que alguém pode tomar hormônios e ser considerada uma mulher sem realizar a cirurgia é louca na minha opinião", afirmou Richards à publicação. "Se alguém não é uma transgênero 'de verdade' e não vive sua vida como uma mulher, é injusto que possa competir. Conheço vários especialistas dizendo que uma cirurgia é desnecessária e apenas o tratamento hormonal é o suficiente, mas não estou certa se isso é apropriado, pois grande parte da identidade sexual de uma pessoa está em seu órgão sexual", disse a tenista aposentada, hoje com 84 anos.

Embora seja uma pioneira e exemplo de luta pelos direitos trans no esporte mundial, Richards revela que teria parado de jogar caso tivesse vencido um Grand Slam. "Eu nunca teria buscado algo que me desse uma vantagem injusta. Eu não fui mais bem sucedida do que quando eu competia nos torneios masculinos, antes de fazer a mudança de sexo", defendeu-se Renée, cujo nome escolhido após a transição significa "renascida" em francês.