"Guerreira maori" é aposta dos All Blacks em final do Mundial de rúgbi
Não é a toa que a silver fern foi o símbolo escolhido para representar as seleções de rúgbi da Nova Zelândia. À primeira vista, ela parece apenas uma espécie de samambaia "comum". Mas, em contato direto com a planta, basta olhar para o lado interno de suas folhas para notar a diferença. No lugar do verde usual, uma intensa coloração prateada chama bastante atenção. Ela brilha forte, radiando ainda mais sob a incidência da luz, o que a diferencia das demais,
Os guerreiros maoris, habitantes originários das ilhas neozelandesas, usavam este recurso para se orientar em meio a mata. Nos tempos de combate por terras e poder entre tribos e intrusos, a silver fern simbolizava a união de todos que trilhavam um mesmo caminho, além, é claro, da direção correta a ser seguida. Grandes jogadores atuais da terra do rúgbi parecem ter herdado este poder.
Portia Woodman, por exemplo, é uma típica representante do povo maori, que mantém suas tradições centenárias mesmo após a chegada dos britânicos às ilhas. Uma mistura, aliás, que costuma dar bem certo quando se coloca uma bola oval no meio do caminho.
Originária de Ngāpuhi, comunidade no extremo norte do país, Portia é reconhecida por puxar os limites dentro sua geração de jogadoras. Exímia autora de tries no Circuito Mundial de Sevens, principal evento anual da modalidade olímpica do rúgbi, ela tem ajudado a elevar o nível da seleção de rúgbi XV da Nova Zelândia. As "Blacks Ferns", como são chamadas – unindo a temida cor negra das camisas com a "lenda" das samambaias – disputarão no próximo sábado, na Irlanda do Norte, o título da Copa do Mundo de Rúgbi Feminina 2017, contra a Inglaterra.
"As pessoas me veem nesta posição de destaque no rúgbi e acham que eu tenho o trabalho dos sonhos", começa, Portia. "Bom, em muitos aspectos, isso é verdade, o que não significa, no entanto, que seja fácil", completa, a eleita melhor jogadora de Sevens do planeta em 2015. O "trabalho dos sonhos" dentro do elenco das Black Ferns significa treinar duro duas vezes ao dia por seis dias da semana, misturando academia e campo, em treinamentos que costumam levar as atletas ao limite. Quer um exemplo recente? Tiros de 20, 40 e 60 metros de distância, ida e volta, em cinco repetições. Pequena pausa. Mais uma série completa.
"Por um milésimo de segundo, no meio de um treino deste, você pensa em desistir", confessa. "Aí, você logo se lembra de que não pode fazer isso, pois não está sofrendo sozinha; suas companheiras também estão 'morrendo' ao seu lado, e tudo é por um bom motivo", pondera a maori, que tem liderado feitos de respeito, como a conquista da Copa do Mundo de Sevens em 2013 e a da última edição do Circuito Mundial, com direito a vitórias em cinco de seis etapas mundiais.
Por mais experiência e confiança que tenha no seu jogo, Portia teve pela frente um cenário desafiante no Mundial de rúgbi XV. Apesar de a maioria das regras serem praticamente idênticas aos Sevens, a dinâmica em campo muda muito. A aposta em atletas da versão olímpica, aliás, é sempre ousada, visando velocidade e intensidade, sobretudo nas linhas de ataque. Ainda que a adaptação nem sempre seja tão veloz quanto as pernas destas jogadoras.
"Tenho muito mais confiança dentro de um campo de Sevens, e a mudança pro XV não tem sido fácil", alega. "Mesmo assim eu estou adorando o desafio: é um jogo mais mental e estratégico, fica muito mais difícil encontrar os espaços", agrega Portia, que não é exatamente uma novata no assunto, mas há tempos tem se dedicado à versão mais explosiva do esporte.
Em 2013, logo depois de trocar o netball (outra modalidade tradicional na Nova Zelândia) pelo rúgbi, ela já foi escalada para defender as Black Ferns, mas logo focou no Sevens. Esta seleção feminina que a abraçou novamente pode não ter a mesma fama dos All Blacks, a versão masculina do selecionado, com status de únicos tricampeões mundiais, e eleitos melhor equipe esportiva do planeta no prêmio Laureus 2016. Dentro de campo, entretanto, o respeito das neozelandesas também fala bem alto.
Basta dizer que as Blacks Ferns venceram quatro mundiais seguidos (1998, 2002, 2006 e 2010), perdendo apenas a mais recente das últimas cinco edições (2014). E Em Copas do Mundo, elas chegaram a cravar uma sequência de 20 triunfos seguidos. Em números gerais, são 84 jogos oficiais, com 74 vitórias, 2 empates e 9 derrotas. Aproveitamento de 88,1 %.
A versão atual das "mulheres de preto" é comandada pelo head coach Glenn Moore, ex-jogador e auxiliar técnico dos Blues. O coletivo está invicto neste Mundial, ganhando com autoridade de País de Gales, Hong Kong e Canadá, na primeira fase. Na semifinal, derrotou os Estados Unidos por 45 a 12. Somando as quatro partidas, Portia já marcou 13 tries, oito deles contra a fraca seleção de Hong Kong.
O grande desafio das neozelandesas será derrotar a atual campeã do mundo, e também forte concorrente ao título em 2017: a Inglaterra. As inglesas foram as rivais de Portia na sua estreia pela seleção em 2013. Na época, a garota maori de apenas 21 anos já era vista como uma estrela do esporte em ascensão, bastante cotada por sua agilidade e boa visão de jogo.
Rúgbi está no sangue da família
Ainda que buscasse seu espaço, o rúgbi estava longe se ser uma novidade na sua vida. Seu pai, Kawhena Woodman, e seu tio, Fred Woodman, foram All Blacks. E há mais atletas na família, como seu irmão, também jogador de rúgbi, e uma tia, que defendeu a seleção nacional de netball, esporte ao qual Portia credita sua velocidade de pernas e qualidade nos dribles. "Como dá pra ver, somos uma família totalmente louca por esporte, principalmente por rúgbi", orgulha-se.
"Saber que meu pai vestiu esta camisa preta e colocou nosso símbolo no peito me traz uma sensação especial", garante. "Quando eu visto essa camisa hoje, é como se tivesse colocando uma armadura capaz de me proteger e me torna indestrutível; sinto também que é hora de mostrar meus 'super poderes'", brinca Portia, trocando o tom sério do começo da história por uma típica gargalhada.
Não é apenas o relato que impressiona. Sua postura em campo, aliada a sua atitude, forma uma figura intimidadora. Ainda que, dentro do time, Portia seja reconhecida mesmo como umas das mais soltas e brincalhonas. Com seu jeitão descontraído, ela conta: "Um dia passou um pensamento pela minha cabeça, 'por que eu não posso ser a versão feminina do Jonah Lomu?", se diverte, falando sobre uma lenda dos All Blacks, que atuava como ponta, mesma posição de Portia no XV atual. "Bom, pelo menos vou tentar ver até onde eu consigo chegar", completa, lembrando da potência e do estilo destruidor que deu fama a Lomu nos campos.
Prova de fogo após decepção
Aos 26 anos, com 1,70 metro de altura e 70 quilos, Portia vem vivendo seu grande teste de fogo no Mundial. Comparações com outras estrelas à parte, ela tem tudo para fazer estragos nos gramados, no bom sentido, claro. Nos últimos meses, Portia já tem embalado o canto do haka, um típico ritual maori usado no rúgbi. Ela lidera as comemorações de títulos da seleção de Sevens, puxando uma versão exclusiva da "dança de guerra" para a seleção feminina.
Mais do que a tradição, o tal grito estava entalado no peito depois da dura derrota para a Austrália na decisão dos Jogos Rio-2016. Uma imagem de Portia aos prantos no gramado, bem ao lado da seleção vencedora celebrando a conquista, se tornou emblemática após a confirmação do ouro das australianas. "Cometi alguns erros na final, e desabei no choro", recorda. "Só quando voltei pra casa encontrei conforto de verdade com minha família. Eles me falavam: 'você tem uma medalha olímpica, pouca gente que vai aos Jogos volta com uma pra casa'", lembra.
Alguns meses depois, lá estava Portia se dividindo entre o XV e o Sevens, em um elenco que superou a Austrália em três finais de etapas de Circuito Mundial. Mais uma volta por cima na carreira, marcada não apenas pela rápida ascensão, como pela dedicação acima da média. Há pouco tempo, complicações em uma hérnia de disco quase lhe causaram uma aposentadoria precoce. "Eu achava que ficaria lesionada para sempre", comenta. Com apoio intensivo de uma equipe de alto rendimento da federação neozelandesa, no entanto, Portia se reergueu. Ao vê-la em ação, fica nítido que sua liderança e seu faro de try continuam em dia.
"É muito bom ter talento, mas se você não treinar e se dedicar de verdade, nada acontece", analisa. "É essa 'fome' de querer mais e o 'sangue nos olhos' em cada dia de treino que realmente aumentam nossos limites, tornando qualquer objetivo possível", acredita.
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