Tifanny se emociona em audiência por transgêneros; Ana Paula quer estudos
A Comissão do Esporte da Câmara dos Deputados recebeu hoje uma audiência pública para discutir se há vantagem esportiva para homens e mulheres transgêneros. No debate, colocou frente a frente duas vozes de destaque de lados opostos do debate: Tifanny Abreu, atleta trans do Vôlei Bauru na Superliga feminina, e Ana Paula Henkel, ex-jogadora de vôlei.
A sessão foi uma audiência complementar à audiência realizada no dia 5 de junho. O debate foi requerido em três ocasiões pelos deputados Julio Cesar Ribeiro (PRB-DF), Roberto Alves (PRB-SP), Fábio Mitidieri (PSD-SE) e Aliel Machado (PSB-PR).
Ao longo de sua participação, Tifanny questionou repetidas vezes as comparações feitas entre marcas obtidas por homens e mulheres - para ela, devem ser colocados lado a lado números de mulheres transgêneros e mulheres cisgêneros, por exemplo. Ao lembrar seu passado masculino, ela se emocionou contando os problemas que enfrenta desde a adolescência.
Ana Paula, por sua vez, manifestou apoio aos transexuais na sociedade, mas pediu estudos mais profundos para que se possa definir a diretriz que determina hoje a participação de atletas trans em competições. Hoje, o Comitê Olímpico Internacional (COI) se baseia em um estudo de Joanna Harper, que diz que mulheres podem ter até 10 nmol/L de testosterona para disputar competições femininas.
"Quando o COI libera uma diretriz sem grandes estudos, isso tem um efeito cascata", argumentou, questionando a construção do corpo de atletas como Tifanny, com testosterona ao longo de anos, embora tenha deixado claro mais de uma vez que sua posição não era diretamente contrária à jogadora. "O que é construído ao longo de décadas pode ser revertido em poucos meses?", perguntou.
Tifanny, por sua vez, anunciou que fará um estudo com a revista Veja para mostrar suas capacidades físicas. "Sei o que eu posso e o que eu não posso. Há outras querendo entrar, mostrando estar em um certo nível de testosterona - e que não estão", disse. "Nem todas estão aptas ao esporte, e estão comparando com outras que estão", acrescentou.
A jogadora ainda recusou qualquer possibilidade de competir em uma liga apenas para transgêneros, oferecendo alternativas. "O que poderia fazer, no máximo, é limitar atletas. No máximo uma, duas por equipe. Mas fazer uma categoria trans? Eu vou jogar vôlei contra quem, se eu sou a única profissional que tem? Vou jogar no vídeo-game", ironizou ela, defendendo ainda o estudo de Joanna Harper utilizado pelo COI.
"Quando falaram da doutora Harper, ela é, sim, uma mulher trans; mas porque nenhum cis teve coragem de pegar na mão de uma pessoa trans para fazer estudo com eles. Ela foi a única. É uma doutora. Sendo uma doutora, não deixa de ser uma doutora como outra qualquer, não é verdade? Ela teve a coragem de fazer os estudos, e os estudos foram aprovados. Foram mais de dez anos de estudos. Só queria deixar bem claro que não é de ontem para hoje que existe o estudo", defendeu.
Ana Paula, por sua vez, compreendeu a presença de Tifanny dentro da diretriz do COI, mas reforçou o pedido por uma análise baseada em mais estudos. "Fala-se muito da inclusão, na condição atual da Tifanny, que está dentro da diretriz do COI", disse. "(Mas) até onde o corpo da Tifanny foi construído com testosterona? O coração diminui? Os pulmões diminuíram?", reforçou.
Em uma audiência de mais de quatro horas, Tifanny e Ana Paula só elevaram o tom quando a ex-jogadora mencionou a "fase Rodrigo" da jogadora do Vôlei Bauru. "Por favor, esse nome não é permitido aqui. Meu nome de registro é Tifanny Pereira de Abreu. Você me respeite como Tifanny", cobrou.
Argumentos científicos
A audiência começou com apresentações do médico Magnus Regios Dias da Silva, professor da disciplina de Endocrinologia e coordenador do ambulatório do Núcleo de Assistência Multiprofissional à Pessoa Trans da Unifesp; e Alicia Krüger, farmacêutica sanitarista e mestre em Saúde Coletiva na área de farmacoepidemiologia, doutoranda em Medicina (Endocrinologia Clínica) pela Escola Paulista de Medicina da Unifesp. Em sua apresentação, Alicia apresentou critérios biológicos a respeito da atuação de transgêneros no esporte.
"A ciência deve ser colocada em primeiro lugar", disse ela. "O uso de hormônios não traz só potência e vantagem, como se acredita. Todo medicamento pode trazer prejuízos", completou. A questão também ganhou o apoio de outros presentes.
"Eu não acredito que alguém vá prejudicar sua própria saúde para melhorar seu próprio rendimento", disse Leonardo Luiz da Cruz Lima, ativista de direitos humanos, graduado em Educação Física e estudioso da área de autopercepção corporal de transmasculinos praticantes de musculação. "As regras estão mudando, e a gente tem que entender que a sociedade está mudando. Vão vir novas crianças transgêneros (...). Não é só dos atletas adultos que a gente está falando, mas de toda uma geração que está vindo", acrescentou o farmacêutico Gustavo Uchoa Cavalcanti, pai e técnico da atleta transexual Maria Joaquina Cavalcanti.
Questão religiosa
A audiência ganhou um tom mais acalorado a partir das declarações da deputada estadual Erica Malunguinho (PSOL-SP), primeira deputada transgênero do Brasil. Em sua explanação, a representante paulista defendeu a tese de que "a diversidade é o real limite da sociedade".
Ainda na Comissão do Esporte, Erica fez duras críticas ao projeto de lei 346/2019, apresentada pelo deputado Altair Moraes (PRB-SP) na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp), que limita a participação de transgêneros no esporte. Segundo o site da Alesp, o texto "estabelece o sexo biológico como o único critério para definição do gênero de competidores em partidas esportivas oficiais no Estado de São Paulo".
"Trata-se de uma questão fisiológica, tendo em vista que a formação do corpo masculino é diferente do corpo feminino", afirmou Altair na ocasião. Na audiência de hoje, Erica Malunguinho atacou o projeto.
"O impacto que projetos de lei como esse do deputado Altair podem trazer para a população transgênero evidenciam a gravidade já posta na condição da população transexual, que é excluir mais uma vez da possibilidade de pertencimento de uma sociabilidade orgânica", afirmou.
Em sua posterior resposta, Altair disse que protocolou "com muito prazer, com muito orgulho" o projeto de lei. Sentado ao lado de Ana Paula Henkel na mesa da comissão, ainda convidou a ex-jogadora a apoiar a questão. "Você vai ser nossa madrinha do projeto, aqui na frente de todo mundo", convidou. Depois, rebateu as críticas de Erica.
"O estudo que o COI tem como base é de uma trans (Joanna Harper). A senhora sabia disso? Pois é. E não tem correlação. Por que eu sou pastor não posso protocolar um projeto desse? Agora, uma trans aceita um estudo com quatro pessoas?", cobrou. "Não tenho preconceito, quem me conhece sabe disso. Mas a discussão é essa. A discussão não é o trans no esporte, mas as mulheres perderem vaga para trans no esporte", alegou.
Depois, o deputado disse sair "mais fortalecido dessa comissão". "Porque todos que falaram aqui falaram que ainda não é conclusivo", alegou. A opinião foi repetida pouco antes das 19h, já perto do encerramento da audiência, quando reforçou seu compromisso com o debate. "Se tiver 300 audiências públicas, vou estar em 400 aqui", disse o deputado.
Marcelo Franklin, advogado esportivo especialista em doping, argumentou dizendo que vê eventuais vantagens que atletas possam ter na questão. Ele questionou eventuais "vantagens injustas".
"Está muito claro hoje um conflito entre permitir a participação de transgêneros em esportes de alto rendimento, com a evidente vantagem competitiva, e a necessidade de proteger o esporte feminino. Aqui, senhores, não existe margem para erro", defendeu.
Tifann se emociona com passado
Tifanny se juntou à mesa da comissão às 15h25, pouco mais de 30 minutos após o início da audiência, e foi embora às 18h50. Depois de ouvir diversos presentes, lembrou sua trajetória, citando inclusive os problemas que enfrentou com times masculinos no início da carreira. E se emocionou.
"Quando eu era jovem, com apenas 17 anos, que eu não tinha condições de nada, que eu vi a Ana Paula e outras jogadoras de Brasil jogando, eu tive meu sonho de ser atleta. Mas, ao mesmo tempo, eu tive medo de minha condição sexual. Fechei meus olhos e disse: 'vou ser alguém um dia'. Fui atrás do meu esporte. Fui a São Paulo fazer um teste (e ouvi): 'você é muito feminina'. Não fiquei na equipe masculina. Fui cortada da equipe masculina. Toda vez que eu conto isso, eu choro, porque dá ódio. E a mesma pessoa que me cortou hoje tenta me cortar da equipe depois que eu virei uma mulher trans", disse Tifanny, com lágrimas nos olhos.
"Eu vou parar onde? Na rua, como a Erica (Malunguinho) falou? Minha mãe um dia falou: 'por que você nunca me falou?' Mãe, se eu falasse antes, o que seria de mim? Nós não estávamos em 2019; na minha época, morando no Pará, mulher trans não passava de 20 anos. O que seria de mim? Fechei o olho, não quero saber. 'Vou fazer a minha transição quando eu puder, tiver condições, não depender de mais ninguém.' Muitos aqui falaram: 'Tifanny, quando era masculino, não tinha nada'. Em minha primeira Superliga masculina, primeiro jogo, eu fiz 28 pontos. Eu sempre fui atacante de peso, que fazia pontos. Fui para a Espanha, fazia 36, 38, 37 pontos. Fui maior pontuador, MVP da liga, fui MVP na França, em Portugal, em todos os lugares em que passei. Mas eu era infeliz, porque eu vivia para o povo. Aí vem um advogado e colocou: 1,94 m. Pega a régua e vê se eu tenho 1,94 m. Como eu vou lidar com as mentiras que falam sobre mim?", acrescentou.
Na audiência, Tifanny citou exemplos de perda de desempenho após a transição de gênero, que ela fez aos 28 anos. A transição tardia, segundo ela, fez com que seu corpo não assimilasse a questão tão bem. "Se eu fiz mais tarde, pior ainda. Eu queria ter feito com 22, porque meu corpo ia assimilar melhor", disse Tifanny, que deixou claro receber ameaças por sua condição.
"Eu recebo mensagem de morte, (dizendo) que eu sou um homem, que eu tenho ainda o 'falecido' (em referência ao pênis), que eu nem tenho mais. Me chamam de nomes horrorosos. Eu tenho medo de sair de casa, encontrar um doido desse e fazer mal a mim", relatou.
Ana Paula reforça pedido por estudos mais detalhados
Ana Paula falou logo após a conclusão das declarações iniciais de Tifanny. Agradeceu a todos pelas declarações em uma "discussão madura" e de "alto nível", dizendo que a audiência não queria julgar Tifanny, mas pedindo uma interlocução com as entidades que ditam as diretrizes do esporte.
"A sociedade tem que abraçar, sim, a identidade social, como a pessoa escolhe viver. Mas no esporte, a identidade biológica ainda é o pilar mais forte", disse. "Transgêneros no esporte feminino são uma preocupação mundial. Nos Estados Unidos, existe uma preocupação, porque meninas no ensino médio, nas faculdades, elas estão sendo cerceadas e estão perdendo lugares, sim, para meninos biológicos."
Em sua explanação, Ana Paula reforçou a crítica ao COI, que baseou sua diretriz de liberar jogadoras trans com base no índice de testosterona no estudo feito por Joanna Harper. Reforçou ainda que sua posição não é contra Tifanny, e lembrou atletas que cobram "estudos mais abrangentes". "Acho que essa é a maior voz que poderíamos ter em defesa das mulheres", disse.
Em gráficos, comparou os desempenhos de competidoras trans estudantis e atletas cisgêneros olímpicas em modalidades como atletismo e natação. Segundo ela, um estudo da Federação de Atletismo dos Estados Unidos mostra que "mesmo antes da puberdade, as meninas já têm uma certa defasagem em relação ao tempo, já há uma clara vantagem".
A ex-jogadora ainda falou de doping e lembrou o rigor da Associação Mundial Antidoping (Wada) com o controle com amostras desde jovem, dentro ou fora de competições e mesmo em férias. A ideia é, segundo ela, para que as atletas não construam seus corpos com testosterona acima da capacidade permitida. Depois, comparou a situação de Tandara (uma opositora à presença de Tifanny na Superliga, que foi chamada à audiência e justificou sua ausência) e Tifanny.
No comparativo, citou o histórico de exames de cada atleta, lembrando que os exames de testosterona de jogadoras trans apresentaram variações grandes ao longo de dez anos. "O que uma amostra de uma atleta trans de oito anos atrás vai dar para testosterona? Por que a patrulha médica é extremamente severa para as mulheres e para as mulheres trans ela é flexível?", questionou.
Por fim, Ana Paula disse entender o "lado social" de Tifanny e de outras mulheres transgênero. No entanto, segundo ela, "o lado negro do Olimpo é muito forte há muitos anos". Em seu encerramento, a ex-jogadora citou casos históricos de equipes olímpicas, como Alemanha Oriental e Rússia, que utilizavam manobras para aumentar o nível de testosterona em competidoras, de forma a buscar "sucesso olímpico, patrocinadores, dinheiro".
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