Revista Charlie Hebdo polemiza sobre Copa, mas "se esconde" após atentado
A revista Charlie Hebdo voltou a ser assunto internacional neste mês com a publicação de uma controversa capa que usa o desenho de uma vulva para se referir à Copa do Mundo feminina. Se alguém se incomodar com a ilustração, não é possível reclamar formalmente na sede do jornal: desde o ataque de janeiro de 2015, que matou 12 pessoas, a localização da redação é ultrassecreta. O antigo prédio tem nova função.
O UOL Esporte tentou seguir o rastro para entrevistar jornalistas e cartunistas da revista sobre o Mundial. A ideia era realizar uma matéria sobre a equipe do periódico, que, nesta edição, fez fortes críticas ao futebol e à "idiotização das multidões" fanáticas pelo esporte. De uma vez só, incomodou feministas e torcedores. No início de 2018, para se ter ideia, o Charlie gastava o equivalente a R$ 6,5 milhões com a própria segurança.
Antigos funcionários da revista foram procurados pelas redes sociais, e os diálogos podem ser resumidos assim:
- Olá, sou uma repórter do Brasil. É possível conversar com você sobre Charlie, por gentileza?
- Olá. Desculpe, mas não. Obrigado.
A busca continuou após a primeira negativa, mas, como era de se esperar, não foi possível encontrar a atual equipe. Por outro lado, a jornada em si se mostrou interessante. Começando pelo edifício de número 10 da rua Nicolas-Appert, no 11º distrito de Paris, que hoje também leva a placa de "Lugar da Liberdade de Expressão". Este era o endereço da antiga sede do Charlie Hebdo e foi onde ocorreu o atentado.
A reportagem sabia que não acharia funcionários ali, mas escolheu o local como ponto de partida por motivos óbvios. Em toda reconstituição, é preciso voltar a onde tudo começou, e as homenagens na fachada do prédio deixam claro que a decisão foi correta. Uma arte no muro mostra os rostos de 11 vítimas e uma frase de um dos mortos.
"Não tenho medo de retaliação, não tenho filhos, não tenho mulher, não tenho carro, não tenho crédito. Pode ser um pouco pomposo o que vou dizer, mas prefiro morrer de pé a viver de joelhos", disse Stéphane Charbonnier, o artista "Charb", antes de ser assassinado pelos terroristas.
Desde 2016, o edifício é administrado pela prefeitura de Paris e cedido a empresas que realizam trabalhos considerados relevantes, mas com pouca verba. O antigo escritório do Charlie é ocupado pelo Groupe SOS, pequena companhia de economia solidária que dedica seus esforços para colaborar com causas sociais, como dar auxílio e suporte a pessoas sem teto.
Depois de circular pela vizinhança por uma hora, o UOL Esporte avistou três pessoas paradas diante do mural em homenagem às vítimas e se aproximou de Irene, Veronique e Pierre Luc. Parecia ser uma família de turistas, mas a conversa revelou que os três franceses esperavam por Marion, que trabalha para o Groupe SOS, é irmã de Irene e filha dos outros dois.
Ela disse que passou três semanas trabalhando no local antes de descobrir que estava exatamente no mesmo escritório em que o atentado ocorreu - ela sabia que se tratava do mesmo prédio, é claro, e achava que talvez até no mesmo andar, mas a informação completa só veio depois. Quando questionada sobre as energias que o ambiente transmite, Marion disse não sentir algo negativo.
Quase tudo foi modificado. Os buracos de bala foram preenchidos, divisórias foram removidas para que o espaço se tornasse mais amplo, as paredes foram pintadas de branco, e o chão de cinza claro. O presidente do grupo, Jean-Marc Borello, desejava mostrar aos funcionários que a vida tem de continuar; ele acredita que dariam a vitória aos autores do ataque se cedessem ao terror.
"Os familiares de alguns colegas questionaram por que teriam de trabalhar aqui, justo aqui. Mas o trabalho duro que nós fazemos no dia a dia é como uma proteção entre o que aconteceu no passado e o que podemos construir para o futuro", disse a jovem funcionária do Groupe SOS. Às vezes, a empresa recebe visita de familiares das vítimas do ataque, que levam flores ao local.
Marion é uma mulher de ideais e opiniões fortes. Ela não esconde que detestou a capa relacionada à Copa do Mundo feminina, que traz a ilustração de uma vulva e uma bola de futebol com a legenda: "Copa do Mundo feminina: vamos ter de engolir/comer por um mês". Porém, ela própria foi uma das que compartilharam a frase "Je Suis Charlie" ("Eu sou Charlie") nas redes.
"Eles sempre são controversos, então isso não é novidade. Eu não gosto nada deste tipo de humor, mas gosto que a revista seja livre", respondeu a jovem, em sintonia com Veronique: "Acho esta ilustração da capa muito ofensiva, mas eu defendo que eles tenham o direito de publicá-la", afirmou a mãe. A outra garota da família, Irene, assentiu com a cabeça.
A reportagem também abordou Cecile Langet, uma francesa que mora naquele bairro e pareceu ser apenas um pouco mais velha do que Marion. Assim como as outras três, ela se identifica como feminista, mas teve opinião menos permissiva: "Eu sou feminista e estava conversando sobre isso com meu namorado. Nunca colocam um p... quando é uma capa sobre a Copa masculina, não é?", questionou.
"Eles sentem necessidade de separar meninos e meninas desta forma. Os homens pelo talento, e as mulheres pelo órgão sexual. No caso deles, nunca é sobre o pênis", completou Cecile, que foi questionada sobre o que faria se ouvisse um estampido que parecesse uma explosão. "Eu me assustaria, é claro, mas não tenho um plano de fuga elaborado na cabeça", confessou.
Quanto à vida na região, todas as pessoas ouvidas pelo UOL Esporte que trabalham ou moram perto do local do ataque deram a mesma resposta: nada mudou. É a visão que a reportagem teve daquelas ruas. As pessoas caminham normalmente, ouvem música, falam ao telefone, tropeçam e xingam, abrem os capôs de seus carros para checar o motor, conversam sobre terrorismo com a imprensa brasileira, despedem-se e, sem medo, dão as costas a desconhecidos. Seguem seus caminhos.
Em algum lugar da França, a equipe do Charlie Hebdo, ainda que "escondida", tenta fazer o mesmo.
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