Mascote do Pan foi símbolo de fecundidade e era enterrado com os mortos
Quem encontrar o sorridente mascote Milco pulando de braços abertos nas arenas do Pan-Americano de Lima não deve imaginar os lugares obscuros por onde ele passou. Os peruanos voltaram um milênio no tempo para buscar a inspiração para o carismático anfitrião dos jogos, que começam na sexta-feira (26) e já estão mexendo com um país que se orgulha da herança das civilizações que lhe deram origem.
Milco é inspirado em artefatos humanoides de cerâmica conhecidos como cuchimilcos e produzidos pela civilização chancay, que viveu na região de Lima entre 1100 e 1470, antes de serem incorporados pelo Império Inca.
Arqueólogos têm encontrado exemplares de cuchimilcos ao lado de restos mortais humanos, o que os levou à interpretação de que esses simpáticos bonecos eram parte fundamental dos ritos funerários daquela população.
Com vestimenta colorida, o corpo pintado e produzidos em diversos tamanhos, esses artefatos apareciam em sua versão masculina e feminina lado a lado e com o órgão sexual à mostra. O destaque dado a esse detalhe nas peças levou os cientistas a elaborar a hipótese de que os cuchimilcos eram símbolo de fecundidade e fertilidade.
"É como se fosse a representação da cópula divina, a união de duas metades que cria a vida, fecunda a terra, gera alimento e renova o mundo", afirmou o arqueólogo Walter Tosso, que tem dedicado os últimos 20 anos ao estudo da tradição chancay. "O desejo de procriação dos seres vivos tem também um aspecto de busca do bem-estar econômico: quanto mais a população cresce, maior a mão de obra e mais gente para trabalhar a terra, e consequentemente mais bem-estar para a população", disse Tosso, que assina a curadoria de uma exposição dedicada aos cuchimilcos em Lima.
No museu Amano, montado a partir do acervo de um empresário japonês radicado no Peru, o visitante se depara com dezenas de exemplares dos bonecos fúnebres de pedra, com seus pênis e vulvas descobertos, e acompanha sua evolução até o nascimento de Milco, em 2017, obra da designer peruana Andrea Medrano Moy - o mascote do Pan, claro, usa camiseta e bermuda.
Medrano Moy diz ter se inspirado nos braços abertos dos cuchimilcos para criar um mascote que está sempre "dando as boas-vindas" aos atletas e competidores do Pan. Mas os arqueólogos supõe que a posição dos braços tenha tido outra conotação na época dos chancays.
É obviamente difícil ter qualquer certeza, já que essa civilização não deixou registros escritos que nos permitam conhecê-la melhor, mas a hipótese mais provável é que os braços abertos representassem uma postura de oração ou "respeito aos deuses", o que era importante para o indivíduo morto aonde quer que ele fosse no além-vida.
A descoberta dos artefatos tem levado especialistas a promover atividades de divulgação científica com crianças e adolescentes, para que eles se apropriem e se sintam parte da herança das civilizações mais antigas que habitaram o território que hoje é o Peru. A escolha do mascote dos Jogos ajudou nesse trabalho.
Além de alegrar crianças e adultos durante as competições e servir de souvenir para os atletas que chegarem ao pódio, Milco já vem promovendo uma reconexão de um país com seu passado pré-colonial e pré-inca.
"Antes dos Jogos, poucas pessoas no Peru conheciam verdadeiramente os cuchimilcos", afirma o arqueólogo Walter Tosso. "Para dizer a verdade, acho que só 5% dos peruanos conheciam algo deles. Mas agora, graças a esse evento, as pessoas podem descobrir um pouco mais sobre esse personagem e, quem sabe, ele não continue vivo na cabeça delas mesmo depois dos Jogos."
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