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Pan 2019

No sexto melhor restaurante do mundo quem brilha é o pão com manteiga

Pia León e Virgílio Martinez, o casal que comanda o Central, em Lima - Divulgação
Pia León e Virgílio Martinez, o casal que comanda o Central, em Lima Imagem: Divulgação

Adriano Wilkson*

Do UOL, em Lima (Peru)

03/08/2019 04h00

Lima, a capital do Peru, recebe desde meados de julho a 18ª edição dos Jogos Pan-americanos. Para um jornalista esportivo, participar da cobertura do evento mais importante do olimpismo continental é uma emoção enorme. Porém, Lima também é a casa do Central, o restaurante do badalado chef Virgílio Martinez, que há cinco anos vem figurando na lista dos melhores restaurantes do mundo - em 2019, apareceu na sexta posição.

Como o interesse público deve sempre suplantar as aspirações individuais, os três jornalistas do UOL Esporte que viemos ao Pan demos um tempo na cobertura das competições esportivas para relatar ao leitor, em primeira mão, a experiência de comer no melhor restaurante da América Latina.

Virgilio - Divulgação - Divulgação
Imagem: Divulgação

Na última quarta-feira (31), enquanto Canadá e México se digladiavam pelas quartas de final do torneio de badminton, ocupamos uma das mesas de frente para a cozinha aberta do Central.

Depois de 16 pratos do menu degustação, que oferece um passeio pela biodiversidade peruana com ingredientes tão inusitados quanto cianobactérias, pele de piranha e argila comestível, concordamos que o melhor item do cardápio é o pão com manteiga.

Mas não qualquer pão com manteiga.

No Central, trata-se de um pão de mandioca com manteigas de tomate selvagem e cupuaçu com cinzas de eucalipto, representando a "selva alta" do Peru. Parece chique. E é.

Pão com manteiga - Karla Torralba/UOL - Karla Torralba/UOL
Se existe alguma forma de fazer um pão com manteiga gourmet é essa aí
Imagem: Karla Torralba/UOL

Tudo no lugar faz questão de lembrar que você está ali não para comer, mas para viver "uma experiência". Uma experiência, aliás, que o Central quer impedir que você estrague com suas decisões ruins e, por isso, não há menu à la carte. Depois de ouvir uma breve explicação sobre os ingredientes que Virgílio foi buscar nos rincões do país, somos levados a escolher entre as duas opções do menu degustação: 16 pratos ou uma versão simplificada com 12.

Cada prato representa uma altitude diferente da incrível diversidade de ecossistemas peruanos. Começamos, por exemplo, a -10 metros de altitude, com frutos do mar, e em algum momento chegaremos a 3750 metros para comer um pato habitante das montanhas.

Escolhemos o menu completo, que seria servido pelas próximas três horas. A questão do tempo é algo a ser ponderado caso você queira levar toda a família ao Central - na noite em que estivemos lá, vimos quatro crianças dormindo à mesa, incapazes de esperar o vai e vem de pratos e o bla bla bla dos garçons.

Nosso garçom ofereceu também duas opções de harmonização com vinhos selecionados pelo sommelier da casa, mas a prudência nos levou a declinar. No final, pedindo apenas um suco, paguei 616 soles, o equivalente a 713 reais. Foi de longe a refeição mais cara que já fiz na vida.

Pelo menos teve open bar de água.

Cozinha - Adriano Wilkson/UOL - Adriano Wilkson/UOL
Cozinheiros do Central também se revezam servindo e explicando pratos no salão
Imagem: Adriano Wilkson/UOL

O preço alto talvez explique dois fatos curiosos, um deles irritante. Primeiro: olhando de longe, não conseguimos identificar muitos peruanos à nossa volta. Aparentemente, o Central é um restaurante para gringo - de fato, o preço por uma refeição é equivalente a 66% do salário mínimo do país. Segundo: o serviço é cortês demais. Você não pode fazer menção de, digamos, ir ao banheiro que já aparece um garçom atrás para humildemente puxar sua cadeira. Eles também são proibidos de tocar nos guardanapos com as mãos e quando precisam retirá-los ou repô-los, usam enormes pinças, como se os objetos estivessem contaminados com radiação.

Mas a comida é boa?

A comida é ótima, mas isso talvez não seja o principal atrativo do Central, já que na mesma cidade há restaurantes que servem comida até melhor e mais em conta. O diferencial aqui é o desbunde gastronômico e o contato com sabores para os quais você não tem nenhuma referência. Nosso paladar não foi nem educado para identificar certas sensações.

Para alguns ingredientes não há nenhuma tradução possível.

Os garçons poliglotas até tentam, mas fica difícil entender a descrição de cada item do menu. O que seriam as "piures percebes navajas" que formam o prato "pedras vermelhas" servido no começo?

Pedras vermelhas - Adriano Wilkson/UOL - Adriano Wilkson/UOL
"Pedras vermelhas" simboliza um ecossistema marinho; a espátula de cerâmica é um talher
Imagem: Adriano Wilkson/UOL

O visual exótico e a engenhosidade dos pratos também chama a atenção e você demora a entender o que está na sua frente. Em muitos casos, o que vem em volta ou embaixo da comida enche mais os olhos do que a própria comida. Os garçons ajudam apontando o que você deve comer ou não. Tecnicamente você até poderia comer o pedaço de madeira ou as flores que servem de cama para alguns petiscos, mas é melhor não.

O mais impressionante é um forninho de argila feito para assar uma das inúmeras variedades andinas de batata que, aberto na sua frente, exala um cheiro maravilhoso de ervas.

Mil moray - Karla Torralba/UOL - Karla Torralba/UOL
Esse prato vem com um forninho de argila e um pedaço da montanha, mas no fundo é batata assada
Imagem: Karla Torralba/UOL

O mais inusitado é o que contém uma espécie de chips de pele de piranha sem muita graça, representando uma lagoa amazônica. Sob os chips, as próprias piranhas te observam com os dentes para fora e um olhar passivo agressivo. Se você achou que esse é um prato feito só para chocar, provavelmente acertou.

Piranhas do Central - Karla Torralba/UOL - Karla Torralba/UOL
Petisco com pele de piranha vem sobre o cadáver das próprias. Sádico.
Imagem: Karla Torralba/UOL

A maioria das porções é pequena e feita para comer com a mão. No balanço final, embora tenhamos tido medo de ter que passar no McDonald's depois, ninguém saiu com fome. Sentindo-nos aptos a julgar a qualidade do sexto melhor restaurante do mundo, resolvemos dar notas de 0 a 10 para cada item do menu.

Agradou: "cordilheira verde", que entendemos ser uma sobremesa de chocolate com menta, folhas de coca e argila comestível (9,1). Não agradou: "águas do deserto", que provavelmente é um creme de abóbora com abacate, ouriço do mar e molho de camarão (4,7).

central - ouriço  - Karla Torralba/UOL - Karla Torralba/UOL
Prato com ouriço e abacate tenta misturar universos bastante distintos. Mas será que deveria?
Imagem: Karla Torralba/UOL

No final, depois que a conta veio esvaziar nossas carteiras e ameaçar os limites do cartão de crédito, resolvemos nos apresentar como jornalistas e pedir ao garçom para falar com o chef. Alguns dias antes, eu tinha entrevistado uma artista plástica de Lima que coincidentemente havia sido professora de Virgílio Martinez. Ela o descreveu como um sujeito avesso ao contato com a imprensa.

Mas o dono do Central também é o protagonista do sexto episódio da terceira temporada da série "Chef's Table". Disponível no Netflix, o programa ajudou a alçar o cozinheiro ao panteão dos popstars da gastronomia peruana - onde antes reinava quase absoluto o chef Gastón Acúrio, esse sim uma espécie de herói nacional.

Exibindo um bigode farto e dono de gestos contidos, quase tímidos, Virgílio parece mais um analista de sistemas que se converteu a hipster do que o cozinheiro do restaurante mais premiado do subcontinente. Sua mulher Pia, trabalha na cozinha, e sua irmã Malena, que é médica, coordena a Iniciativa Mater, instituição de pesquisa responsável pelas descobertas culinárias junto a comunidades tradicionais.

argila, chocolate e menta - Karla Torralba/UOL - Karla Torralba/UOL
Sobremesa de chocolate mentolado, folhas de coca e argila (à esquerda, colorida). Sério.
Imagem: Karla Torralba/UOL

Sabemos de tudo isso porque a história do Central, sua narrativa, talvez já seja mais conhecida que sua comida autoral. Os críticos apontam esse detalhe como uma incoerência. Por definição, os restaurantes são lugar de comer, não de contar histórias.

Antes de levantarmos Virgílio apareceu, nos cumprimentou e perguntou como estavam as coisas. Elogiamos a comida e apontamos o pão com manteiga como nosso prato preferido, o único a ter recebido 10 de todos os jurados. "Tem o cupuaçu de vocês", lembrou o chef. Quando eu disse que havia nascido em Belém, no Pará, ele lembrou que já tinha visitado a cidade e que era amigo de Thiago Castanho, dono do "Remanso do Peixe" e do "Remanso do Bosque".

Enquanto os últimos clientes deixavam o salão principal e os funcionários limpavam a cozinha, Virgílio sentou-se a uma das mesas para conversar com um amigo. Se eu tivesse escolha, teria esticado a visita para comer um pouco mais daquele que eu achei o melhor prato do cardápio, algo que entendi como uma emulsão de camarão com porco desidratado e espuma de mandioca negra.

Mas decidi voltar ao trabalho. Afinal, as reportagens sobre o badminton, o basquete 3 x 3 ou a esgrima não iriam se escrever sozinhas.

* Colaboraram Demétrio Vechiolli e Karla Torralba