Novo aeroporto no Peru passa por caminhos incas e pode afetar Machu Picchu
A construção de um novo aeroporto a 57 km de Machu Picchu vem provocando uma onda de indignação entre intelectuais no Peru, país sede dos Jogos Pan-americanos 2019. Mais de duzentos deles, entre historiadores, arqueólogos e artistas plásticos, assim como outras 70 mil pessoas, assinaram uma petição ao presidente Martín Vizcarra, alertando para os riscos que a obra pode trazer a um dos destinos turísticos mais conhecidos do mundo e ao seu entorno.
O governo já comprou terras na região da pequena cidade de Chinchero, e uma empresa começou a trabalhar o terreno para a construção do aeroporto, que pretende ser uma alternativa mais viável para milhares de turistas que visitam diariamente as ruínas de Machu Picchu. O atual aeroporto da região, na cidade de Cusco, tem apenas uma pista e já opera no limite de suas possibilidades.
Chinchero, assim como Machu Picchu, fica em uma região no sul do Peru, conhecida como o vale sagrado dos incas pela abundância de sítios arqueológicos e por ter sido o coração da civilização que habitou a região entre os séculos 12 e 16.
O UOL Esporte teve acesso a um estudo feito por uma empresa de consultoria contratada pelo governo em 2011 que mostra a existência de três caminhos feitos pelos incas no terreno da obra, além de treze rotas coloniais e sete vestígios arqueológicos isolados, como restos de cerâmica.
Segundo especialistas na cultura inca consultados pela reportagem, os caminhos seriam parte do "Qhapac Ñan", uma rede gigantesca de rotas caminháveis feitas pelos povos pré-colombianos. O "Qhapac Ñan" é considerado patrimônio mundial da humanidade pela Unesco. O órgão de cultura das Nações Unidas enviou uma carta ao governo peruano questionando a construção do aeroporto. Por causa do estudo de 2011, o projeto não recebeu o Certificado de Inexistência de Restos Arqueológicos (Cira), uma exigência para obras desse porte.
Em reunião com funcionários do Ministério de Transportes e Comunicação do Peru, responsável pelo projeto, a reportagem do UOL Esporte questionou sobre os possíveis danos aos caminhos incas. A pasta diz desconhecer o estudo de 2011 que apontaram os caminhos incas, e afirma que escavações e monitoramentos feitos pelo próprio ministério não encontraram vestígios arqueológicos na região.
"Esses instrumentos, mais profundos do que uma inspeção visual, não identificaram a existência desses restos arqueológicos", afirmou Eduardo Gonzales, porta-voz do ministério. "E se tivessem identificado algum caminho, seguramente haveria uma modificação no projeto, mas isso não vai ocorrer."
Cientistas acusam descaracterização do entorno de Machu Picchu
Pesquisadores ainda garantem que o megaprojeto vai descaracterizar um traço importante da cultura inca: a harmonia de suas construções com o entorno natural.
"Em Machu Picchu, você olha uma construção em pedra de um determinado ângulo e percebe que ela está totalmente alinhada com uma montanha atrás dela", afirma a historiadora peruana Mónica Ricketts, da Universidade Temple, na Filadélfia. Ricketts é uma das signatárias da carta ao presidente Vizcarra. "Os incas sempre fizeram suas construções em harmonia com a paisagem. Se você mudar a paisagem, isso vai se perder. É uma tragédia."
"É como construir um aeroporto nos jardins de Versalhes", afirmou o historiador americano Thomas Cummins, de Harvard, em referência aos jardins que circulam o palácio que abrigou a família real francesa e fica a 20 km de Paris.
"É uma infraestrutura enorme em um lugar que deveria estar protegido desse impacto. Haverá impacto sobre os cursos de água da região, há a questão do ruído dos aviões passando várias vezes durante o dia e já está havendo especulação imobiliária em todo o terreno", alerta a Natalia Majluf, historiadora da arte do Centro de Estudos Latino-americanos da Universidade de Cambridge.
Demanda antiga de empresários da região de Cusco, o novo aeroporto deve facilitar a chegada de viajantes estrangeiros ao principal destino turístico do país.
Aeroporto seria inoperável, aponta militar
Há ainda outra questão. Especialistas em tecnologia aeronáutica têm alertado sobre a falta de garantia da viabilidade técnica de um aeroporto no meio das montanhas do vale.
Bruno Papi, piloto da Força Aérea peruana, vem há um ano e meio revisando as 8 mil páginas dos estudos técnicos de viabilidade do aeroporto. Como as rotas de voo passariam a apenas algumas centenas de metros de montanhas do vale sagrado, não haveria espaço suficiente para uma manobra de emergência em caso de falha de motor, por exemplo.
"Esse aeroporto não seria perigoso, ele seria inoperável. Se você voa tão perto da montanha como ali, um voo não seria aceitável. Se existem riscos que não são aceitáveis, ninguém os assume. Nenhuma companhia voaria nessas condições", afirma o militar, que vem pedindo esclarecimentos ao governo em relação aos procedimentos de voo previstos para Chinchero.
Os engenheiros do governo, por outro lado, afirmam que a localização do novo aeroporto é a ideal para uma região alta e apontam a evolução da tecnologia aeronáutica para minimizar os riscos apontados pelo piloto.
"Cusco está a 3.200 metros acima do mar e encontrar um lugar similar com melhores condições geográficas do que Chinchero é muito difícil", declarou Ricardo Mariño, coordenador de projeto do aeroporto. "É possível respeitar a formação de Bruno Papi, mas há um estudo multidisciplinar elaborado por especialistas em aviação que conclui que essa é a melhor localização. A tecnologia é muito diferente do que existia nos anos 80 e 90. A engenharia evoluiu, a tecnologia também, e esse é um projeto que tem um respaldo técnico e os mais altos padrões."
Signatário da carta de protesto ao presidente, Papi ainda alerta para outro ponto ignorado pelos técnicos que fizeram os estudos de viabilidade: o impacto sonoro sobre as pessoas que habitam e visitam a região. Se o projeto prevê uma zona de proteção sonora sobre Machu Picchu, para evitar que aviões passem muito perto da cidadela inca, ele não protege outra das famosas ruínas da região, Ollamtaytambo, destino recorrente dos turistas do vale sagrado.
Se nada for feito, o que os turistas verão no céu da região será "um desfile de 150 aviões por dia", afirma o militar, que é general da Força Aérea Peruana (FAP).
A petição dos pesquisadores e técnicos já chamou a atenção de veículos como o jornal britânico "Guardian", o americano "New York Times" e uma das principais revistas científicas do mundo, a "Science".
Em pronunciamento ao país no final de julho, Martín Vizcarra, que antes de assumir a presidência foi ministro de Transportes, afirmou que o aeroporto respeitará o patrimônio cultural da região. Depois de uma parceira público-privada ser desfeita por irregularidades, seu governo fechou uma acordo Estado-Estado com o governo da Coreia do Sul para tocar a obra. O modelo é o mesmo adotado para as obras de infraestrutura dos Jogos Pan-americanos.
A expectativa do governo peruano é que o aeroporto permita à região de Cusco receber mais de 6 milhões de turistas por ano. Só a cidadela de Machu Picchu recebeu 1,7 milhões de pessoas em 2017, quase o dobro do recomendado pela Unesco, que se preocupa com a preservação do sítio arqueológico e faz constantes apelos para que o Peru respeite o limite de visitantes recomendados no santuário.
Com o fluxo humano maior, aumentam as possibilidades de erosão do solo e de movimentação ou mesmo queda das construções, além do impacto causado na fauna e flora da região. Se o novo aeroporto realmente sair, o governo deve tornar ainda mais rígidas as regras de entrada e permanência na cidadela, sob o risco de ver o encantamento que Machu Picchu produz nos visitantes ser o algoz de si mesmo.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.