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Karen Jonz: "Amarrava os peitos com faixa para pensarem que eu era homem"

Karen Jonz, pioneira do skate brasileiro, se masculinizava para conseguir espaço - Arquivo Pessoal
Karen Jonz, pioneira do skate brasileiro, se masculinizava para conseguir espaço Imagem: Arquivo Pessoal

Talyta Vespa

Do UOL, em São Paulo

28/10/2019 04h00

Karen Jonz atendeu ao telefonema do UOL Esporte enquanto fazia compras na Liberdade, no centro de São Paulo, cidade onde mora com o marido Lucas e a filha, Sky, de três anos. A conversa, que durou pouco mais de uma hora, partiu de Olimpíada e chegou em depressão, passou por abuso sexual, assédio, maternidade e "pera aí, deixa só eu escolher uma marca de shoyu". Terminou com um pedido:

Quero te falar uma coisa, posso? Gostaria que tivesse mais oportunidades para pessoas de baixa renda poderem chegar até uma competição de alto nível se assim quiserem. Um esporte que nasceu subversivo vem se elitizando. Isso tá errado".

A atleta é pioneira no skate brasileiro: foi a primeira mulher a ganhar ouro nos X Games, a primeira a trazer um título mundial para o Brasil, a primeira campeã brasileira da modalidade. Foi com o dinheiro da venda de bolos de banana na escola, lá pelos 16 anos, que montou, sozinha, seu primeiro skate. E foi com uma faixa apertando os seios que ela escondeu, por anos, o corpo, na tentativa de entrar na roda. Foi vítima de abuso sexual nos Estados Unidos e de assédio no Brasil, ao ser chamada, em coro, de "gostosa" por centenas de homens durante uma competição. "Gostosa é o caralho", disse no microfone.

Aos 36 anos, com um livro, um documentário e uma criança sendo criados, Karen participa dos torneios pré-olímpicos, "só que sem expectativa" de representar o Brasil em Tóquio, no primeiro ano em que o skate fará parte da competição. "Quem sabe eu tenha uma grata surpresa".

Karen Jonz, pioneira do skate brasileiro - Instagram - Instagram
Imagem: Instagram

Você está escrevendo uma biografia que, paralelamente à sua história, vai contar a história do skate feminino no Brasil. O livro vai ser, ainda, um documentário, também produzido por você. Além de criar um filho, algum outro projeto?
Sim. Dou aulas gratuitas de skate a mulheres. São aulas livres que anuncio no Instagram sempre que viajo, como uma forma de inserir, principalmente, mulheres mais velhas no esporte. O que eu mais vejo é gente que quer começar a praticar alguma atividade física, mas não gosta de academia e nem cogita esportes coletivos porque precisa arrumar time. Foi o que rolou comigo: o skate foi o único que me prendeu. Para começar é fácil.

Eu mesma montei meu primeiro skate, na adolescência, depois de juntar dinheiro vendendo bolo de banana na escola".

Quando você começou, o skate era um esporte ainda predominantemente masculino e nichado. Como entrou na roda?
O ambiente do skate nunca foi amigável com as meninas. Isso tem mudado agora. Eu me masculinizava para fazer parte do grupo, fazia de tudo para ser confundida com um cara: amarrava o peito com faixa, usava camiseta larga, calça, nunca decote ou roupa curta. Cortei meu cabelo bem curtinho para me esconder de um modo que ninguém percebesse que eu estava ali, saca? Assim fui ganhando espaço em uma época em que não tinha nem banheiro feminino nas competições.

karen jonz - Reprodução/Instagram - Reprodução/Instagram
Imagem: Reprodução/Instagram

E você conseguiu se esconder, também, do assédio?
Não. Quando morei nos Estados Unidos, passei por uma situação zoada. Estava com um grupo de amigos e, quando fui entrar no carro de um deles, o cara que estava atrás de mim se sentiu no direito de meter a mão na minha bunda e apertá-la. Saí do carro e dei um chute, ele caiu no chão. Continuei chutando muito, muito, com muita força e ódio enquanto ele estava caído. Até que uma galera me segurou.

Em que momento você percebeu que não precisava mais se esconder?
Quando cheguei ao STU (circuito de competições de skate) do ano passado e vi as meninas andando de skate vestindo top. Fiquei tão feliz que arranquei minha blusa e fui andar com elas. Isso seria impossível quando comecei. Um dia, fui competir e a plateia, predominantemente masculina, começou um coro gritando "gostosa, gostosa". Imagine: eu tentando me concentrar e tendo que lidar com centenas de homens me assediando. Uma hora, peguei o microfone do organizador do evento e falei: "Gostosa é o caralho". Eles pararam.

Em vídeo, você disse ter desistido da Olimpíada, só que continua participando dos torneios pré-olímpicos. Mudou de ideia?
Não foi bem uma mudança de ideia. Eu tinha decidido não ir por causa da cobrança que envolve os treinos para uma Olimpíada. Não tenho o tempo que eu tinha antes para me dedicar com exclusividade ao skate. Na semana em que gravei o vídeo, minha filha tinha ficado doente, depois eu também passei mal. Decidi deixar tudo para trás. Só que, nesse meio tempo, percebi que sentia vontade de competir, então decidi não me cobrar.

Estou além dos meus limites há 20 anos. Não vou pagar esse preço para estar em uma Olimpíada, o que não me impede de participar do circuito e de, de repente, ter uma boa surpresa.

Karen Jonz em 2011: skatista mostra um pouco do seu trabalho como artista e estilista - Fernando Pilatos/UOL - Fernando Pilatos/UOL
Karen Jonz em 2011: skatista mostra um pouco do seu trabalho como artista e estilista
Imagem: Fernando Pilatos/UOL

Foi por causa dessa cobrança que você desenvolveu depressão?
Sim. Comecei a participar dos campeonatos no Brasil e a me dar muito bem, então me mudei para os Estados Unidos. Lá, a rotina de treino era muito restrita, não saía com amigos, comia muito pouco porque achava que um atleta tinha que comer só peito de frango com arroz integral. Passei vários perrengues porque não tinha patrocínio. Acabei voltando para o Brasil num momento em que os campeonatos femininos haviam sido cortados. Por isso, tentei recuperar o tempo perdido numa rebeldia tardia: só queria sair e beber. Até que chegou um momento em que fiquei, por um mês, trancada no quarto sem falar com ninguém. Eu sentia uma tristeza muito grande. Depois de dois dias chorando sem parar, minha irmã me colocou dentro do carro e me levou para um psiquiatra. Ali, recebi o diagnóstico e comecei o tratamento: foram cinco anos tomando remédio. Parei com as medicações quando engravidei e, hoje, busco tratamentos alternativos.

A bulimia apareceu nesse mesmo momento?
Não, foi bem antes. Eu estava começando no skate ainda, era adolescente. Tinha compulsão alimentar por doce, comia muito, comia o dia inteiro até passar mal. Daí conheci uma menina que contou que vomitava para não engordar. Eu achei o máximo. Pedi que ela me ensinasse e comecei a fazer igual. Pensei: "Resolvi todos os meus problemas". Meus pais dizem que não desconfiavam, mas os sinais eram claros: eu corria para o banheiro imediatamente depois de comer. Imagino que eles não soubessem como lidar com isso.

Eu vomitava sempre que achava que tinha comido mais do que precisava. E era uma bola de neve porque, como eu ia vomitar mesmo, passava a comer duas latas de leite condensado inteiras em vez de uma".

Você chegou a começar a treinar o park [modalidade de skate que fará parte da Olimpíada de Tóquio] mas parou. Achou desinteressante?
Não, só não é minha zona de conforto. Sempre fui atleta de vertical porque, quando comecei, não existia park. Depois de um tempo, a modalidade surgiu, mas não me empolguei com a geografia da pista. Quando houve o anúncio de que a Olimpíada seria no park, decidi tentar. Em um ano, melhorei bastante, mas ainda é algo novo. Desencanei de treinar, ando do jeito que sempre andei. Sem essa pressão de conquistar título, voltei a ter prazer em andar de skate. É o melhor momento do meu dia -- junto com os momentos com a minha filha e com o Lucas [marido de Karen], claro.

Karen jonz - Reprodução/Instagram - Reprodução/Instagram
Karen Jonz e a filha, Sky, de três anos
Imagem: Reprodução/Instagram

Houve medo de que a maternidade interferisse na sua performance dentro do skate?
Acho que não. Quando engravidei, não tinha nada acontecendo dentro do skate. Eu tinha acabado de ser campeã mundial, tinha ganhado quatro mundiais e os dois últimos não mudaram nada na minha vida. Estava de saco cheio. Foram quatro mundiais e, por nenhum deles, eu ganhei um grande prêmio ou tive algum destaque na mídia. Se eu quisesse, correria de novo e seria campeã mais cinco ou seis vezes. Queria mudar. E, sem planejar, fiquei grávida. Ao mesmo tempo que foi um choque, foi incrível.

Depois do nascimento da Sky, minha relação com o mundo mudou. Antes, eu não me preocupava com nada e, agora, penso nos valores que quero passar para ela. É um puta privilégio poder ser mãe".

Existe uma cobrança excessiva da sua parte em relação ao esporte e ao tempo com a sua filha?
Existe, mas tento lutar contra ela o tempo todo. Nenhuma mãe pode ter 100% do tempo dedicado ao filho senão ela enlouquece. Esse equilíbrio de ter tempo com minha filha e tempo para mim é desafiador. Às vezes me frustro em vários departamentos da minha vida porque não dá para fazer tudo: o livro, por exemplo, escrevo quando dá. Nem tem data de publicação por causa disso. Eu tento me cobrar menos, minhas expectativas são muito baixas atualmente. Vivo no "vamos fazer o que dá".

Errata: este conteúdo foi atualizado
Diferentemente do informado nesta reportagem, Karen Jonz tem 36 anos e, não, 34. A informação foi corrigida.