Skatista sem pernas e com um braço supera limites em ladeiras a 60 km/h
Imagina descer uma ladeira em um skate a 60 km/h. Para as pessoas que não estão acostumadas com o esporte já dá um frio na barriga só de pensar, certo? Agora Imagina agora fazer isso sendo uma pessoa com deficiência física. É assim que o capixaba Kassy Jhonnes, de apenas 22 anos, mostra que não há limites para superação. Ele nasceu sem as duas pernas e o braço direito, e mesmo assim é um dos grandes nomes do skate downhill no Brasil.
Em apenas quatro anos como profissional, conquistou os títulos de campeão estadual do Espírito Santo e foi considerado o melhor paraskatista brasileiro da modalidade no Brasil em 2018. No ano seguinte, ficou em terceiro lugar no mundial de paraskatistas nos Estados Unidos e foi campeão sul-americano.
"Quando comecei no skate, meses depois começamos a postar as aventuras nas ladeiras, o que chamou a atenção de muita gente no mundo todo. Foi quando recebi o convite para me apresentar em uma competição mundial em Nova Lima, em Minas Gerais, em 2017. Ali eu vi que poderia ir longe mesmo. Em seguida recebi vários outros convites para eventos fora do Brasil", conta Kassy.
Apresentando-se até 2017 apenas em eventos promovidos para difundir o esporte — que estreia como modalidade olímpica nos Jogos de Tóquio —, Kassy é o único atleta na modalidade paraskate downhill no Brasil. Mas ele quer mais, afinal, conforme foi crescendo na modalidade, percebeu que poderia competir em iguais condições com as pessoas sem deficiência.
Kassy Jhonnes nasceu sem as pernas e um dos braços porque sua mãe fez uso acidental, durante a gravidez, de Talidomina, um sedativo e anti-inflamatório pode causar má-formação no feto. Mas a deficiência nunca o impediu de fazer nada. O pai, Ismael, o ensinou a nadar, pegar ônibus, a descobrir o mundo e nunca deixar de acreditar em si mesmo.
A certeza de que a deficiência não é impedimento para os sonhos é tanta que ele seguiu à risca a cartilha de quase todo menino brasileiro e, até os 17 anos, pensava em ser jogador de futebol. Mas tudo mudou quando o pai reagiu a um assalto e foi assassinado. Foi quando Kassy Jhonnes sentiu-se, pela primeira vez, incapaz de fazer algo.
"Meus sonhos morreram quando perdi meu pai. Eu vi que a vida não era um conto de fadas e que muitas coisas que eu queria, como ser jogador de futebol, não seriam possíveis. Eu tive que encarar a realidade que ele me protegia, e isso doeu muito", lamentou.
Skate como suporte
O suporte que faltava para seguir acreditando em si mesmo veio por meio do skate. Ele aprendeu a andar e descobriu que seu único problema seria frear - afinal fazer isso com apenas uma mão não é tarefa fácil. Foi preciso se acidentar um pouco e se machucar um pouco para pegar o jeito.
O lugar do pai é impossível de ser preenchido, mas Kassy achou apoio nos amigos e na mãe para seguir em frente. No skate, recriou relações de afeto, nas quais as pessoas se preocupavam com ele e queriam vê-lo tendo sucesso. Foram os amigos que o ensinaram a frear.
"Sempre tiveram medo de que eu me machucasse, é verdade, mas nunca me olharam com desdém. Eles diziam que, numa queda, eu poderia ter alguma consequência séria. Nunca tive. E eles continuam me ajudando, me apoiando, dando uma força. São essas pessoas que criam as vaquinhas comigo, que me ajudam a ir competir ou para as demonstrações", afirma.
Mesmo sendo um atleta com carreira internacional, o dinheiro ainda é um problema para seguir competindo. Há a distância, os valores para todo o transporte, além do próprio ingresso em um campeonato. O skatista afirma que gasta em média R$2 mil em cada competição, o que é um pesado para ele. O investimento, porém, começa muito antes dos campeonatos. Há gastos com treinos, equipamentos e com a alimentação e academia para manter o corpo em forma para enfrentar as ladeiras em alta velocidade.
Dificuldades e preconceito
As dificuldades financeiras não são as únicas na vida de Kassy Jhonnes. Até se locomover dentro da própria cidade, Cariacica, é um desafio diário. Até existem ônibus adaptados para cadeirantes, mas são poucos, e, nos horários de pico, ficam lotados. Além disso, quando um coletivo quebra, ele fica à mercê da sorte. Liga para alguém pedindo carona ou tem que esperar o seguinte.
"Já enfrentei diversos problemas com o transporte público. No dia 5 mesmo, ao subir no ônibus, o elevador estragou, tive que descer, só consegui chegar em casa pois meu primo foi me buscar", relata o atleta. "Quando fazia academia fora do bairro, saia de casa às 15h e chegava somente às 21h, porque saía da academia às 17h, e era horário de pico. Os ônibus estavam sempre cheios e não havia espaço para mim".
Isso sem contar as calçadas em péssimas condições, a falta de guias rebaixadas e a inadequação de lojas e restaurantes para pessoas cadeirantes. Por tudo isso, questionado se é mais difícil ganhar uma competição ou chegar ao local de prova, ele não hesita: "É mais difícil chegar às competições, mesmo fazendo todo um trabalho de planejamento de até quatro ou cinco meses antes, sempre vou com a ajuda de amigos, vaquinhas, rifas, tudo para bancar a viagem", relata.
Outro problema que Kassy tem que enfrentar constantemente é o preconceito. Mas isso também não o detém. "Sofri preconceito, uma fase muito ruim, e entendi que infelizmente a sociedade ainda não aprendeu a conviver em paz".
Além disso, existem pessoas que usam a situação de Kassy para fazer piada de mal gosto. Recentemente, um homem o procurou, se apresentou como repórter e disse que queria entrevistá-lo. O rapaz aceitou na hora, afinal contar sua história serviria de inspiração para outras pessoas com deficiência e a divulgação do seu trabalho poderia ajudá-lo com patrocínios para competições.
"Esse falso repórter se identificou, dizendo que era de um grande veículo de comunicação, pedindo para que contasse toda a minha história. No fim de tudo, era apenas uma pessoa brincando. Mas tenho o objetivo de levar a minha história ao máximo de lugares que eu conseguir, mudar histórias, pessoas, pensamentos e ideologias. Mostrar que o impossível é realmente só questão de opinião", afirma, citando uma das músicas da banda Charlie Brown Jr.
Inspiração e futuro
Os problemas de Kassy parecem ficar para trás quando ele fala sobre futebol. Mesmo que tenha desistido de ser jogador profissional, de jogar um Fla x Flu no Maracanã lotado, o esporte segue dentro dele.
"A verdade é que eu sempre fui apaixonado por futebol. A gente não aprende a gostar, ele não escolhe raça, cor, nada, e muito menos se você tem a principal a ferramenta para praticar, ou não."
O skatista ainda bate uma bolinha, e não é só para manter a forma. Ele faz parte de um projeto social, uma escolinha de futebol para crianças e adolescentes de cinco a 15 anos, e sente que a presença dele ajuda a ensinar inclusão social aos pequenos.
Além de poder servir de inspiração, ter direito a ir e vir e participar das competições, Kassy quer coisas simples, como uma casa sem escadas. "Hoje, por exemplo, eu moro no terceiro andar. E gostaria de morar no térreo. Facilitaria as coisas. Eu sonho mesmo em ter a casa própria, em viver tranquilo, sem me preocupar em quanto virá a energia [conta de luz] no próximo mês".
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