"Surfe me abriu portas", diz jovem negro acusado por casal de furtar bike
O surfe deu muitas oportunidades a Matheus Ribeiro, de 22 anos. Foi por meio do esporte que o instrutor, nascido e criado no Complexo da Maré, conjunto de favelas na zona norte do Rio de Janeiro, passou a frequentar com mais assiduidade os bairros nobres da zona sul carioca. Foi também o surfe que deu a ele algumas primeiras vezes: o primeiro emprego, a primeira viagem de avião e a oportunidade de visitar outro país. Além disso, foi dando aula que conheceu a namorada, Maria.
Era ela quem ele esperava na frente do Shopping Leblon no último sábado (12), quando foi abordado por um casal de brancos, que o acusou de furtar a bicicleta elétrica, que pertence ao jovem. Matheus filmou a abordagem e postou o vídeo no Instagram, alegando que foi apontado como ladrão por ser negro. O vídeo rapidamente viralizou.
Como o surfe entrou na vida de Matheus tardiamente, aos 17 anos, ele não conseguiu competir profissionalmente, mas não deixou de ganhar a vida por meio do esporte.
"Na minha infância, [o surfe] nunca foi presente. Eu comecei a assistir a campeonatos na minha adolescência, porém, por ser um esporte um pouco elitizado e por morar longe da praia, eu não tinha tanta possibilidade. Procurava algumas escolinhas, mas estavam todas fugindo um pouco do meu orçamento", contou Matheus ao UOL Esporte.
Até que há cinco anos, quando foi "pegar" uma praia no Arpoador, na zona sul do Rio, conheceu o surfista profissional Marcelo Bispo, dono da Team Bispo, no Posto 7. "Falei: 'poxa, cara, meu sonho é surfar. Queria saber se você consegue fazer uma promoção para mim porque eu já procurei várias escolinhas e todas são mais caras do que eu espero'. Ele: 'Tu é de onde?' 'Sou lá do Complexo da Maré'. 'Pode vir que a gente vai dar aula para você'", reproduz Matheus a conversa que teve com o futuro patrão.
Em pouco tempo, apareceu a oportunidade do primeiro emprego, ali mesmo na escolinha. Bispo precisava de um ajudante para carregar as pranchas. "Perguntei a ele: 'cara, tu não quer ganhar um dinheiro maneiro, não?' E ele topou na hora. Eu falei: 'Durante esse tempo, você vai continuar surfando, nos intervalos entre uma aula e outra, e vai continuar evoluindo. E aí começou nossa história de trabalho", contou Bispo ao UOL.
Cerca de um ano depois, Matheus ganhou a primeira promoção. "Devido à excelência do trabalho que ele apresentou e o nível de surfe que ele rapidamente adquiriu, eu passei a precisar de um professor, de um instrutor lá comigo. Eu falei para ele: 'Cara, você quer aprender a dar aula? Eu vou te ensinar tudo. Com a experiência que você já tem dá para fazer muita coisa'. Na verdade, eu ia botar ele para só para cuidar das crianças, mas até nisso, ele mostrou excelência e, rapidamente, virou um instrutor normal, padrão. Hoje em dia, ele é meu braço direito lá", disse o surfista.
Primeira viagem internacional
Pouco antes de promover Matheus, Bispo organizou, em fevereiro de 2018, uma viagem com os alunos da escolinha a El Salvador. Um dos objetivos era justamente investir no futuro instrutor.
"Ele [Marcelo Bispo] me ajudou a pagar a passagem e pagou todos os meus custos lá para que eu evoluísse e, quando voltasse, começasse a dar aula. Foi depois dessa viagem que comecei a ajudar ele como professor. Foi uma coisa que ajudou os dois, mas para mim, poxa...muito mais. Eu tive cada experiência incrível de primeiras vezes naquele lugar", conta o jovem, citando a primeira viagem de avião e a primeira experiência fora do Brasil.
O surfe foi um esporte que abriu muitas portas para mim. Pelo Marcelo, consegui viajar pela primeira vez internacionalmente. Já viajei pro Nordeste, já viajei para São Paulo, para Ubatuba, para pegar onda. Então já conheci vários lugares, vários picos maneiros com essa oportunidade que o Marcelo me dá, que o surfe me dá. É muito bom para mim.
Democratização do esporte
Matheus perdeu o pai quando ainda era um garoto de 11 anos. A mãe morreu quando ele tinha 16 anos. É com a mãe de criação, Marilene, a quem chama de "Leninha, meu amor", que ele mora na Vila do João, na Maré, um complexo de 16 favelas (o maior do Rio), onde vivem cerca de 140 mil pessoas. A região frequentemente ganha espaço na imprensa por casos de violência. Segundo o boletim Direito à Segurança Pública na Maré 2020, divulgado em fevereiro deste ano, a região foi alvo de 16 operações policiais no ano passado e teve 19 pessoas assassinadas em confrontos entre grupos rivais ou por policiais.
A realidade é muito diferente da que ele vivencia diariamente na zona sul, que tem os bairros mais ricos e mais seguros do Rio. "Passou o túnel, parece que é outro país", diz Matheus.
O instrutor sabe que poucos jovens da sua região têm a oportunidade que ele teve no esporte. Além da distância em relação às praias, o surfe é elitizado, com equipamentos caros, especialmente as pranchas.
Matheus diz que é o único do bairro que surfa, mas não quer continuar sendo exceção. "Sempre que meus amigos têm disponibilidade, eu levo eles lá pra praia para ensinar. Então, estou sempre incentivando e dando aula de graça, depois do meu horário de trabalho, para quem está próximo de mim", diz. O sonho de Matheus vai além de apenas ajudar os amigos, a ideia é democratizar e atingir pessoas que normalmente não teriam acesso ao esporte.
Então, tenho muita vontade de continuar sendo professor, de um dia ter minha própria parada, de fazer um projetão para a galera da minha periferia, de mostrar que o surfe dá oportunidade, como me deu, para criar uma opção a mais para as pessoas. Meus amigos de lá não veem o surfe como uma opção de esporte porque [a praia] é longe, porque é caro, então, a galera é do futebol, outras coisas. Eu quero incluir eles nisso.
"Infelizmente não fui procurado por nenhum patrocínio, nenhuma ajuda ainda. Porém, acredito que com essa visibilidade [do vídeo], eu possa alcançar isso. Eu quero muito fazer alguma coisa para incentivar mais as pessoas provarem que podem. Mesmo que não da minha área, das periferias daqui da zona sul mesmo, que são mais próximas de lá da praia, como Rocinha e Vidigal. Levar algumas crianças, dar acessibilidade para elas no esporte."
"É tudo sobre raça"
Matheus ficou conhecido após gravar um vídeo em que é abordado por dois brancos e acusado de roubar a bicicleta, pela qual pagou R$ 4.500 há cerca de quatro meses. Após o caso viralizar, o casal foi identificado como a professora de dança Mariana Ribeiro Spinelli e o designer Tomas Oliveira, que foram demitidos dos seus empregos. A Polícia Civil tipificou o crime como calúnia e difamação.
Matheus, no entanto, tem certeza de que a abordagem foi motivada por racismo. "Na hora do acontecido, a gente se sente indignado primeiramente. Primeiro, eu fiquei em choque e tentei mostrar a minha inocência o máximo possível porque a gente nem entende o que está acontecendo. Mas depois que você começa a perceber o porquê disso, o porquê dessa acusação, dessa certeza de que a bicicleta é dela, é bem chato, deixa a gente bem triste. Ela disse que eu fiz uma coisa que eu não fiz, porém, essa calúnia não aconteceria se eu não tivesse a minha cor. Então, é tudo sobre raça".
"Com esse caso, eu espero que aconteça, principalmente, a conscientização. Eles [o casal] entenderem que o que fizeram é muito errado. Ao contrário do que as pessoas pensam, eu não quero que eles queimem no fogo do inferno por isso, eu não quero ganhar cesta básica em cima deles. Eu quero que isso não aconteça mais, tanto comigo quanto com outros pretos. Então, eu quero que eles tenham consciência de que o que eles fizeram comigo é crime e crime deve ser pago", disse Matheus.
Nesta quinta-feira (17), a Polícia Civil do Rio prendeu um homem branco suspeito de roubar a bicicleta elétrica de Mariana. Igor Martins Pinheiro, de 22 anos, tem 28 anotações criminais, 14 delas por furto de bicicletas.
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