Ciclista que perdeu o braço na Paulista quer representar o Brasil em 2024
O dia 10 de março de 2013 mudou os rumos da vida de David Santos Sousa. Então com 21 anos, ele foi atropelado na avenida Paulista, às 5h30 da manhã de um domingo. Estava a caminho do trabalho de bicicleta. O atropelador, o estudante de psicologia Alex Siwek, fugiu do local levando o braço direito de David no carro.
Hoje, David tem 30 anos, é casado e tem um filho, o pequeno Dylan, de apenas cinco meses.
O acidente mudou a forma como David se enxerga no mundo. Se antes só pensava em trabalhar e terminar o ensino médio, agora quer representar o Brasil nas Paralimpíadas de Paris, em 2024. Sem ironia, pretende fazer isso no ciclismo.
"Minha saga começou quando a médica falou que eu não poderia fazer as mesmas coisas que eu fazia antes. Foi um desafio. Eu comecei a fazer tudo o que eu fazia antes... e mais. Eu só trabalhava e estudava. Depois [do acidente], comecei a fazer muay thai, trabalhar, estudar, voltei para o rapel, para o ciclismo, aprendi a dançar. Coisas que não fazia antes", contou David.
O UOL passou um dia com ele para entender o que mudou desde 2013.
Foco é em Paris
David chega cedo na academia perto da casa onde mora, na Cidade Júlia, na periferia da zona sul de São Paulo. Vai ficar ali pelas próximas quatro horas. A primeira coisa que faz é vestir um colete de 20kg. Com ele, faz exercícios funcionais, como agachamentos e saltos, corre na esteira, pedala e treina no elíptico. Não demora muito para o suor escorrer.
Quando tira o colete, está com a camiseta e a bermuda encharcadas. Na hora dos pesos, faz treinos de perna, ombro, peito. Depende do dia. "Treino pesado mesmo. Eu nunca me limitei a treinar leve. Sempre busco o treino mais duro, o mais pesado para buscar o melhor resultado. Tudo isso é o que eu utilizo com o foco nas Paralimpíadas."
Tardes são reservadas para o trabalho. David pedala cerca de 50km por dia entregando objetos. "Quando começou a pandemia, eu chegava a rodar 100, 150km por dia. Quando foi chegando o final do ano, foi caindo. Estava rodando 80km, fazendo 10 pacotes, 15 pacotes. Atualmente, não está tendo tanta entrega, então, são três a quatro por dia. Fica ali uns 30, 40km, até 50km", diz.
À noite, pedala com um grupo de ciclistas de São Bernardo do Campo, na Grande São Paulo. "São mais 80km, 90km em duas horas, quase três. O treino é variado. Segunda é recuperação, terça é subida, quarta é longa, quinta tem outro tipo de treino específico e sexta, recuperação, que é o rachão. É recuperação, mas os caras saem pilotando e aceleram. Quem ficar para trás, ficou".
No ano passado, David começou a trabalhar focado nas Paralimpíadas. Participou da primeira etapa da Copa Brasil de Paraciclismo, mirando os Jogos de Tóquio. Ficou em 8º lugar. Como as outras etapas foram canceladas por causa da pandemia, não conseguiu se classificar. "Neste ano, participei de cinco provas: duas amadoras e três federadas. Dessas três, duas eu tive pódio, quarto e terceiro lugar", diz David.
Hoje eu consigo subir no pódio, coisa que eu prometi quando eu comecei. A minha intenção é estar sempre no pódio. Minha intenção é estar no primeiro lugar. Já estou em terceiro. Estou chegando perto, a dois passos do primeiro lugar. Então, vou treinar para conseguir meu objetivo."
David Santos Sousa
Dança, rapel e muay thai
No caminho até Paris-24, David colocou outros esportes. Duas vezes por semana, pratica muay thai com um grupo em que é o único paratleta. Além disso, ele dança. "Minha irmã me chamou para uma festa, uma balada. Cheguei lá, não sabia dançar e nem gostava de sertanejo. Vi um monte de gente dançando. Tinha um monte de mulher bonita dançando. Eu falei: 'preciso aprender'."
No dia seguinte, Davi foi fazer aula. "Paguei um mês, dois meses. E o professor só passava a base para mim. Eu percebi que não estava evoluindo. Parei de fazer aula com ele e comecei a frequentar balada de quinta a domingo. Lá aprendi a dançar sozinho. Hoje, faço evolução, aéreo..."
David reserva os fins de semana ao rapel. Aprendeu antes do atropelamento, quando trabalhava como limpador de fachada de prédio e usava a atividade como parte da profissão de alpinista industrial. Atualmente, faz por lazer. Ele se juntou a três amigos para comprar os equipamentos e ensina a eles os segredos para descer paredões de pedra. Deu tão certo que até a mãe e a esposa de David praticam o esporte atualmente.
"Ia para o trabalho chorando"
Em 2019, essa realidade parecia distante de David. Naquele ano, conseguiu uma vaga na área administrativa de uma empresa por meio do programa Jovem Aprendiz. Aceitou porque precisava pagar as contas. O trabalho burocrático, porém, o abalou.
"Não estava fazendo o que eu gostava, que era andar de bicicleta. Eu estava começando a até ir para o trabalho chorando no metrô. Pensava em sair do metrô e caminhar para qualquer lugar, sem falar nada para ninguém, sem contato com ninguém. Só ir embora."
"Não estava me sentindo bem. O cabelo estava caindo e comecei o tratamento psiquiátrico. Estava tomando remédio para diminuir a ansiedade. Era ansiedade e depressão, tudo junto."
David só melhorou quando surgiu a oportunidade de fazer da bicicleta o seu meio de vida.
Patrocínios devolveram a esperança
Em 2017, David colocou um projeto de patrocínio embaixo do braço e o apresentou a algumas empresas. Recebeu apenas não como resposta. Desistiu. Um dos amigos que conheceu nesse período, não.
"A gente se conheceu num evento de deficientes [em 2017]. Ele sabia o que tinha acontecido. Apresentou o projeto para a empresa em que trabalhava. Na época, eles não estavam com esse foco. Pensei: 'o cara não ligou, não vai mais ligar'. Dois anos depois, ele me liga com a notícia de que a empresa queria ser um patrocinador."
Essa conversa chegou no período em que fazia tratamento para depressão e ansiedade. E foi suficiente para lhe devolver a esperança. "Assim que eu recebi a notícia [sobre a possibilidade de ser patrocinado], falei para minha supervisora que iria ter que me desligar e que minha vida ia mudar". Em três dias, estava fora. E fechou o patrocínio na primeira reunião.
Depois, David conseguiu mais dois contratos de patrocínio que rendem, em média, R$ 2.500 por mês. Ainda recebe um auxílio-acidente no valor de meio salário-mínimo. A renda total é insuficiente para sustentar a esposa, que está desempregada, e o pequeno Dylan. Por isso, faz entregas. O ideal, calcula, é que tivesse uma renda de R$ 5.000 mensais para se dedicar inteiramente à carreira esportiva. Algo que banque treinos, competições e a dieta de atleta, coisa que não consegue atualmente.
Depois que eu consegui o patrocínio, fiquei só nos treinos e nas entregas. Pedalo o dia inteiro. Meu foco é na rua, no trânsito. Não tenho a cabeça vazia para ficar pensando em coisas que vão me prejudicar. Foi ali que começou a minha recuperação. Eu voltei a ser uma pessoa normal."
David Santos Sousa
David morreu e foi ressuscitado
David hoje sonha com as Paralimpíadas por causa de um homem: Thiago dos Santos Chagas. Ele e um amigo, Agenor, estavam voltando de uma balada quando ouviram o barulho do acidente. "Quando chegamos, ele estava caído de bruços. A gente não sabia o que tinha ocorrido ali. Viramos bem devagarinho e nos deparamos com ele sem o braço. Foi um momento em que parei, fechei o olho e pensei: 'E agora, o que eu faço?'", contou Thiago, atualmente com 35 anos.
Naquele momento, David não tinha pulsação e não respirava. "Comecei a fazer massagem cardíaca e abri a boca dele para ver se tinha circulação. Comecei a sentir o pulso e vi que ele mexeu o olho. Ele voltou".
Naquela época, Thiago trabalhava como técnico em enfermagem. "Tocar nele já foi uma imensa responsabilidade, mas eu estava seguro. Não é que eu precisei ter coragem, foi instinto. Estava movido por adrenalina. Você sabe o que tem que fazer. Não dá tempo de pensar em grandes coisas".
Thiago largou a enfermagem e se mudou para o Rio Grande do Sul. Atualmente, está no último ano da faculdade de medicina veterinária. Mas ainda mantém amizade com David, com quem pratica rapel quando visita São Paulo.
Criou um vínculo naquela época, pelo respeito recíproco um pelo outro. É uma amizade. Acho ele uma pessoa extremamente resiliente, forte pra caramba. Um homem fantástico e agora pai, atleta. É uma pessoa batalhadora. Estava indo trabalhar naquela hora em que eu estava voltando para casa. Acho ele fantástico, admiro muito. Ele foi muito forte. É forte até hoje."
Thiago Chagas do Santos
Se não fosse ele, eu estaria morto. Teria continuado morto porque no momento não tinha ninguém para me socorrer. Provavelmente nenhum pedestre poderia fazer nada porque não saberia como reagir. Talvez não soubesse fazer uma RCP [ressuscitação cardiopulmonar] ou um estancamento. Foi graças a ele que eu sobrevivi."
David Santos Sousa
Atropelador teve a pena reduzida e quase não ficou preso
Alex Siwek ficou apenas 11 dias preso e saiu antes que David tivesse alta. Em 2014, foi condenado a seis anos de detenção em regime fechado. Em 2017, porém, o Tribunal de Justiça de São Paulo reduziu a pena para dois anos em regime aberto, oito meses de habilitação suspensa e pagamento de multa. A prisão foi substituída por serviços à comunidade e prestação pecuniária de 50 salários mínimos.
Hoje, David move um processo contra Siwek para receber indenização —ganhou na primeira e segunda instâncias. O processo está no Superior Tribunal de Justiça.
A reportagem procurou a defesa do motorista, e o advogado Cassio Paoletti Junior se limitou a dizer: "Não temos o menor interesse em saber a opinião desse rapaz".
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