'Vem lavar minha cueca': ela superou machismo para virar pro-player de Fifa
'Vai lavar uma louça'. 'Vai procurar o que fazer'. 'Vai lavar minha cueca'. Imagine só você se tornar alvo de ataques ofensivos no mundo dos games simplesmente por ser mulher. "É disso para pior", conta Juliana Pires, hoje jogadora profissional (pro-player) de Fifa contratada pela Portuguesa. Aconteceu com ela e ainda acontece com várias meninas que levam a melhor sobre o sexo oposto em algum jogo de videogame.
As agressões relatadas partiram de homens que não se conformaram em ser derrotados por uma mulher, no caso, Juliana Pires, também conhecida como A Dona da Bola nas redes sociais. "Acontece praticamente todo fim de semana", revela sobre as mensagens particulares que recebe no Playstation, já como jogadora profissional no mundo do e-sports.
Mas se hoje o preconceito é demonstrado dessa forma, antes a repreensão por simplesmente querer jogar videogame acontecia de outras maneiras, e vinha até das próprias amigas.
"'Vai lá, Maria João, jogar com os machos'. 'Menina, para com isso, que coisa feia, nenhum homem vai querer namorar com você. Como uma menina fica numa locadora rodeada de homem? Isso é coisa de homem!'. Escutei muito isso. Mas o ápice do preconceito foi quando até amigas falaram: 'você nunca vai arrumar ninguém desse jeito, com esse jeito masculino de ser, só querendo saber de jogo, Fifa, videogame em locadora cheia de homem'", diz.
"E agora, já na vida adulta, vivendo de Fifa, você pega minhas mensagens e tem várias, de homens: 'Ah, sua... Vai lavar minhas cuecas, vai lavar uma louça, vai procurar o que fazer'. Muitas mensagens ofensivas e preconceituosas, praticamente todo fim de semana. E disso para pior", acrescenta A Dona da Bola.
Juliana começou a vivenciar o machismo assim que se descobriu fã de jogos de futebol no videogame, antes mesmo da adolescência, quando já precisava lidar com tipos de brincadeiras que, apesar de lhe servirem como motivação, não eram de bom gosto.
"Eu comecei a pegar gosto [por videogame], mas só por brincadeira mesmo, de jogar contra os amigos, ou contra os menininhos que ficavam na locadora me desafiando: 'nossa, uma menina jogando videogame'. Eu meio que gostava disso. É como sempre falo, era um preconceito velado. Mas na época eu tinha isso como motivação mesmo", conta.
"Não tem como educar esses caras"
Juliana poderia -e tinha todo o direito de— responder as mensagens ofensivas de várias formas, mas, por muitas vezes, preferiu o silêncio. Em suas lives pelo YouTube, ela aborda o preconceito e procura sempre conscientizar os internautas.
"Eu só respondi umas duas vezes, meio que ironizando. Fui até um pouco soberba, do tipo 'vai aprender a jogar', 'vai treinar mais para parar de falar besteira'. Mas depois eu pensei: 'sabe de uma coisa? Não vou perder minha razão, ou até mesmo colocar um kkkk para debochar mesmo e deixar o cara mais p da vida ainda'. Não vale a pena ficar retrucando, não tem como 'educar' esses caras", diz.
"Nas minhas lives já conscientizei bastante, já contei os fatos para o meu público, aí é outra história. Mas ficar debatendo mensagens de internet, que você nem sabe com quem está falando, preferi ficar na minha. Vejo a mensagem e às vezes levo até como elogio, porque se o cara está bravo é porque fiz um ótimo jogo. Sigo em frente e não deixo me abalar. Não sou mais soberba de ficar respondendo com gracinha, apenas ignoro e levo como motivação", opina.
"A sociedade já impôs: futebol, videogame, é coisa de homem"
Para Juliana, a baixa presença de meninas nos níveis mais avançados dos campeonatos profissionais está 100% relacionada ao preconceito que existe com as mulheres.
"Tenho certeza que muitas meninas não se jogam e não se dedicam porque já têm na cabeça delas que, primeiro, não são capazes. É clichê isso, mas um dia eu já duvidei da minha capacidade. Várias podem pensar 'não vou arrumar uma namorada'. Vão achar o quê? Que menina vagabunda, só joga videogame? E por ser mulher, ainda é pior. Então muitas têm vergonha e, com essa vergonha, você não consegue se dedicar", afirma.
Muitas meninas não fazem isso por vergonha, medo de não arrumar ninguém, e outra coisa: os xingamentos são muito pesados. Você se abala com isso e começa a duvidar da sua capacidade. Aí você fala assim: 'ah, melhor deixar quieto, deixa eu trabalhar em outras coisas, é melhor evitar problema'. Muitas não jogam por conta disso, por preconceito, pelo que a sociedade já impôs: futebol, videogame, é coisa de homem.
Felizmente, já existem áreas em que o preconceito quase não existe. De acordo com Juliana, o tratamento que recebe dos companheiros de profissão de e-sports já é totalmente diferente. "Também tem a parte legal, do acolhimento no mundo do Fifa. Os meninos me receberam muito bem. Me treinam, jogam contra mim, falam meus pontos fracos, então também tem o lado bom. Hoje em dia o acolhimento nesse mundo competitivo foi muito legal para mim".
"Eu pegava o dinheiro do lanche e ia pra locadora"
Caso esta reportagem chegue até a mãe de Juliana (o que esperamos que aconteça), ela descobrirá que o dinheiro contado para as refeições na escola nem sempre era usado da maneira que ela imaginava. Porém, certamente serviu como experiência para a filha ser quem é hoje.
"A minha história com o futebol virtual começou muito cedo. Acho que com 7 ou 8 anos eu já jogava no Mega Drive. Todo mundo queria jogar outros joguinhos e eu queria futebol. Era muito incrível. Inclusive minha mãe vendeu meu videogame porque dizia que eu ia viciar, que não ia me dedicar na escola... E minha história começou jogando nas locadoras da vida. Eu pegava 50 centavos, 1 real que minha mãe dava para o lanche da escola e, quando saía, ia para as locadoras jogar. Se minha mãe ler isso agora vai surtar [risos]", brinca.
"Depois acabei esquecendo um pouco o videogame. Comecei a trabalhar em uma sorveteria e abri mão. No final de 2017, vim morar em São Paulo, com meu noivo, e tinha um PS4. Aí o amor começou novamente, o vício mesmo... E conheci o Ultimate Team, que é viciante", diz Juliana, citando modo em que joga profissionalmente —o mais popular do jogo, no qual você monta seu time dos sonhos do zero.
"De uma brincadeira virou algo bem sério"
A prática foi levando Juliana a um alto nível de competição. Com o tempo, ela passou a dar dicas sobre o jogo e viu que tinha um caminho por ali. Desde o ano passado, é contratada da Portuguesa de Desportos para jogar o jogo que ama.
"Comecei a fazer lives no YouTube, a galera começou a falar que eu tinha talento, que tinha jeito para a coisa, e comecei a levar um pouco mais sério. Aí, no começo do ano passado, fui chamada para uma equipe de Fifa e comecei a pensar: 'será?'. E comecei a me dedicar ainda mais. Comecei a jogar mais campeonatos e foi de fato quando comecei a entrar nesse mundo de competição", conta Juliana, que, além de jogar Fifa profissionalmente, atua como influenciadora digital, tem parceria com o fantasy game Rei do Pitaco e ainda cria conteúdos do Cartola FC.
"Agora estou na Portuguesa, num grande clube, tradicional do futebol brasileiro, e eles apostaram em mim, me dão toda estrutura com psicólogo, coach, investem em campeonatos grandiosos... De uma brincadeira virou algo bem sério", afirma.
"Eles inclusive estão terminando o projeto de Game House, que é um centro de treinamento para gente. Quando tem campeonatos maiores, eles juntam todo mundo, fazem toda uma cobertura, com alimentação... Eles dão toda estrutura para que um jogador de Fifa consiga evoluir com tranquilidade, para que você foque realmente no jogo", acrescenta.
O maior sonho
Meu sonho é bem fácil de falar. É jogar de igual para igual no competitivo, independente de ser homem ou mulher. Ser uma pro player, chegar e jogar um qualify, que é a qualificatória para o campeonato mundial da EA [Sports]. Acho que é o maior objetivo de um jogador de Fifa profissional. E quem sabe ser a primeira mulher brasileira a jogar um qualify... Já estou na divisão de elite, que já é a maior divisão do Fifa. Agora é conseguir a pontuação para tentar participar dessa qualificatória. É meu maior sonho no Fifa.
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