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Marcos Uchôa foi "pai" de Ronaldo, viu 8 Copas e deixou Globo pela política

Marcos Uchôa deixou a Globo depois de 34 anos para se candidatar a deputado federal - Arquivo Pessoal
Marcos Uchôa deixou a Globo depois de 34 anos para se candidatar a deputado federal Imagem: Arquivo Pessoal
Talyta Vespa e Talyta Vespa

Do UOL, no Rio de Janeiro

10/07/2022 04h00

Marcos Uchôa almoçava com a mulher, Teresa, quando sentiu que a política poderia ser o novo mundo que ele tanto queria desbravar. Eles papeavam sobre a vida —como fazem desde os 19 anos, quando começaram a namorar— em um dia que o faria tomar uma decisão inesperada: deixar a Globo após 34 anos.

Esse almoço aconteceu no último novembro, mesmo período em que o Globoplay começou a transmitir o documentário "Retratos de uma guerra sem fim", que contava as mudanças do mundo por meio das viagens feitas por Uchôa depois do 11 de setembro. "A última reportagem que fiz no esporte, por coincidência, foi com Zico e Júnior, meus ídolos da adolescência. Aquilo tinha cara de final feliz. Era meu melhor momento", diz.

Corajoso escolher um melhor momento dentre tantos que permearam uma carreira invejável. Uchôa foi o cara do esporte da Globo, mas não se restringiu a isso: foi correspondente internacional, fala sete línguas (cinco bem, duas mais ou menos), conhece 115 países e já cobriu desde guerras até nomeação de Papas. Abrir mão de tudo isso, e do salário generoso que conquistou em três décadas, foi —pasme!— fácil.

"A Globo tem menos dinheiro, também pela crise que o país enfrenta. Viaja-se bem menos na Globo hoje. Muitos jornalistas que estavam na emissora há tempos, como eu, foram demitidos. O [diretor de jornalismo] Ali Kamel, no entanto, me disse que eu não seria afetado. Só que eu precisava fazer algo novo. Já não me fazia brilhar os olhos mais uma Copa do Mundo -já cobri oito. Eu comecei a sentir que o Brasil é o lugar que mais precisa de atenção agora. O autoritarismo é um fenômeno mundial, mas nossa democracia é muito frágil. Recente. Está ameaçada".

Na tentativa do diálogo

Uchôa concedeu esta entrevista ao UOL num botequim em Botafogo, no Rio de Janeiro. Bebericando sua caipirinha de vodka com limão, contou algumas das tantas histórias que acumula em mais de 40 anos de jornalismo. A leitura do momento, ele conta, é o livro "Racionalidade", de Steven Pinker -o intuito é aprender a dialogar com quem discorda. "É importante recuperar o espaço do diálogo com o pessoal da direita. Não falo dessa direita louca, bolsonarista. Me refiro à direita que até votou no Bolsonaro, mas com quem a gente consegue sentar e conversar".

Uchôa se filiou ao PSB e vai apoiar Lula nas eleições de 2022 —"apoiaria qualquer um que fosse o grande adversário do Bolsonaro". Ele vai se candidatar a deputado federal pelo Rio de Janeiro, e tem Marcelo Freixo como seu principal aliado na nova missão. "A ideia de entrar para a política tem uma razão pessoal e uma social. A pessoal é fazer algo diferente. A social é um momento do Brasil. A gente precisa tirar o Bolsonaro. Se não fosse o Bolsonaro e a situação do país, eu não entraria para a política".

Carioca, Uchôa considera extrema a situação do estado do Rio de Janeiro, com cinco governadores presos e um impichado. "Isso não é história, é ficha corrida. Não dá pra normalizar o que acontece aqui. Acho que, lamentavelmente, a esquerda se afastou da área de segurança pública de uma maneira muito errada. É preciso olhar para isso e recuperar isso. Um dos problemas da sociedade é colocar a polícia como uma coisa inteira ruim. E não é, claro que tem polícia boa. Assim como tem jornalista bom e ruim".

"Eu moro no Rio, quero morar no Rio. Morei 11 anos em Londres e pedi para voltar porque queria meus filhos mais brasileiros. Morei quatro anos em Paris e pedi para voltar. Eu sou um patriota de verdade. Não dos que acham que o Brasil é uma merda e querem morar lá fora."

O adeus à Globo

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Imagem: Arquivo Pessoal

Uchôa conta que tinha criado uma situação "bastante confortável" na Globo. Pai de três filhos -dois deles moram fora do Brasil-, tentava conciliar em seu único mês de férias todas as visitas. Estava difícil. Pouco antes da pandemia de coronavírus, entregou dois meses de salário para que pudesse ter três de férias. A Globo aceitou. "Não consegui aproveitar nada porque veio a pandemia e fechou tudo", conta.

"Mas eu queria me dar uma experiência diferente na vida. Como repórter, aproveitei minha vida ao máximo. Tive uma vida de repórter inusitada, e quem me disse isso foi um cara do NY Times. Fiz Copas do Mundo, guerras, Davos. Nenhum repórter faz tudo. Eu fiz. Adoro a reportagem. Se não for eleito -o que não é difícil- e tiver que voltar para o jornalismo, volto com prazer. E com muito mais sabedoria, porque só nesse período pré-campanha, já tenho aprendido um tanto."

Sair da Globo, Uchôa conta, significou abrir mão do que já era confortável. Na emissora, entretanto, ele acreditava que não conseguiria mais ter o que já teve: viagens, grandes projetos. A grana já não é a mesma -país em crise, mundo da comunicação vivendo mudanças bruscas. "Eu tenho a vontade de estar no mundo e a Globo queria me aproveitar no mundo. Mas estava cada vez mais difícil. Ao mesmo tempo, eu via que esse mundo já não era o mundo que eu gostava. O timing era bom para ambos".

"O brasileiro tem críticas à Globo -eu respeito, e até concordo com algumas -, mas a Globo é uma televisão aberta, que oferece coisas bem diferentes a um público bem diferente. Ela não pode focar em um nicho. Tem que ter uma amplitude que vai agradar uns e outros. Eu me lembro de um colega da Globo, nos anos 1980, que estava em uma festinha de esquerda e perguntaram o que ele fazia na emissora. Ele disse: 'Sucesso'. É uma resposta perfeita."

Um menino que lia esporte

uchoa - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Imagem: Arquivo Pessoal

O primeiro trabalho jornalístico de Marcos Uchôa foi na TV Manchete, em 1983. Ele conseguiu o emprego no esporte da emissora por meio de um concurso -de 60 vagas, duas eram destinadas à reportagem. "Não tive escolha. Entendia muito de esporte como qualquer menino daquela época. Hoje, isso mudou, tem muito mais meninas. Antes, era algo bem masculino. Comecei a ler jornal aos seis anos, meu pai assinava. Eu mal olhava a primeira página e já virava o jornal para a parte de esporte. Comecei assim".

Foi no esporte que Uchôa se desenvolveu e passou a maior parte da sua carreira. Enquanto morava na Europa, criou uma relação pessoal com Ronaldo, algo que foi além do trabalho jornalístico.

"Conheci o Fenômeno -que eu acho um fenômeno mesmo- aos 15 anos, na Granja Comary, enquanto estava na seleção sub-17. Ele já era muito bom. Entrevistei vários garotos ali, e aquela foi a primeira entrevista do Ronaldo para TV. Ele, como todos os outros, falava muito mal. Eram tímidos, toscos. Normal. Não é fácil falar para a TV, ainda mais naquela época", relembra.

"Dei uma palestra para eles, para ensinar a falar às câmeras. Um exemplo que dei foi o Romário, que já era um grande jogador. Isso foi em 1992. Eu disse: 'Ele sempre bateu de frente com a imprensa, que já foi sacana com ele. Mas o Romário é o Romário. Quantos de vocês vão ser o Romário?'. Falei muito mais coisa. Anos depois, o Ronaldo já estava no Barcelona, era o melhor do mundo e queria ir a uma corrida de Fórmula 1. Ele nunca tinha ido. Como eu cobria F-1, disse a ele que o levaria. Liguei para o Bernie Ecclestone, e é claro que ele disse sim. Todos queriam o Ronaldo naquela época. Foi uma loucura. Fiz uma dedicatória nas camisas para ele dar para o Schumacher, que adorava futebol, o Schumacher fez uma festa. Ele estava saindo do Barcelona e indo para a Inter de Milão, então tinha aquela coisa com os italianos. O Schumacher mostrou a Ferrari para ele. No dia seguinte, a capa era Ronaldo na F-1. A corrida estava pequenininha. Acabou tudo, a gente estava voltando, e o Ronaldo me disse, no carro, enquanto eu dirigia: 'Uchôa, hoje eu sou o Romário'".

Com Ronaldo, era uma relação de pai

A diferença de idade entre Uchôa e Ronaldo -18 anos- faz com que o jornalista se considere mais próximo de um pai do que de um irmão mais velho para o jogador.

Em cinco anos, Uchôa conta, Ronaldo aprendeu o que é ser uma figura pública e o que isso representa. "Em 2002, almocei com ele, Almodóvar e o golfista espanhol Sergio García. Queria ouvir o Almodóvar falar, mas ele estava babando no Ronaldo", relembra.

"Ele entendeu que um ídolo influencia outras pessoas. E soube bem o que fazer com essa influência. Lewis Hamilton faz isso muito bem hoje, mas poucos conseguem enxergar. Ronaldinho Gaúcho não conseguiu. Neymar não consegue".

"A Nike decidiu entrar no futebol na época do Ronaldo. Eu estava na cozinha da casa dele em Barcelona quando os caras da Nike chegaram lá para conversar sobre futebol. Ele foi até a cozinha, me chamou e disse: 'Me salva, os caras não sabem nada'. Daí fui até lá e expliquei o que era o futebol no mundo, no Brasil, o que representava. Eles só anotavam", relembra.

A aula foi tamanha, que a Nike convidou Uchôa para trabalhar na empresa e alavancar o projeto, que fazia parte de um mundo novo para eles.

"Mas eu não quis. Era mais divertido ser repórter. Assim como agora é mais divertido não ser."