De férias no hospício: como Cacá Rosset fez história no Debate Bola
"Eu me sentia quase que numas férias remuneradas". O corintiano Cacá Rosset, 68 anos, define assim o período em que contribuiu para tornar o horário de almoço dos fãs de futebol bem mais divertido. Cacá foi um dos personagens mais marcantes do Debate Bola, exibido na TV Record durante quase oito anos e, até hoje, um dos programas esportivos mais lembrados.
Sabe aquele programa fora da caixinha? Era assim. Grande parcela desse sucesso inegavelmente se deve a Cacá. "Eu ainda não o conhecia, e foi a melhor coisa do mundo. O Debate Bola é falado até hoje", diz Milton Neves, ex-apresentador do programa que ficou no ar de 2001 a 2008.
"Eu jamais me vi como um comentarista esportivo. Tinha mais a posição e a visão de um cara que gosta de futebol, mas até fazendo um contraponto entre os supostamente 'entendidos' de futebol", explica Cacá que levou para a TV seu humor ácido, inteligente e irônico.
Referência no teatro nacional, Cacá virou unanimidade nacional tirando uma risada sincera até daquele tiozão mais ranzinza sentado em frente à TV.
Do teatro para o almoço da sua casa
Cacá sempre teve o palco como atividade principal, seja como ator ou diretor. Formado em Direção Teatral pela Escola de Comunicação e Artes da USP, há quase 50 anos faz sucesso à frente do grupo Teatro do Ornitorrinco, fundado em 1977 juntamente com Luiz Roberto Galízia e Maria Alice Vergueiro.
A união do seu humor com o esporte surgiu quase por acaso, após algumas participações esporádicas em programas do gênero.
"Eu sempre gostei muito de futebol, gosto, sempre acompanhei, mas jamais me imaginei sendo comentarista. Um belo dia, me convidaram para participar do Super Técnico na Band, acho que em 2001, e ele [Milton Neves] começou a fazer um programa no horário do almoço, o Esporte Total Debate, e me chamaram para a estreia do programa como convidado. Gostaram da minha participação e perguntaram: 'você pode vir amanhã?'. Eu podia e, dez dias depois, me contrataram [risos]."
Milton Neves não conhecia Cacá, mas se apaixonou pela pessoa e pelo personagem convivendo com o ar teatral do humorista no Esporte Total Debate: "Foi a direção da Band na época que colocou o Cacá, que eu nunca tinha visto na minha vida. E quando fui para a Record, levei ele também".
Modéstia à parte, minha carreira foi um sucesso, Deus me ajudou muito, mas a coisa que mais me deu satisfação foi o Debate Bola. Aquilo não era trabalho... A gente ria o tempo todo!" (Milton Neves)
Bando de loucos
O Debate Bola surgiu justamente do Esporte Total Debate, que durou pouco mais de um ano antes de mudar de nome e migrar para a Record. A formação original, e mais lembrada, tinha Milton Neves, Cacá, Paulo Roberto Martins, o Morsa, Dr. Osmar e Oscar Roberto Godói.
"Eu vinha do teatro; o Morsa era um cara da Globo e que trabalhou na equipe do Osmar Santos [ex-narrador]; o Milton, que é uma lenda do rádio, e está aí há mais de 50 anos; o Godói, aquele cara mal-humorado, ex-árbitro; e o dr. Osmar, que era o único mais sensato. Era o único um pouco mais equilibrado do hospício [risos]!", diverte-se Cacá.
"Acho que o Milton conduzia muito bem isso. Acho que ele se descobriu como entertainer, animador. Ele tinha uma carreira muito bem-sucedida como comentarista e radialista, mas ele também descobriu um talento como apresentador, animador. Ele era o maestro que regia o hospício", complementa aos risos.
O Debate Bola estreou em 3 de dezembro de 2001 e durou até 2008, quando a Record perdeu os direitos de transmissão do Campeonato Brasileiro que sublicenciava da Globo e o futebol migrou para a Bandeirantes, junto com o "Terceiro Tempo", também comandado por Milton Neves.
Os ingredientes certos e a receita perfeita
Por que o Debate Bola deu tão certo? "Acho que trouxe um frescor para os programas esportivos no seguinte sentido: você tem um formato que vem desde as origens, da mesa redonda, e, de certa maneira se perpetua há mais de 50 anos, desde o início da televisão e antes no rádio. Por outro lado, você tem também, já há bastante tempo, a vertente do humor. Entretanto, o humor, na maior parte dos programas esportivos, acontecia com uma divisão".
Com o Debate Bola, a história mudou. "Virou quase uma sitcom [uma comédia de situação composta por personagens comuns, com histórias comuns], porque era um programa que não tinha essa transição entre o humor e a parte séria, de informação... e a parte teatral que tinha era muito misturada. Isso trouxe um frescor e um interesse e pegou um público muito jovem", analisa Cacá. Era como se os cinco amigos da série Friends falassem sobre futebol.
"O Debate Bola conseguiu um equilíbrio muito interessante entre a parte informativa e a diversão. A gente fazia o velório, o 'apitão', matérias fora da redação, na concentração, nas ruas, trazia personagens, criava situações, game show, quiz... Tinha esse equilíbrio interessante de pessoas totalmente diferentes," resume.
Mas o sucesso não veio logo de cara. Ainda na Bandeirantes com o nome Esporte Total Debate, o programa passou por uma transformação crucial depois de uma observação certeira de um dos filhos de Milton Neves.
"Quando comecei a fazer esse programa na hora do almoço, eu dava muito cacetada na [Rádio] Jovem Pan, só porrada... Fizemos uma semana e meu filho Rafael disse: 'Pai, você tá muito chato. Você tem que entender que na hora do almoço é diferente do domingo à noite. Ou é menino que tá chegando da escola, almoçando, ou que tá almoçando pra ir à escola, e você fica 'cagando regra'? Aí comecei a brincar", relembra o apresentador.
Cacá causando
Os choros frequentes —graças ao uso de cristal japonês—, após derrotas do Corinthians foram uma marca de Cacá, assim como o uso de fantasias.
"A coisa mais antológica que ele fez: na época que o Corinthians tinha aquele Kia [Joorabchian], uma empresa comprou um terreno na Raposo Tavares para fazer o campo do Corinthians, e aquilo ficou só no papel. O Cacá foi lá no pasto e colocou aqueles recados de interior: 'aqui é o futuro estádio do Corinthians'. E a gente colocava isso todo dia no Debate Bola. Coisa do Cacá Rosset. Gênio. E poliglota. Grande ator, grande corintiano e grande amigo." (Milton Neves).
Outro episódio marcante envolveu Marcos Marinho, coronel então responsável pelo policiamento dos estádios. Convidado do programa, ele apareceu com outros três policiais que, no fim, receberam um desafio: "Pedi que levassem o Morsa e o Cacá Rosset à delegacia. Ele fez igual bandido no Datena, tampou a cabeça com a jaqueta. Nunca ri tanto", relembra Milton.
Quem viu não esquece
A molecada foi a primeira a entender a sacada do programa... Depois vieram os pais e então, Cacá e aquele bando de loucos pegaram todo mundo de jeito.
"Vira e mexe as pessoas falam do programa: 'Eu era moleque e saía da escola correndo pra ver o programa'. Quando eu estava fazendo [o Debate Bola], tinha muita gente que nunca tinha me visto no teatro", conta Cacá.
Milton Neves entende isso bem. "Sabe o que me emociona? No avião, hotel, restaurante... Sempre tem uns 15, 20 que falam assim: 'Pô, minha infância foi o Debate Bola. Eu matava a última aula pra pegar o começo do programa'".
"Eu me consagrei, permita-me, com o Terceiro Tempo, mas o que mais gostei de fazer foi o Debate Bola". (Milton Neves)
E hoje?
Cacá não se anima muito com os programas esportivos atuais. "Vejo um certo marasmo. Não tem fórmula para o humor, mas a regra de ouro é: funciona ou não. Você pode fazer de mil maneiras, mas acho que essa tentativa de fazer gracinha acaba sendo constrangedor. Por outro lado, você tem programas que são muito chatos, que ficam só em estatística... Eu acho chato porque futebol não é ciência. Não que isso não tenha valor, não estou menosprezando. Tem pessoas que estudam, que conhecem muito, mas, eu, pessoalmente, como espectador, acho uma chatice. Não quero ver".
Um novo Debate Bola então? Não exatamente. "O mundo é diferente, passaram 20 anos. Teria que ser diferente, mas com esse espírito. Os programas esportivos vivem uma preguiça. É a mesma fórmula de sempre... Ou é aquela gracinha forçada ou aquela polêmica forçada...".
Não acho que falte material humano. Você tem bons comentaristas, bons polemistas, caras que manjam de estratégia, você tem bons humoristas, mas você não tem liga. Tem que ter essa coisa invisível que o Debate Bola tinha. Hoje, nas redes sociais, você tem muitas coisas divertidas, muito boas, fantásticas... Tem coisas excepcionais, então acho que você tem todos os ingredientes, estão todos ali. Falta a receita ideal, dar essa liga. (Cacá Rosset)
"O jogo que mais marcou a minha vida"
Era no papel de torcedor do Timão que Cacá encarnava o seu personagem. A paixão pelo Alvinegro veio de um tio, corintiano fanático. Nem a adolescência passada na "fila" abalou esse amor. "A maioria dos meus colegas era de santistas. Anos 60, Santos de Dorval, Mengálvio, Coutinho, Pelé e Pepe. Só isso. E o Corinthians estava na fila, ficou 23 anos... Eu só vi o Corinthians ser campeão adulto, em 77, era quase um senhor de idade", brinca.
Não por acaso, o jogo que mais marcou sua vida não é o da quebra do tabu de 1977, mas aquele histórico contra o Santos em 1968. "Eu estava lá. O Corinthians não ganhava do Santos. O Pelé podia tá numa fase ruim, mas, contra o Corinthians, ele virava o cão. Ele tinha um prazer... Eu até brincava com amigos santistas: 'hoje o Clóvis [ex-zagueiro] vai anular o Pelé, não vai passar nada'. E o Pelé massacrando. Mas, nesse dia, foi uma loucura. Meus amigos santistas tiveram que aguentar. E no final da partida, o estádio inteiro gritava: '1, 2, 3, o Santos é freguês'. Sensacional! Foi a minha grande emoção. Claro, 77 também, mas esse jogo, nossa... Me lembro vivamente, mais que final de Copa do Mundo. Esse jogo é a história da minha vida. De memória afetiva, é o mais marcante".
Tem Cacá na ativa
Cacá nunca deixou o teatro, até mesmo nos quase sete anos em que esteve nas telinhas. Desde 2019, está à frente da peça "Frida Kahlo - Viva la Vida", escrita em 1998 pelo mexicano Humberto Roles. Traduzido e dirigido por ele, o espetáculo estará em cartaz no SESI Curitiba, dias 22 e 23 de julho, às 20h (de Brasília). Em agosto e setembro, está previsto o retorno à capital paulista.
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