Oito Copas, 21 livros: Lancellotti respirava comida, cultura e futebol
Um multi-tudo. É assim que amigos descrevem o jornalista Silvio Lancellotti, se é que dá para usar a palavra jornalista como sua principal definição. Silvio morreu nesta terça-feira (13), aos 78 anos, por insuficiência cardíaca. O velório será realizado na quinta-feira (15), das 11h às 15h, na rua São Carlos do Pinhal, 376, em São Paulo. Aos que ficam, deixa seu acervo de histórias, todas arredondadas e coloridas por ele.
Lancellotti se formou em arquitetura, mas viveu o jornalismo por mais de 50 anos. Escreveu com maestria sua história na imprensa brasileira. Apaixonado por futebol, passou seus últimos dias comentando o campeonato italiano, de onde vem o sobrenome Lancellotti e a paixão pela Juventus — seu time do coração, junto com o Corinthians.
Um homem gentil. Sua importância para o jornalismo esportivo não o fazia perder a disposição para elogiar jovens colegas. Silvio dava seu jeito de encontrar o telefone dos repórteres autores de reportagens ou livros dos quais gostava. E não se importava em rasgar elogios, mesmo aos que haviam acabado de chegar na profissão.
José Trajano afirma que Lancellotti deixou inúmeras marcas — uma delas foi sua voz, contrastada com a de Luciano do Valle e Silvio Luiz, na TV Bandeirantes. "Era uma marca ouvi-lo. Ouvir seu jeito, ouvir o que tinha para dizer com todo seu conhecimento", diz. Depois das relevantes passagens por IstoÉ, Veja e Vogue, Silvio escrevia, desde 2012, uma coluna no Portal R7 —e sem deixar a crítica à música de lado. "Ele ficou até amigo do Pavarotti", conta Trajano.
Silvio Luiz, xará com quem Lancellotti trabalhou durante as transmissões do Italiano, é prova viva: o narrador conta que o amigo tinha "uma excelente coleção de discos, principalmente de bossa nova". Um deles, o de Clara Nunes, Lancellotti emprestou para o narrador, que nunca devolveu. "Ele me cobrava sempre".
O contemporâneo Jota Júnior considera Lancellotti um professor. Era ele quem dava todas as coordenadas aos colegas da Band sobre futebol italiano. Era ele, ainda, que manjava de todas as regras de futebol americano, e precisou ensinar para a turma como funcionava o esporte quando a Band resolveu transmiti-lo.
O coração de Lancellotti era tão eclético e tão intenso que, talvez, tenha se sobrecarregado. Nele, cabiam Copas do Mundo — ele foi comentarista em oito delas —, músicas de todos os tipos, arte, futebol internacional e gastronomia. Esta última, há quem diga que era a sua preferida. Foram 12 livros dedicados à culinária.
"Ele cozinhava maravilhosamente bem; era o homem da gastronomia, um grande chef de cozinha. O Silvio era um apaixonado pela vida", afirma Trajano.
Contador de histórias
Silvio Lancellotti era um contador de histórias. Mas não apenas as relatava: as coloria, as desenhava, como bem descreve Trajano e confirma Juca Kfouri. "Amigos contam que ele exagerava um pouco nas coisas", ri Trajano. Mas ninguém se importava. As histórias de Lancellotti, com licença poética ou não, eram sempre bem-vindas aos ouvidos de quem ele escolhia para ouvir. Uma delas — que ninguém sabe se é verdade, mas não importa, porque no coração dos amigos, é — é o primeiro gol do Mineirão. Lancellotti diz ter sido ele quem marcou.
Antes da partida inaugural do estádio, houve um jogo teste de estudantes universitários. Dizia Silvio que ele estava nessa partida, e que teria feito um gol de falta, o primeiro a balançar as redes do Mineirão. "Sempre que o estádio fazia aniversário, a gente celebrava com o Silvio", diz Trajano.
Um democrata poético
A escrita sempre fez parte do dia a dia de Lancellotti. Até para mandar uma mensagem informal a um amigo, ele se apoiava na poesia e nas palavras bonitas. Era um escritor full-time. Sobre esporte, foram cinco livros, além de quatro romances.
Silvio fazia parte de um grupo de WhatsApp chamado "Esporte pela Democracia", do qual também participa o jornalista Juca Kfouri. Juca afirma que o colega se impunha com frequência, sempre com comentários pertinentes. Com ele, resgata uma história:
"Uma vez, fui entrevistar o ministro do Esporte e decidi chegar de paletó e gravata. O Silvio, quando viu aquilo, me elogiou. Disse que fiz muito bem de ter escolhido esse traje, assim manteria uma distância", ri. "Convivi pouco com ele, mas o suficiente para saber que é um cara que faz parte da história do jornalismo esportivo brasileiro".
Foi a paixão pela mesma democracia que fez com que Silvio contatasse o padre Júlio Lancellotti com o intuito de decifrar a intersecção de seus sobrenomes — iguais, com os mesmos duplos éles e tês. Encontraram: talvez tenha sido um irmão do avô do padre Júlio que se desgarrou da família, lá na Itália, e veio a formar a família de Silvio.
Os dois mantiveram contato. Ao UOL, o padre diz que o primo distante o escrevia com frequência — sempre em italiano. "Era uma pessoa de espírito leve, com humor próprio e inusitado. Sempre alegre. Quando saía notícias sobre mim, ele me escrevia comentando. Muitas vezes, se limitava a dizer 'bravo, bravíssimo!'. Ele me incentivava muito, me acolhia muito".
Amizade de gerações
Neto do major Sylvio de Magalhães Padilha, que foi presidente do COB, o advogado Alberto Murray relembra, com a voz embargada, a amizade com Silvio que cruza gerações. O pai de Lancellotti era atleta, e foi do avô de Murray que ganhou sua primeira sapatilha com pregos de atletismo. Não foi essa a única relação do jornalista-arquiteto com os esportes olímpicos: Lancellotti escreveu o livro Olimpíadas - 100 anos, depois de uma vasta experiência em coberturas olímpicas.
A relação dos dois se estreitou de tal forma, há uns 15 anos, Silvio e Alberto conversavam todos os dias. Na infância, os filhos do jornalista e o advogado estudaram no mesmo colégio, o Santo Américo — onde, em datas comemorativas, Lancellotti fazia questão de ser o cozinheiro da escola. "Ele cozinhava para um batalhão, para alunos, mães, pais. Era demais", relembra Murray.
A relação se tornou paternal, talvez tutoral, já que Lancellotti palpitava e corrigia os textos do amigo. As trocas eram diárias. Ao publicar sua última série, a que conta as histórias de todas as Copas do Mundo que viu, Lancellotti ouviu de Murray que ele deveria começar a pensar em registrar suas memórias. "O Silvio respondeu: 'Mas essas são minhas memórias'", conta o advogado ao UOL.
Entre as tantas histórias, destaca-se o furo de reportagem da Copa da Itália, onde Lancellotti se sentou, na cadeira do avião, bem na frente de Ricardo Teixeira. O jornalista ouviu — e gravou — o então presidente da CBF desabafando sobre o arrependimento ao escolher Sebastião Lazaroni como técnico para aquele ano. Lancellotti foi processado. Ganhou.
O jantar que não aconteceu
Murray havia combinado um jantar com o amigo no dia em que ele foi internado, há duas semanas. Silvio pediu que o encontro fosse adiado. "Ele não disse o que era, falou que faria alguns exames. No hospital, quando eu ligava, ele dizia que estava com a hemoglobina bastante baixa, mas que nos encontraríamos quando ele voltasse para casa".
"Perguntei: 'Silvio, mas você está bem?'
Ele respondeu: 'Nem comecei a lutar ainda'."
Não houve despedida. Lancellotti deixou ao amigo um livro autografado, com lembranças à esposa de Alberto e aos filhos, dos quais se lembrava sempre. O jantar não aconteceu, o reencontro não aconteceu. As memórias, essas, sim, Alberto garante: existirão para sempre, nas lembranças de quem teve a honra de viver.
Como sabiamente diz o jornalista Gilson Ribeiro: "Silvio não ri. Ele abraça."
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