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Milly Lacombe sofreu ataques e ameaças após erro com Ceni: "Geladeira doeu"

Do UOL, em São Paulo

17/10/2022 04h00

Deglutir a vergonha mais parecia um ruminar bovino, naquele lenga-lenga infinito, indigesto. Milly Lacombe, então comentarista do SporTV, mastigava, mas não engolia o vacilo que, talvez, pudesse ter colocado uma pedra bem bruta em cima de uma carreira que só ascendia. As perguntas eram muitas, quase embaralhadas, e martelavam a cabeça minuto após minuto a cada dia que ela passava em casa, longe da televisão.

Seria aquele um erro tão crasso a ponto de não haver qualquer chance de redenção? Seria o fim, mesmo? Tipo. Acabou? O ócio ansioso era, com certa frequência, interrompido por alguma ligação bastante mal educada: gritos, xingamentos, revolta por parte de torcedores do São Paulo que ficaram pessoalmente ofendidos com o que a jornalista havia dito ao vivo sobre o ídolo Rogério Ceni em uma edição do Arena SporTV, em 2006. Quando não ligavam, mandavam e-mails ameaçadores e, além da vergonha, Milly precisou dividir seus dias de solidão com o medo.

Ela morava em Perdizes, na zona oeste de São Paulo, num apartamento pequeno concedido pela tia de sua então esposa, Tatiana. Os dois quartos apertadinhos ficavam em um pequeno corredor que a fazia, em pouquíssimos passos, chegar até a sala, conjugada com a cozinha. Em dois minutos de caminhar lento, Milly percorria todo o apartamento, e as pensatas martelantes na cabeça não cessavam. Era um isolamento que antecedia qualquer notícia sobre coronavírus, um isolamento também emocional, de quem precisava sozinha carregar um peso que era dela, mas recaía sobre as costas de todas as mulheres boleiras do mundo: o peso de errar sendo uma mulher lésbica que fala de futebol.

Tatiana percebia a aflição da esposa. Milly, canceriana com ascendente em touro, não costuma recusar comida -e foi na astrologia que Tatiana se agarrou para tentar trazer de volta o carisma da amada. A cada sábado, Milly acordava com uma mesa de café da manhã posta para quinze pessoas. Apenas Tatiana e ela comeriam. A esposa comprava de tudo: pães, frios, sucos, geleias, só não conseguia comprar um sorrisinho sincero de Milly, que parecia, realmente, ter desabado.

Milly Lacombe enfrentava a geladeira da TV Globo depois de ter dito, ao vivo, que Rogério Ceni havia falsificado um documento enquanto goleiro do São Paulo. O jogador ligou para o programa no mesmo momento e rebateu a jornalista. A discussão terminou na Justiça: Rogério processou Milly, ganhou a causa e, 11 anos depois, a jornalista -que hoje é colunista do UOL Esporte- ainda é lembrada por esse episódio.

"Todos os meus sobrinhos são são-paulinos. O sobrinho a quem eu era mais ligada, o Paulo, tinha dez, 11 anos. O Rogério Ceni era o ídolo maior da vida dele; eu era a segunda mãe dele, levava no estádio, ensinava a jogar. Dois ídolos entraram em rota de colisão, e a cabeça dele deu uma pirada. Eu lembro que sentia muita vergonha. Errar é muito ruim, errar sozinha é ruim, mas no erro público, a vergonha vai escalonando."

Às vezes, quando Milly é parada na rua e questionada se é ela a jornalista que falou bobagem sobre Rogério, ela nega. Em outras, assume que é. Os encontros ao vivo geralmente acabam em conciliação. Mas, por muito tempo, ela não quis pagar pra ver. Um dia, enquanto curiava as araras de uma loja, foi perguntada se era aquela política Soninha Francine. Milly disse que sim. Soninha era querida na época. Milly, não.

O passar dos anos continuou pouco gentil com Milly Lacombe. Não que, antes disso, tenha sido muito diferente. Ela foi abusada sexualmente pela primeira vez aos 11 anos; a segunda, aos 22. Como uma lua, bela apesar das crateras, Milly segue firme pelas pelejas da vida. Seus textos críticos, de tom politizado, fogem do dia a dia do futebol ao qual leitores de esporte estão acostumados. Os xingamentos, as ofensas e ameaças se tornaram adjacentes ao seu jornalismo. Ela se blinda: se recusa a ler o que dizem, mesmo que a decisão a faça perder centenas de elogios. O motivo dos haters deixou de ser o erro, uma aspa mal colocada; deixou de ser a discordância, para ser o timbre; a voz. O poder falar.

"Dizem que mulher fala muito. Minha mãe falou isso para mim hoje. O que estão querendo dizer? Não é que mulher fala muito em relação a homem, é que mulher fala muito em relação ao silenciamento de séculos. Realmente, a gente está falando muito. Incomoda mesmo."

Falar pouco, falar baixo, não falar. Não, isso nunca combinou muito com o jeito desbocado de Maria Emília. Primogênita entre quatro irmãos, ela foi batizada com o mesmo nome da tia de seu pai, morta pouco antes de seu nascimento. O pai queria uma menina, e ganhou logo uma que veio com a cara dele -de brinde, veio junto nela a loucura pelo futebol.

Milly jogava bola com os meninos. Enquanto os seios não surgiam, não se opunha em se dividir vezes entre os times com camisa, vezes entre os despidos. Na área comum do prédio em que morava, no Rio de Janeiro, era "um molequinho de kichute e uma bola de futebol debaixo do braço". O pai incentivava. Fanático pelo Fluminense, passou a paixão para a filha, e se esmerava quando os amigos chegavam em casa e Milly desembestava a falar nome por nome, número por número, da escalação tricolor para a partida que viria.

"Agora os reservas". Lá ia ela. Não errava um. Ainda hoje, sempre que o Fluminense entra em campo, Milly sente a mão de seu pai agarrando firmemente sua mão de garotinha, subindo as escadas do Maracanã. Quando o Corinthians surge no estádio, no entanto, vem à tona outro grande amor, Roberta, uma corintiana roxa que roubou seu coração e apresentou a Milly o que é a paixão pelo Corinthians. Roberta morreu atropelada em 2011, um mês antes de o alvinegro ser campeão brasileiro. Milly Lacombe não tem problema algum em dizer que seu coração é vira-casaca: metade Flu, metade Timão.

Milly, por muito tempo, acreditou ter herdado -além dos olhos azuis, da profissão e do sorriso que entorta um pouquinho pra direita quando ri- o humor do pai. Quando menina, escreveu sobre ele uma belíssima redação na escola, cujo tema era "alguém que você admira". O pai foi a primeira pessoa sobre quem Milly escreveu. O texto ganhou prêmio, e papai andava com ele no bolso do paletó. Sempre que podia, esfregava a narrativa da filha na cara de mamãe. Foi um trauma para ela.

No dia em que o pai morreu, ele estava carregando o texto consigo. Milly tinha 30 e poucos anos. A dor imensa preencheu o peito da filha que, até hoje, vinte e poucos anos depois, sente os olhos marejarem quando lembra dele. Mas foi na ausência do pai que Milly pôde descobrir a mãe. Ela estava ali, e existia algo perdido que precisava, com urgência, ser resgatado entre elas. Não foi fácil, nem rápido.

A mãe rejeitou a filha Milly por cinco anos quando ela se assumiu lésbica. Foram 1.825 dias sem um telefonema, uma visita, um encontro qualquer. Existia uma mágoa muito grande que permeava essa relação, que impedia mãe e filha de se descobrirem, de se conhecerem de fato. Por sorte, a única doença relacionada à homossexualidade, que é a homofobia, tem cura. A mãe de Milly foi curada.

Dia desses, Milly fazia uma visita -das frequentes que faz à mãe, que mora em São Paulo enquanto a filha vive no interior-, quando teve a chance de finalmente mergulhar na mulher que a criou. Mamãe saiu do quarto com quatro cadernos escritos à mão por ela. "Enquanto vocês cresciam, eu escrevia". Milly se debruçou sobre os dizeres melancólicos da mãe, que descreviam uma vida solitária e dolorosa, que relatava comportamentos machistas de seu pai, o cara mais especial das galáxias. Como podia?

Talvez Milly não fosse tão parecida com o pai como imaginou. Sua mãe escreve lindamente. Aquela porção de dizeres era literatura pura vinda de quem nunca teve a chance de estudar. Ela foi uma escritora abortada. Talvez Milly seja a cara do pai, mas todo o resto tenha vindo da mãe. Ela começou a observar a mãe que, aos 85 anos, tem exibido um humor cada vez mais ácido e inteligente; menos britânico e envernizado, mais raiz. Milly demorou décadas para conhecê-la. Ela também demorou um bocado para reconhecer sua filha Milly. Que bom que houve tempo.

Milly Lacombe é colunista do UOL Esporte. Depois do episódio com Rogério Ceni, em 2006, deixou a Globo e começou o trabalho de cobertura da Liga dos Campeões da Europa pela Record TV, onde ficou até 2009. Com sete livros publicados e oito cachorros sob sua tutela, é casada com a flamenguista Paola —em um relacionamento não-monogâmico— e se considera "entregue à procrastinação".