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Surfistas de ondas grandes encaram a morte e se arriscam no mar por colegas

Brasileiro Rodrigo Koxa desce onda em Nazaré que lhe rendeu prêmio pela maior onda já surfada na história - Reprodução/Twitter WSL/Pedro Cruz
Brasileiro Rodrigo Koxa desce onda em Nazaré que lhe rendeu prêmio pela maior onda já surfada na história Imagem: Reprodução/Twitter WSL/Pedro Cruz

Do UOL, em São Paulo

19/01/2023 04h00

Você arriscaria sua vida por um desconhecido? Por um colega de trabalho? No surfe, os atletas não têm essa dúvida quando se deparam com alguém em apuros no meio do mar.

"Se não o único, o surfe é um dos únicos esportes em que você pode morrer tentando salvar a vida de outro parceiro". Essa frase é de Rodrigo Koxa, o brasileiro que surfou uma das maiores ondas gigantes da história de Nazaré e cravou seu nome no livro dos recordes em 2017. Em um esporte onde o risco à vida é iminente, a rede de apoio e os valores dos surfistas são essenciais.

Na imensidão do mar, o surfista de ondas gigantes é uma figura solitária, que espera pelo momento perfeito. É ele, também, quem desenvolve os equipamentos de segurança, frequentemente precisa se salvar, acionando colete salva-vidas inflável. Também leva caldos e, quando não está surfando, conduz um jet-ski para levar um parceiro até uma onda certeira. Além de todas estas atribuições, há uma bastante perigosa: a de salva vidas. dos colegas.

O acúmulo de funções do surfista impulsiona o sentimento de cumplicidade entre os atletas. Todos se unem e se tornam equipes naquela solidão. É a ideologia do surfe, de respeito pela natureza e pela vida, somada à preocupação com os riscos.

Se eu estou perto, eu paro tudo o que estou fazendo para começar a entrar em atividade para somar o resgate do outro, pode ser a maior onda do dia, a gente vai parar. Essa empatia é muito importante. É o único esporte do mundo no qual o surfista pega onda, mas o cara que colocou ele na onda se arrisca tanto quanto. Você se coloca em uma situação de risco para salvar um parceiro. É um esporte de muita empatia. A cultura só se consolida cada vez mais conforme vemos os limites sendo quebrados"
disse Rodrigo Koxa.

Ondas gigantes 1 -  -

"É comum ter a dupla que reveza: puxa e surfa. Pela empatia e pelo entendimento. O cara que puxa bem, ele surfa bem, porque ele entende melhor a leitura da onda, do mar. Fora o custo e benefício: é um esporte caro, ninguém vai querer gastar um dinheiro para não surfar. E, para surfar uma onda gigante, você precisa de amor", acrescentou.

Teste de segurança é "na raça" mesmo

Atualmente, o surfista de ondas gigantes conta com vários aparatos de segurança. Mas nem sempre foi assim. Ao se depararem com acidentes graves e situações de quase morte, os próprios atletas sentiram a necessidade criar protocolos para preservar a vida.

Aconteceram algumas fatalidades, e a gente entendeu que além da preparação física e mental que o surfista faz, a gente poderia adicionar técnicas e tecnologias para que o nosso esporte fosse mais seguro"
explicou Carlos Burle, campeão Mundial em ondas gigantes.

Os testes sempre são feitos pelos próprios atletas em ação. Não há simulações. Antes de usar rádios e coletes com balões de CO2, os surfistas vestiam um colete salva-vidas de espuma, como o que conhecemos, e entravam na onda só remando com as próprias mãos.

No início de janeiro, o brasileiro Márcio Freire morreu enquanto surfava em Nazaré. Ele não estava utilizando o colete inflável. Lucas Chumbo foi o responsável pelo resgate e primeiros-socorros.

Os surfistas começaram a encarar as ondas gigantes em 1980 na cara e coragem. Após 10 anos, eles acrescentaram o jet-ski, que serve para posicionar o atleta na onda e resgatá-lo no fim, o que é chamado de tow-in. O piloto da moto aquática também é, sempre, surfista.

Nazaré mudou o esporte

Nos início dos anos 2000, a pequena vila de Nazaré, em Portugal, começou a ficar popular entre os surfistas com seu paredão de ondas gigantes único e extremamente perigoso. Foi a partir de então que os atletas adicionaram o colete inflável e o uso de rádios comunicadores.

Através das nossas próprias experiências do que deu certo ou que deu errado, a gente evolui e traça um protocolo e estratégias dentro do mar"
Rodrigo Koxa.

Ondas gigantes 2 -  -

"Num dia gigante, por exemplo, tem eu, o piloto e juntamos outras equipes para fazer uma só. É uma questão de prudência. Acaba que a gente une os times para sempre ter alguém como outra opção no resgate. Todo mundo fica com rádios no ombro ouvindo tudo. A gente tem também uma pessoa que fica observando do farol, com uma visão privilegiada, que monitora toda a sessão: dá suporte e fica de olho em possíveis acidentes para acionar os pilotos de jet-ski. É a Fórmula 1 do surfe", completou.

Segundo Carlos Burle, os surfistas também investem no conhecimento sobre o resgate de uma vida: aprenderam apneia, pilotagem de jet-ski: "Os primeiros a chegarem nas vítimas somos nós surfistas, porque estamos dentro da área de impacto. Nos últimos anos, esses surfistas estão se capacitando, passando por cursos de primeiros-socorros e massagens cardiovasculares. Tudo já para prestar o atendimento até que os paramédicos cheguem".

Família e o coração na mão

Yamê Reis é mãe de Maya Gabeira, a surfista brasileira que já quebrou duas vezes o recorde de maior onda gigante surfada por uma mulher. A atleta também já viveu uma situação de quase morte em Nazaré, quando foi "soterrada" por um paredão de 20 metros. Carlos Burle fez o resgate.

O coração da mãe ficou apertado, desesperado. A filha de Yamê teve uma perna quebrada e quase morreu afogada. A seguir, a estilista conta como vive os familiares dos atletas que praticam um esporte tão arriscado.

Do mesmo jeito que ela treina, a família vai sendo treinada para suportar os riscos, as dores, ansiedade, expectativa ao longo do tempo. Não é algo que acontece do minuto pro outro. A gente vai acompanhando e entendendo o esporte aos poucos. Para isso, a gente conta com a ajuda da filha. Sempre foi e é até hoje, mesmo 20 anos depois de ela ter começado a surfar, a causa de grande apreensão. Não só quando o mar está grande, mas nos dias de treino também. A gente sabe que é muito difícil, porque a qualquer momento tem risco. É um risco diário que a gente vive e a família precisa de um treinamento.

A Maya tinha 18 anos quando decidiu surfar as ondas gigantes. Ela foi no Havaí e descobriu que tinha fascínio por aquilo e era isso que ela queria fazer. Aquele foi o momento mais difícil pra mim. Era o surfe de remada, ela estava sozinha, o Havai é muito longe. A gente lutava muito ainda com essa decisão dela. Achava que ela poderia trilhar um outro caminho e que ela desistiria em algum momento. Quando vi que a decisão não tinha mais volta, embarquei junto com ela e tentei ajudar no que poderia para que isso tornasse algo menos doloroso possível. A família se organizou para dar apoio e tornar o sonho possível.

Antes de Nazaré, já tinha tido outros acidentes graves, sempre longe de casa, no Tahiti, Califórnia? Sempre foi muito difícil. A gente nunca pediu para ela parar, porque nunca foi uma opção, e também não adiantaria em nada, isso já era um caminho definido por ela. A decisão de parar tem que ser do atleta. Ela sofreu muito por essa decisão de não parar, porque ela teve traumas na coluna que se acentuaram. Eu realmente sempre acreditei nela. Se ela dizia que ainda não era a hora de parar, a gente estava junto com ela".
Yamê Reis.