É esporte? eSports têm preparação e atraem profissionais até do futebol
Ainda era possível ver o esqueleto do que um dia foi o Estádio Aquático da Olimpíada do Rio quando treinador de natação Arilson Silva voltou a participar de uma competição no Parque Olímpico da Barra, no ano passado. Agora os ares eram outros. Se outrora trabalhava com um estrangeiro, o ucraniano Govorov, agora ele estava ao lado da torcida da casa, com a equipe brasileira. O cenário, entretanto, era outro, e sem piscina: o profissional, que já esteve em três olimpíadas, hoje é "mentor de performance" de um time de CS:GO, jogo de computador onde o objetivo é matar (virtualmente) todos os adversários.
Só que Ari, como é conhecido, não sabe dar um tiro, mesmo virtual. Pior: não tem coordenação para manejar mouse e computador para fazer o básico do jogo, que é andar. Seu conhecimento sobre os mapas é nulo. O que o levou a ser contratado pela Furia, uma organização brasileira, é sua capacidade de fazer atletas entregarem performance esportiva a partir de uma comissão multidisciplinar. O que serve para os esportes tradicionais serve também para os eletrônicos.
Enquanto o Congresso não dá uma resposta legal à polêmica pergunta se "eSports é esporte ou não é?", o chamado "esporte eletrônico" bebe cada vez mais do conhecimento secular dos esportes tradicionais. Primeiro foram os psicólogos esportivos, que levaram anos de repertório dos campos e quadras para as game houses. Nos últimos anos, médicos, nutricionistas, preparadores físicos, fisioterapeutas e gestores começaram a fazer o mesmo caminho, atrás de um mercado que, depois de mover rios de dinheiro como entretenimento, está cada vez mais interessado em aprender a entregar performance esportiva.
Físico x mental, mas não um ou outro
Ana Moser, a nova ministra do Esporte, defende a definição de esporte como "predominantemente físico", o que excluiria os eSports. Como o xadrez, são predominantemente mentais. Não que não se use a mente para jogar futebol, ou que um gamer profissional não precise cuidar do corpo. A diferença está no que predomina.
Isso fica claro na montagem das equipes multidisciplinares por parte das organizações (como são chamadas as "equipes") dos eSports mais conhecidos. No esporte tradicional, o primeiro passo para a montagem de um staff, depois da área técnica (treinador e assistente), é ter um preparador físico. Vale para uma escolinha de canoagem, uma academia de boxe ou uma equipe universitária de handebol. Nos eSports, esse papel é do psicólogo.
"O pro-player (jogador profissional) tem que ter o controle e o reflexo tanto da mão esquerda no teclado quanto da mão direita no mouse. Precisa ter a percepção de um mapa (cenário) tanto a partir do micromapa quanto da interpretação do que pode acontecer em tempo real", explica Luciana Nunes, psicóloga que trabalha com eSports desde 2016.
Com fortes raízes no esporte tradicional — é filha de Coaracy Nunes, ex-dirigente da natação, e mãe de Luísa Nunes, atleta olímpica de nado artístico —, Luciana começou a migração quando foi contratada por um jogador que tinha vergonha de jogar para grandes públicos. "Achei estranho, porque o que jogador gosta é de Fla x Flu em Maracanã lotado", conta. Só entendeu o que estava acontecendo quando soube que se tratava, na verdade, de jogador de futebol eletrônico, que competiria pela primeira vez em uma arena lotada.
Da mesma forma que, no esporte tradicional, a preparação física de um ginasta é diferente da de um halterofilista, dentro dos eSports o treinamento mental também varia de jogo para jogo. "Em essência, é psicologia do esporte, mas como aplicar de forma tão refinada, para alcançar vitórias, vai depender das habilidades de cada modalidade. É preciso criar um protocolo para usar a neurociência em cada jogo", explica Luciana, que hoje só atende pro-players.
Vencedora no esporte tradicional acoplada aos e-sports
Alessandra Dutra é uma das responsáveis pela expressiva redução no preconceito contra a psicologia esportiva dentro do esporte olímpico brasileiro. Foi, em Londres-2012, a primeira psicóloga a ser alojada na Vila Olímpica, onde ficam os atletas e o núcleo duro da equipe multidisciplinar do Time Brasil. Um ano depois, teve papel importante e reconhecido no surpreendente título mundial da seleção de handebol feminino.
Sua agenda começou a ser dividida com os esportes eletrônicos em 2017. "Recebi uma mensagem no Facebook de uma pessoa que eu não conhecia, que assessorava uma organização de eSports, a Red Canids e queria eu ingressasse na equipe. Quando fui ver, me surpreendi com o tamanho que isso era. Eu disse que não entendia nada de LOL [League of Legends] e eles: ' A gente te ensina'. Eu não saberia fazer um programa de preparação mental sem entender a lógica da modalidade. A gente foi campeão e virou um boom".
Em cinco anos, depois de trabalhar com pro-players de diversos jogos, virou uma das profissionais mais conhecidas do marcado brasileiro de eSports. "No esporte olímpico você tem uma quantidade de campeonatos muito menor do que os eSports. Então, no eletrônico, você é mais imediatista, não fica se preparando para daqui a 4 anos ter aquele evento. Você 'morre' e daqui a pouco você vive de novo."
Ela também aponta uma semelhança importante: saúde mental. "Eles se estressam tanto quanto, se deprimem tanto quanto. Mas frustração é muito mais doída no e-sports, porque está não na expectativa se você vai vencer ou não, está no próprio jogo, dentro do jogo. Isso causa neles uma sensibilidade maior à frustração. Nos jogos tradicionais tem o tempo do luto muito maior para dar conta daquela frustração que te deixa mais resiliente para a próxima fase."
Investimento na equipe técnica
Disponível no Amazon Prime, o documentário "Mind Games, o Experimento", se dedica a testar se o aumento da atividade física de atletas de "esportes da mente", como os eSports, proporciona uma melhora do desempenho esportivo, a partir de aumento da função cognitiva, da habilidade de resolver problemas, da memória de curto prazo, da confiança e do poder de concentração.
Ricardo Eid, que já trabalhou nas seleções nacionais de diversos esportes olímpicos, migrou para os eletrônicos. Ele é médico do esporte, mas com uma especialidade que, à primeira vista, parece longe da realidade dos eSports: ele estuda Encefalopatia Traumática Crônica (ETC), doença que afeta boxeadores, causada por golpes repetidos na cabeça. Nesse caso, são oss testes computadorizados usados para a avaliação de ETC que se mostraram muito úteis para os esportes eletrônicos. Eles medem exatamente os parâmetros do experimento do documentário citado acima.
"Conheci, por causa desses testes, o fisioterapeuta da Liberty, equipe onde trabalho hoje, e começamos a aturar nessa área juntos. Usando tempo de reação, reflexo, memória, para ver rendimento de jogadores de eSports. Por exemplo, teste para análise de performance, comparar o começo do dia e o final do dia", ele conta.
Desgaste físico é o que pega
Se na maior parte dos esportes tradicionais prevalece o esforço físico, nos eletrônicos o que pega é o desgaste físico. As rotinas de treinamento são mais longas, usualmente de pelo menos seis horas ao dia, e o desafio é conseguir que o atleta sofra o menos possível com a fadiga mental e física.
"O gasto energético jogando é 40% maior do que quando ta está fazendo atividades cotidianas. A demanda física, os hormônios liberados, a adrenalina, são semelhantes ao do exercício físico. A diferença é que no esporte tradicional usa o músculo da perna, do braço, da bacia... e no eletrônico, usa cérebro e mão", explica Rafael Klosterhoff, que é nutricionista da seleção de rúgbi e de duas organizações de eSports.
Demandas físicas divergem, mas existem
Especializado em medicina do esporte, Guilherme Dilda é coordenador médico do Santos e também atende pro-players pela empresa de saúde Care Club. "Assim como nos esportes tradicionais o cuidado médico é diferente entre um e outro, o cuidado médico de um atleta de eSports também é diferente. A gente sabe que vai ter necessidade de trabalho físico, cognitivo, tático e nutricional com atleta de eSports e atleta de maratona. Mas as demandas físicas são diferentes", ele avalia.
"É um atleta que fica muitas horas sentado, então quando for fazer um trabalho de fortalecimento talvez a gente evite que fique em uma academia tradicional, sentado em aparelhos. De repente um trabalho mais funcional usando o peso do corpo", explica. "Tem a necessidade de fortalecimento de musculatura vertebral, abdominal e escápulas, dos membros superiores, para permitir que eles consigam treinar em um alto nível de rendimento, sem dores."
Mas, como as dores são inevitáveis, as organizações também têm recorrido cada vez mais a fisioterapeutas, massagistas e massoterapeutas. "É tudo muito novo, tudo muito recente, principalmente no comparativo com os esportes tradicionais. A gente está tentando englobar tudo, toda a experiência, e colocar aqui aos poucos", diz Iasmin Caroline dos Santos, massoterapeuta da INTZ.
Equipe coordenada
Imagine que uma equipe tem um pro-player que clique demais no mouse ou em uma tecla específica. Isso é observado pelo técnico ou outro membro da comissão técnica. É provável que o jogador faça isso por ansiedade, o que é tratado pelo psicólogo. Os cliques excessivos tendem a causar dores, que vão ser avaliadas por um médico e tratadas por um fisioterapeuta.
Para o trabalho dar certo, a comissão multidisciplinar precisa atuar de forma coordenada, em sintonia fina. Foi para conseguir isso que a Furia contratou Arilson Silva, personagem do início desta reportagem, que no passado foi o head coach da equipe de natação do Pinheiros, mas na última década trabalhou com diversos nadadores individualmente.
"Eles, da Furia, estavam buscando uma melhoria na preparação deles, na nutrição, parte física, mental, algo mais de atleta do que de jogador. Um dos donos da equipe conhecia o Marcio Atala, chamaram ele, e ele disse que sabia quem era a pessoa que poderia organizar isso para eles. E me ligou", lembra.
Inicialmente, o contrato seria de experiência, de três meses, até o Major, espécie de campeonato mundial de CS:GO, que no ano passado foi no Rio. "Quando eu soube que ia ser no Parque Olímpico, pensei: deixei uma medalha lá, vai ser legal voltar", contou. Até lá, seriam três meses de treinamento na base da equipe, que fica em Belgrado (Sérvia), fora da comunidade europeia, mas dentro dos servidores europeus do jogo, o que permite treinos contra rivais de peso.
Ari nunca tinha ido a uma competição de eSports e se surpreendeu ao ver que a equipe passou 12 horas seguidas em atividades de mídia no dia antes do torneio. "Estavam consumindo os caras antes do jogo. Mostrei que dava para fazer as mesmas coisas, sem degastar na véspera. No torneio seguinte eles já renderam muito mais."
No Major do Rio, no Parque Olímpico, Ari usou sua experiência de técnico olímpico. "Para eles era algo novo, nunca tinham participado de competição com torcida a favor tão grande, assédio da mídia, assédio de familiares, que é coisa que a gente enfrenta na Olimpíada." O resultado foi ótimo, e a Furia chegou até a semifinal.
"Eu não sei nada do específico do jogo. Não sei nem pegar no mouse e no teclado ao mesmo tempo. Mas, se eu fecho os olhos, a minha rotina com eles é muito similar ao que se faz com nadador, tenista, jogador de basquete. Só que ao invés de ir para quadra, o jogador fica na frente do computador. Aqui, aplico conceitos de treinamento esportivo, da academia de treinamento esportivo mesmo."
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