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Ex-campeã, Bate-Estaca relata preconceitos no UFC e defende espaço feminino

Jéssica "Bate-Estaca" Andrade, lutadora brasileira ex-campeã do UFC - Buda Mendez/Getty
Jéssica 'Bate-Estaca' Andrade, lutadora brasileira ex-campeã do UFC Imagem: Buda Mendez/Getty

Do UOL, no Rio de Janeiro

18/02/2023 04h00

Primeira brasileira a pisar no octógono do UFC, Jéssica "Bate-Estaca" Andrade quer provar que é muito mais do que apenas força. No caminho para tentar reconquistar o cinturão do peso-palha, a lutadora se esforça para mostrar que tem técnica, mas, acima de tudo, garantir e provar o espaço da mulher dentro do esporte. Ela luta mais uma vez hoje, contra a norte-americana Erin Blanchfield.

A prática da luta feminina, assim como do futebol e outras modalidades ficou proibida por lei durante 40 anos. O fim da proibição se deu apenas em 1979. Apesar de o UFC existir desde 1993, o primeiro confronto entre mulheres foi somente em 2013, quase 20 anos depois. Ao UOL, Jéssica falou sobre o peso de ser referência.

"É um orgulho fazer parte dessas primeiras. Não sou só eu. Tem a Amanda Nunes, campeã de duas categorias diferentes, a Cris Cyborg, que ganhou quatro cinturões de quatro eventos diferentes. É muito importante mostrar para as mulheres que não existe esse negócio de "qual é o teu lugar?" O lugar é onde você quiser, onde você escolher. Estamos onde gostamos. Fico muito feliz representar as mulheres e mostrar que nós podemos tudo. Essa força que a mulher tem que tirar de dentro de si, a gente já nasce guerreira, né? A mulher passa por várias coisas que fazem da gente forte. Tem menstruação todo mês, pode gerar um filho e na hora do parto só nós sabemos a dor que é. Já somos fortes de natureza. Por que deixar as pessoas diminuírem o que somos? É essa força que eu tento mostrar para as mulheres aqui dentro do octógono, que o MMA pode ser uma profissão que qualquer mulher, qualquer idade".

Jéssica também participou da primeira luta entre duas pessoas assumidamente homossexuais na história do UFC.

"Tiveram alguns preconceitos, falaram "ah, não vão ficar colando velcro, a gente tá aqui para assistir luta, não vão pro céu, não queremos ver puxão de cabelo, vai ter beijo na luta". Deixaram de focar na luta. Quando a gente entrou dentro do octógono, demos um show de garra, determinação, força. Isso começou a fazer diferença. Ser homossexual não vai influenciar no que vim fazer aqui, no meu caráter, no ser humano que sou. Treinei e me dediquei. Conseguimos quebrar um pouco desse tabu. Depois da luta, essas mesmas pessoas elogiaram, disseram que colocariam mais lutas femininas no UFC. Hoje tem outras lutadoras que são casadas. Amanda Nunes com a Nina, duas lutadoras do UFC, a Tecia Torres e a Raquel Pennington. Isso deixou de ser um tabu. A gente mudou a visão, né?", disse.

"Isso também encoraja as pessoas que ainda não se assumiram. Falo que você não tem a escolha, nasce com isso, mas escolhe dizer ao mundo o que você é. Você não está escolhendo as pessoas te aceitarem ou não, está escolhendo se aceitar e entender que é feliz assim. Eu não levanto a bandeira da homossexualidade, levanto a bandeira do amor. Quando você aprende a se amar de verdade, do jeito que é, não importa o que o outro vai falar. Eu me visto assim e às vezes eu entro no banheiro feminino e eu vejo que as mulheres olham para mim com cara tipo "por que tem um homem dentro do banheiro feminino?" E muitas vezes elas chegam a comentar. Eu escolhi me vestir assim, me sinto bem assim. Então falo: "eu sei, eu sou menina". Aí a pessoa fica sem graça. Está tranquilo. Eu sei que realmente confundo a cabeça das pessoas. Aprendi a me aceitar do jeito que sou e aceitar a opinião e a forma de pensar das pessoas. Só que não vai influenciar na minha vida. Ninguém paga suas contas. A gente ainda tem muito a melhorar nesse quesito, mas já está muito bom do que era naquela época", completou.

Jéssica é a terceira colocada no ranking peso-mosca e sexta no peso-palha feminino. Ela tem um cartel de 24 vitórias e nove derrotas no MMA profissional. A trajetória é motivo de orgulho.

"Se pudesse voltar no passado e falar com aquela Jéssica pequenininha, eu diria: "faz exatamente tudo o que você tem em mente, porque vai dar certo. Continua nesse caminho que você ainda vai ser muito grande". Só diria para tomar cuidado com algumas coisinhas no meio do caminho. Continuar com esse mesmo foco, a mesma determinação, com essa força que você vai alcançar grandes lugares. Eu acho que a Jéssica do futuro falando com a Jéssica de hoje também não mudaria o script. Esteja sempre junto com as pessoas que te amam. Valorize esses que vão estar do seu lado, porque vocês vão chegar a lugares grandiosos ainda. Eu nasci para isso, vou viver e vou morrer nisso, mas muito feliz, porque eu encontrei realmente o meu destino, o meu caminho, que é ser lutadora de MMA. Acho que não mudaria nada, faria exatamente o mesmo, do mesmo jeito que sempre foi."

Jéssica e Marta - UFC/divulgação - UFC/divulgação
A lutadora Jéssica 'Bate-Estaca' Andrade encontrou Marta no UFC
Imagem: UFC/divulgação

Largou o futebol para lutar

Tudo na vida de Jéssica poderia ter sido diferente se ela tivesse escolhido o futebol em vez do MMA. Nascida em Umuarama, no Paraná, ela chegou a receber proposta do São Paulo para jogar, mas recusou.

Antes da luta, Jéssica dizia para a mãe que seria a nova Marta, melhor jogadora brasileira de todos os tempos. Agora, trilha o caminho como uma das pioneiras no UFC.

"Sempre acreditei muito em mim. Quando comecei na luta, não imaginava que teria essa proporção. Comecei pensando que, se não desse certo, voltaria para o futsal, iria para o futebol, que era o sonho de carreira para a minha vida. Desde pequena eu falava para a minha mãe: "um dia vou ser muito grande, você vai ver. Eu vou ser a melhor do mundo, igual a Marta. Vou ganhar muitos prêmios, passar na televisão, fazer participação especial na Malhação, você vai ver. Vou dar muito orgulho para a senhora". Essa força de ser uma menina do interior, de as pessoas acharem que eu não chegaria a lugar nenhum me incentivou e me deu mais força ainda".

"Minha mãe e a minha família foram um ponto muito forte dentro da minha escolha, da carreira. Quando vi que realmente nasci para isso, para ser uma lutadora, resolvi me dedicar ainda mais, me esforçar. O meu maior incentivo sempre foi não ser melhor do que os outros, mas ser melhor do que eu mesma todos os dias. Entrei no PRVT (Paraná Vale Tudo) e meu mestre é um cara muito visionário, falava que eu conseguiria, mesmo quando perdia. Ele nunca me deixou perder essa chama, esse fogo que eu tenho dentro do meu coração de querer sempre ser melhor. Quando estou lá dentro é um filme que passa na minha cabeça, de onde eu saí, o que conquistei, os sonhos. Eu não posso desistir na metade do caminho."

"Até 2012 eu ainda tinha essa de continuar jogando bola e lutando. Chegou um momento da minha carreira que percebi que eu não tinha mais a opção de conciliar as duas coisas. E eu era melhor na luta. Pensei: "eu amo a minha cidade, amo onde eu nasci. Só que se eu não fizer isso para a minha vida, talvez não chegue, não conquiste ou demore mais tempo". Deixei todo mundo no Paraná. Tudo veio na coragem. Eu podia ter ficado lá, continuar treinando e viajar para fazer as lutas. Mas será que eu chegaria onde eu precisava chegar? Quando eu tive a oportunidade, agarrei com todas as forças. Sem falo: o cavalo selado realmente só passa uma vez na sua porta. Vai de você agarrar ele ou deixar passar. Se deixar, não vai voltar de novo, você vai ter que correr atrás dele para encontrar. Pode ser que ele canse de andar tanto e você chegue, então não deixe para depois, porque será mais difícil. Sempre abracei todas as oportunidades. Não tenho para onde correr. Meu plano A é esse. Não existe plano B e vamos fazer dar certo".

"Em quem mais tenho que bater?"

Jéssica foi convocada em cima da hora para substituir Taila Santos, que teve problemas na emissão dos vistos para integrantes da sua equipe. A adversária da brasileira será Erin Blanchfield na luta principal do UFC em Las Vegas. A disputa será pela divisão dos moscas.

Aos 31 anos, Jéssica vem embalada por três triunfos consecutivos na organização e no último, no Rio de Janeiro, perguntou a Dana White o que falta para disputar o cinturão novamente. Ela perdeu o título em 2019, contra o chinesa Weili Zhang.

"Claro que o foco é vencer agora no final de semana, mas se tiver uma vitória como foi contra a Lauren Murphy, mesmo que seja por pontos, dando um nocaute ou uma finalização entre esses cinco rounds, eu acho que de verdade vou ter a minha chance disputar o cinturão. A Weili Zhang ainda não tem data marcada para lutar. Não sei se o UFC a cogitou com alguém. Mas uma vitória hoje posso ter chance de revanche. Acredito que até o final do ano isso vai acontecer. Se continuar da forma que eu estou vindo de boas vitórias e fazendo um bom trabalho dentro da organização. Não tem por que não ter a oportunidade."

Veja mais da entrevista:

Você flutua entre as categorias no palha e no mosca. Como isso pode te ajudar?

O que conta muito é a vitória, a forma como você vence. Fico sempre disponível para o UFC, inclusive agora que ninguém queria lutar com a Erin e eu falei que ia. Ainda mais dentro da categoria do 57kg, que hoje eu sou a terceira do ranking e ela é a décima. Para mim é muito bom fazer parte desse grupo seleto que pode lutar no 57kg e no 52kg. Acredito que atrapalha um pouco na minha carreira dentro do 52kg, porque antes eu estava em quarto do ranking e depois da minha vitória eu fui para terceiro do 57kg, mas voltei para sexto no 52kg. É bom, mas ao mesmo tempo é ruim. Quero muito ter a chance de voltar aos 52kg e fincar minhas raízes dentro da categoria para ter a oportunidade de disputar o cinturão, ficar bem ranqueada como eu sempre fui. Dentro da categoria dos pesos palha eu sempre fui a número um, número dois. Estou sentindo falta de ser a principal. Eu espero que depois dessa luta eu tenha a oportunidade de recuperar meu cinturão e voltar para a categoria 52kg.

Como foi a preparação para a luta em menos tempo?

Eu já vinha da minha preparação contra a Lauren Murphy. Não deu nem um mês que eu estava "descansando", porque provavelmente eu teria uma luta em maio. Por isso, já tinha começado a fazer alguns treinos de jiu-jitsu de muay thai. Quando surgiu a oportunidade de fazer essa luta, pensei que estava praticamente pronta. Eu venho um camp muito bom, uma luta que todo mundo está elogiando bastante. Estou muito feliz. Acho que é mais estudar mesmo, ver o que a minha adversária tem de forte. Vai ser a mesma coisa para ela, é uma coisa nova. Ela estava treinando e fez o camp todo voltado para lutar contra a Taila, que é um jogo totalmente diferente do meu.

Como vê seu momento pessoal?

Eu venho evoluindo muito dentro do MMA e do UFC. Quando falei para a galera se acham que tenho técnica ou não é porque toda vez que eu vou lutar as minhas adversárias me subestimam demais. Elas falam que eu não tenho técnica, que só tenho força, só brutalidade. E eu não tenho só isso. O negócio é que eu consigo usar todas as minhas armas ao mesmo tempo. Para essa última luta eu pensei em realmente mostrar a minha técnica, o quanto evoluí na trocação. Eu chutei mais, que era uma coisa que não fazia muito nas minhas lutas. Trabalhei bem as esquivas, saí só o que precisava para poder colocar os bons golpes. A Lauren Murphy realmente me surpreendeu pela resistência. Achei que ia nocautear no segundo round, mas ela aguentou. No terceiro round eu já não estava conseguindo mais a soco com a mão fechada, comecei bater de croque, para cima e para baixo. Realmente ela me surpreendeu na resistência, mas também foi uma das adversárias que falou que não entraria dentro do octógono para mostrar o quanto era dura, mas sim a técnica, porque eu só tinha brutalidade. Que iria vencer na técnica. Naquele momento, pela energia do público, de ter feito um bom trabalho, pensei que precisava enfatizar às minhas adversárias. Sou muito forte, mas também tenho técnica. Consegui mostrar isso e espero continuar evoluindo, mostrando mais ainda nas próximas.