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Ciclista denuncia ex-técnico da CBC por violência sexual; polícia investiga

Ciclismo - iStock
Ciclismo Imagem: iStock
Talyta Vespa e Demétrio Vecchioli

Do UOL, em São Paulo

08/06/2023 04h00

O ex-técnico da seleção brasileira de ciclismo de pista Emerson Silva está sendo investigado por violência sexual contra uma atleta da equipe feminina. A Polícia Civil do Rio de Janeiro instaurou um inquérito e apura a denúncia, feita em fevereiro deste ano.

A atleta falou ao UOL e pediu anonimato. O abuso, segundo ela, teria acontecido em 2018, após completar 18 anos, quando ele era o técnico da seleção.

Emerson nega as acusações. Procurada pela reportagem, a defesa de Emerson afirma que "até o presente momento, Emerson desconhece a existência de qualquer denúncia ou processo judicial promovido contra ele". Ainda segundo o advogado Fábio Aires de Toledo Silva, o treinador, até o momento, nem "sequer foi citado, intimado ou notificado pela Justiça".

Leia, com exclusividade, o relato da atleta:

"Tudo começou quando eu tinha 18 anos. Eu treinava todos os dias com o Emerson, e as atletas da Confederação Brasileira de Ciclismo (CBC) precisaram passar uma temporada no Rio de Janeiro para competir em algumas provas internacionais. Ele ligou para minha mãe, a convenceu a me deixar ir, e fiquei hospedada num apartamento com outras três meninas.

Em uma noite, estávamos só nós dois na casa, e foi aí que tudo aconteceu. Ele comprou bebida alcoólica, me deu. Bebemos. Deitei em um sofá, ele, no outro. Até que ele começou com uns papos constrangedores, sobre sexo, querendo saber com quem eu ficava na época. Eu nunca tinha ficado com ninguém, e ele não acreditava. Até que ele sentou no mesmo sofá em que eu estava e tentou subir em cima de mim, tentou me beijar. Olhei para ele firmemente e disse: 'Emerson, eu não quero'.

Repeti algumas vezes e levantei. Fui para meu quarto, ele, para o quarto dele. Até que ele me chamou, disse que a gente só conversaria. Eu fui. Ele tentou de novo, insistiu para que a gente transasse, disse que não falaria nada para ninguém. E eu afirmei algumas vezes que não queria, pedi que parasse. Então, ele tirou a roupa e começou a tocar o pênis. Eu disse: 'Emerson, não, você não é a pessoa que eu escolhi para ter essa experiência'.

Ele continuou como se eu não estivesse dizendo qualquer coisa. Ou como se tivesse aceitado. Tirou minha blusa. Eu só conseguia repetir 'pare, por favor'. Ele se tocou e ejaculou na minha mão. Corri para o banheiro, lavei a mão e corri para meu quarto. Tranquei a porta.

No dia seguinte, eu iria embora para a minha casa, no interior de São Paulo. Era uma viagem longa. Ele viajaria para a Copa do Mundo. Quando acordei, ele disse que queria conversar comigo e ordenou que tudo que aconteceu ficaria só entre a gente. Eu não entendia, era imatura. Me senti culpada, achei que tinha cedido. Não entendi o tamanho daquela violência, da posição de poder que ele ocupava e como eu fui colocada numa situação de medo.

Passei a ter crises de ansiedade, a me sentir mal. Minha alegria sumiu. Eu precisava vê-lo toda semana, porque era meu técnico. Eu senti culpa, se eu tinha usado alguma roupa provocante. Tentava lembrar em qual momento eu teria dado alguma abertura. Mas não dei, em momento algum.

Isso aconteceu no fim de 2018 e pautou boa parte dos meus treinos e do meu desempenho. Eu não conseguia mais treinar, caí muito. Assim foi até meu atual técnico me convidar para treinar com ele. Mudei de cidade, me afastei dos meus pais, mas aceitei só para ficar longe do Emerson.

Mas quem sofre um abuso, um assédio, ou qualquer tipo de intimidação sexual não se livra tão facilmente dos resquícios disso. Depois de um tempo longe dele, tentando recuperar meu desempenho, começaram a surgir denúncias contra ele na CBC. De assédio moral, principalmente, junto de um abaixo-assinado pela saída dele do comando da seleção.

Então, ele me ligou desesperado. Perguntou se tinha sido eu quem o denunciou e, também, o que eu tinha falado. Mas não tinha sido eu. Ele voltou a dizer para que eu não contasse o que aconteceu para ninguém. E demorei mesmo para contar. Meu técnico, em quem eu confiava, um dia me perguntou se já tinha acontecido alguma coisa. Não sei como ele desconfiou. Mas minha reação imediata foi negar.

O medo é sempre de não acreditarem, além da revitimização, que é muito dolorosa. Achei que poderia ser demitida, que não competiria mais, que seria excluída das competições. Nessa época, eu já namorava meu atual namorado, e ele era o único que sabia de tudo. Ele me incentivou muito a me abrir com meu técnico, porque eu não conseguia esquecer. Isso voltava à minha mente todos os dias. Eu era a melhor nas pistas. De repente, havia me tornado a pior.

Conversando com meu namorado, tive a ideia de ligar para o Emerson e jogar um verde. A ligação está gravada e, nela, ele assume tudo o que fez. Com esse respaldo, procurei um advogado e decidi denunciar. Mas, ainda assim, não quero que nesta reportagem seja divulgado meu nome. Apesar do respaldo, ainda temo pelo poder de Emerson na CBC. Agora, é tentar me reconstruir."

Conversa gravada

O UOL teve acesso a essa conversa telefônica, em que Emerson tenta convencer a vítima a não apresentar denúncia a respeito do episódio de cinco anos atrás. No diálogo, o treinador disse que, se o caso viesse à tona, ele seria preso:

-- Eu não vou falar nada do que aconteceu lá no Rio, senão você sabe o que vai acontecer com você, né? -- questiona a vítima.
-- Eu sei, até porque eu acho que, sei lá. Você pode falar que não aconteceu nada, senão você vai acabar com a minha vida.
-- Vou ver o que eu faço aqui.
-- Se você disser isso aí eu vou preso, meu nome vai para o 'Fantástico', vai para tudo isso. E eu também acho que não foi totalmente assédio, né. Por favor, de verdade, isso aí vai acabar comigo.

Denúncia vai do ciclismo ao COB

Emerson informou em suas redes sociais ter sido demitido do cargo de treinador da CBC em 4 de janeiro, um dia depois de a vítima apresentar sua denúncia ao Conselho de Ética da confederação. A reportagem apurou que o relato dela chegou por e-mail a todos os membros da Comissão de Atletas, expondo a identidade e a intimidade da vítima, que segue desejando se manter anônima.

Um processo foi instaurado no Conselho de Ética da CBC e a vítima foi chamada a depor em uma audiência virtual, por teleconferência. Ela relatou à reportagem que a abordagem das auditoras foi no sentido de culpá-la pelo assédio, inclusive questionando se ela usava roupas curtas. A audiência não foi gravada.

"Ela foi extremamente maltratada, julgada. As próprias auditoras que iam instruir o processo se manifestando como se ela fosse culpada pelo Emerson ter abusado dela sexualmente", reclama o advogado Carlos Junior, do escritório Narezzi, Júnior e de Lima Advogados, que representa a vítima.

O episódio, que assustou ao menos uma outra pessoa que participava da audiência, foi confirmado à reportagem por uma fonte independente, que identificou a advogada Julia Gelli, vice-presidente do conselho, como a responsável pelo constrangimento. Gelli nega.

"Eu infelizmente não posso fazer comentários porque tenho compromisso de sigilo. Quisera a gravação pudesse ser divulgada. Ela saiu no curso das perguntas, não voltou alegando chuva e aula, depois disse que não tinha disponibilidade na nova data e por fim, documentalmente, desistiu espontaneamente do procedimento. Eu definitivamente não pratiquei nenhum 'constrangimento'", afirmou à reportagem.

Depois disso, a vítima desistiu do processo no Conselho de Ética do ciclismo e apresentou sua denúncia ao Conselho de Ética do Comitê Olímpico do Brasil (COB). "O órgão da CBC não é imparcial para julgar algo tão grave", diz o advogado. Segundo ele, um dia depois de a desistência ser informada diretamente por ele ao Conselho de Ética, Emerson ligou para o atual técnico da vítima para "agradecer".

"O Conselho de Ética da CBC mostrou ser um órgão totalmente parcial. Como que o órgão que deveria ser imparcial permite que a informação chegue tão rápido ao acusado?", questiona o advogado.

No COB, a denúncia só chegou formalmente ao Conselho de Ética nos últimos dias. O caso já foi distribuído a um relator, que agora irá ouvir as partes envolvidas. O técnico e a CBC já foram notificados, pelo que apurou a reportagem.