Falta de brasileiros e campeonato definido diminuem busca por 'laje da F1'
A entrada da robusta casa amarela, localizada na cara do autódromo de Interlagos, já teve filas e filas formadas por fãs afoitos de Fórmula 1. Eles davam uma graninha ao dono do espaço, Gilmar Santana, e tinham cinco andares para definir qual deles proporcionaria a melhor vista. À época, quando havia brasileiros entre os pilotos da F-1, as árvores que hoje tapam parte da visão ainda eram pequenos raminhos. Dava para ver boa parte do autódromo, e de um camarote cujo preço era infinitamente mais acessível.
A laje de Gilmar lotava quando tinha corrida em São Paulo. A procura era tanta que Rubens Obayashi, 55, enfrentou fila de espera quando esteve pela primeira vez no espaço, em 2003. Ele voltou à laje vinte anos depois, levou o amigo, Julio Cesar, 43, e encontrou um ambiente bem diferente do que viu naquela época.
Relacionadas
O preço não aumentou: Gilmar cobra, aos domingos de corrida, R$ 70 pela vista já não tão privilegiada assim. Para assistir à classificação no sábado, o valor era R$ 50, e o treino livre na laje vale R$ 30. Ele justifica a baixa no movimento: além de o campeonato já estar definido - Max Verstappen é o campeão da Fórmula 1 2023 -, não há brasileiros entre os pilotos, coisa que no auge da laje tinha, e de sobra.
Rubens Barrichello, Felipe Massa, Cristiano da Matta e Antônio Pizzonia entrelaçavam seus carros pelas pistas do mundo na época que Gilmar decidiu transformar sua casa (e a visão excelente dela) num espaço em que fãs do esporte poderiam prestigiar, de algum modo, seus ídolos. A ideia, ele conta ao UOL, não era lucrar em cima da iniciativa, uma vez que o valor da entrada sequer chega perto do valor das obras para que a casa atingisse tal tamanho: em média, 40 metros de altura.
Rubens, o Obayashi, volta em outro cenário: neste sábado (4), dia de sprint, a laje de Gilmar abrigou 15 pessoas. Julio, o amigo, com seu olho biônico, descrevia a ordem dos pilotos que passavam no curto espaço ainda disponível aos olhos da laje. E cravou, todas as vezes - algo considerado impressionante pelos colegas que o ouviam.
A laje é rodeada por barras de ferro. Tem parte da estrutura amarela, como o restante da casa de Gilmar, mas o chão é de concreto. "Ainda vamos terminar a reforma", explica o dono do espaço. O último piso da laje, que tem a melhor vista e que reuniu os espectadores, é composto por mesinhas de ferro (resistentes ao clima, ele conta), e cadeiras. Um funcionário sobe e desce com frequência à espera dos pedidos dos clientes.
O preço nem parece de Interlagos em fim de semana de corrida. Uma lata de 350 ml de cerveja custa R$ 5. Pelo refrigerante pequeno, Gilmar cobra R$ 2. A água custa R$ 3, e o pratinho de churrasco pode chegar a R$ 20. "Não tenho intuito de explorar ninguém, é só para a gente conseguir manter a laje", ele diz. Mas o pouco movimento não é suficiente para estragar o bom humor que há vinte anos faz Gilmar ser conhecido. Humor esse que fez Rubens voltar à laje duas décadas depois.
Vestido com uma camisa do Palmeiras, uma jaqueta estampada com as cores da bandeira do Brasil (sob um calor sem sombra que chegava a 30 graus) e um bucket hat da Mercedes, Gilmar gargalha. Palmeiras virou sobre o líder o Brasileiro Botafogo e meteu cinco no São Paulo. A Mercedes, bom? Deixa para lá.
Ele passa de cliente em cliente para bater papo. A torcida, no espaço, é diversa. Gilmar e Julio são fãs de Lewis Hamilton e torcem pelo sucesso da Mercedes. Rubens veste a camisa da Red Bull, é palmeirense e não fala uma frase sem rir. Por que será? Sebastião Francisco Alves, 65, é Ferrarista roxo. Vai a todos os GPs de São Paulo desde 1986, não perde um, e se apaixonou pela F-1 na época gloriosa da Ferrari.
Ele estará no autódromo para a corrida neste domingo (5), mas decidiu acompanhar a sprint da laje de Gilmar no sábado por causa do neto. Rafael, 5, tem um grau leve de autismo e é sensível a sons muito altos. Sebastião, que assiste aos GPs desde antes do motor híbrido, temia que o menino se assustasse com o som dos carros na pista. Decidiu testar da laje.
"O primeiro GP do meu filho foi quando ele tinha cinco anos, a mesma idade do meu neto. Desde então, ele não perde uma corrida. Agora, com 28 anos, se casou. Decidi que era a hora do meu neto ser apresentado a esse esporte que eu tanto amo. Tenho ingressos para a corrida hoje, inclusive um ingresso para ele. Mas preciso ver se ele vai ficar bem. Então, viemos na laje", diz.
Rafael se empolgou durante a corrida sprint. Nos ombros do avô, numa cena que beirava uma crise de vertigem, apontava para os carros e gargalhava quando os pilotos passavam. O barulho, bem mais suave em relação à época dos motores V8 aspirados, não pareceu incômodo para o menino. Com a mãe e o avô, ele celebrava a festa do esporte passado entre gerações.
Quem não tem ingresso é Wesley Sabioli, 28, que decidiu arriscar na porta do autódromo para ver se conseguia entrar. Ele é pintor automotivo, e dois de seus chefes conseguiram os bilhetes para assistir ao GP de São Paulo. "Vim na expectativa de eles conseguirem um um para mim também, mas não rolou. Caí na laje por acaso. Saí andando em busca de algum lugar em que fosse transmitida a sprint e vi essa casa. Perguntei se os rapazes que ficam na entrada poderiam me indicar um lugar, e cá estou".
Não dá para ver tudo, nem tão bem, mas quem botou o radinho no ouvido teve narração e visão ao vivo. As árvores, que devem em breve tapar o pouco do autódromo que ainda dá para ver da laje, não incomodam Gilmar. "Quando elas esconderem tudo, aí eu vou ter vista para a natureza. Olha que beleza", diz.
Os clientes dele, que estavam cada um num canto antes de a sprint começar, foram inconscientemente se aglomerando. Os desconhecidos, num passo, se tornavam conhecidos, e Gilmar, da sala de sua casa, lááá no térreo, brindava com a família uma tradição que mesmo cambaleante sobrevive há vinte e três anos. "Sobrevive, não. Vive", celebra.