Ela foi Chiquitita e estagiou no Comitê Paralímpico. Agora, sonha com Paris
Quando Giovanna Boscolo tinha 15 anos, o quarto onde dorme foi reformado e ela escolheu uma parede para contrastar com o tom escuro que as outras ganhariam. Para isso, colou um cenário claro com imagens da Torre Eiffel e a frase "pensamento em Paris". Ela não imaginava, porém, que, anos depois, aquele dizer se tornaria um objetivo real: ela tenta uma vaga no lançamento de club dos Jogos Paralímpicos.
A vida de Gi, como é conhecida, tem alguns desses caminhos cruzados. Diagnosticada com Ataxia de Friedreich, ela largou o esporte, mas o destino a fez contrariar a previsão médica, e de estagiária no setor de Ciência do Esporte no Comitê Paralímpico Brasileiro virou recordista das Américas logo em sua primeira competição internacional. Agora, aos 21 anos, mira vaga nos Jogos Paralímpicos, que vão ocorrer na capital francesa.
Eu estava olhando esses dias e fiquei chocada. Acredito muito nessas coisas de destino, e esse ano vou me dedicar a esse sonho Giovanna Boscolo
Ex-atriz mirim, com participação no seriado "Chiquititas", a atleta projeta usar as redes sociais para maior conscientização da doença e visibilidade às modalidades esportivas.
Do adeus ao reencontro com o esporte
Filha de educadores físicos, Giovanna sempre teve o esporte como elemento de forte influência — defendeu o Palmeiras em competições de ginástica aeróbica. Aos 15 anos, porém, a história começou a mudar.
Após duas lesões incompatíveis com as atividades que realizava rotineiramente, o técnico conversou com a família. Foram feitos diversos exames e veio o diagnóstico: Ataxia de Friedreich, uma doença neurodegenerativa rara.
Quando descobri, para mim, foi bem difícil. O médico falou que poderia continuar com tudo, mas que não poderia mais ser atleta. Eu ainda treinei por um tempo, sem competir, até que me desliguei. Foi muito difícil.
A curiosidade sobre genética e o recente diagnóstico a levaram a cursar biomedicina na faculdade. Sob novas condições, conheceu o CPB e chegou a praticar natação, mas saiu pouco depois. O foco estava em conquistar o diploma.
O estágio em laboratório clínico não fez o coração bater mais forte, mas era a alternativa naquele momento de vida. Até que surgiu a chance de se reaproximar do esporte.
Eu soube que o CPB tinha vaga em Ciência do Esporte e liguei, mas as vagas já estavam preenchidas. No dia que eu ia renovar o estágio com o laboratório, me ligaram e disseram que uma pessoa tinha desistido. Foi uma correria, mas deu tudo certo.
Do estágio ao pódio
Giovanna analisava diversos dados dos atletas para indicar possíveis mudanças nos treinos por melhores índices. Surgiu, então, o convite para experimentar o atletismo, mais precisamente o lançamento de club, uma espécie de pino de boliche, como ela mesmo explica. Aceitou e começou a treinar nas primeiras horas da manhã, antes de vestir o jaleco.
Passou a competir na classe F32, para pessoas com lesões cerebrais. "Houve tempo de me inscrever no último torneio do ano, em novembro, e fui bem. Em dezembro, fui convocada para o Grand Prix de Dubai".
No lançamento de club, ela conquistou o ouro e bateu o recorde das Américas ao atingir a distância de 26,25m — antes, a melhor marca continental pertencia à amapaense Wanna Brito, que fez um lançamento de 24,34m em junho do ano passado.
Foco em Paris
Com os resultados, Giovanna colocou, de vez, Paris nas metas para 2024. "É muito doido pensar nisso, mas o objetivo maior, com certeza, é Paris. Eu estava ajudando outros atletas nos bastidores, e, agora, vou buscar a minha vaga", disse, com um sorriso no rosto.
Para focar nesta meta, ela vai pausar o trabalho na análise de dados. "Como esse ano tem o Mundial em maio, no Japão, e a Paralimpíada em agosto, o meu coordenador falou: 'Vai começar um ano em que, se você quiser realmente, vai ter de se predispor a treinar. E, se eu fosse você, investia nisso'. Eu topei".
Atualmente, a marca alcançada por Giovanna é a terceira do mundo na classe F32.
TCC sobre Ataxia de Friedreich
Formada em biomedicina, o trabalho de conclusão de curso (TCC) de Giovanna foi sobre a Ataxia de Friedreich. "Pude entender, a partir da fisiologia, da genética, de tudo, a minha doença, e foi o tema do meu TCC. Tratei de métodos biotecnológicos para correção da alteração da Ataxia de Friedreich. Acho que foi um grande passo. Foi bem difícil, principalmente, porque a maioria das referências está em inglês ou alemão. Não tem muita gente que fala sobre isso", diz.
Hoje, são 700 pessoas no Brasil registradas com a doença, mas ela ressalta: "Acredito que tem muita gente que não tem o diagnóstico fechado por ser uma doença rara e de difícil apontamento. E é difícil nas grandes cidades, imagina em locais com menos estrutura".
Ex-Chiquititas quer usar redes sociais
Na infância, Giovanna foi modelo e atriz, e participou do "Conversa de gente grande", "Julie e os fantasmas", como Thalita quando pequena, e "Chiquititas", como Michelle. Ela pretende aproveitar a visibilidade que ganhou neste período para usar as redes sociais em prol do esporte paralímpico e também falar mais sobre a Ataxia de Friedreich.
[Chiquititas] Foi uma febre, né? Até hoje o pessoal assiste no Netflix. Essa visibilidade que a novela me deu vai ser importante. Comecei a usar o meu Instagram para falar da causa do esporte paralímpico. É um mundo de possibilidade e muda a forma como as pessoas veem. E também falar sobre a doença, em que há uma questão de aceitação.
A atleta, hoje, fala abertamente da doença, mas nem sempre foi assim. "Quando descobri, o meu avô estava com câncer e era um momento muito difícil para a minha avó. Então, mantivemos em segredo. Apenas alguns bem próximos sabiam", aponta.
"A minha deficiência causa um problema de equilíbrio, de coordenação, e muita gente brincava com: "Ih, bebeu", essas coisas. Eu fazia um esforço muito grande para 'ser normal', entre aspas, mas não conseguia e ficava brava comigo. Mas não era minha culpa. Agora, minha mãe conseguiu contar e se tornou um assunto aberto, o que foi muito bom", completou.
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