Rickson Gracie: 'O Parkinson virou meu irmão, e a morte não é um problema'

Rickson Gracie, 65, perde, aos poucos, a habilidade que fez dele uma das maiores referências brasileiras do mundo das lutas: o controle de seus movimentos.

Diagnosticado em 2021 com a doença de Parkinson, ele diz ter aceitado a nova vida "de forma lógica, prática e rápida".

Ele se mudou para Vero Beach, cidade de 16 mil habitantes no sul da Flórida, largou a carne vermelha e o álcool, e divide os dias entre sessões de fisioterapia e idas à praia.

O lutador descreve ao UOL sua última missão "antes da partida": ensinar jiu-jítsu a pessoas "frágeis e inseguras", enquanto convive com sintomas graduais e irreversíveis da doença.

O Parkinson virou quase um irmão. Um associado que não posso mais largar.

Rickson é um dos nove filhos de Hélio Gracie, criador do "jiu-jítsu brasileiro", adaptação local da arte marcial japonesa. Ele não tem relação fácil com os irmãos.

Sua família virou a maior dinastia brasileira das artes marciais mistas (MMA).

Foi Rorion Gracie quem criou, em 1993, o UFC (Ultimate Fighting Championship), hoje maior marca do setor, avaliada em US$ 11,3 bilhões pela Forbes.

Royce Gracie virou seu primeiro campeão.

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Rickson nunca entrou no UFC. Enquanto a franquia de lutas se desenvolvia nos EUA, ele foi lutar MMA no Japão. Naquela época, a Ásia era o maior mercado de lutas do planeta.

Ele reinou absoluto nos anos 90. Seu cartel oficial é de 11 lutas, 11 vitórias, todas por submissão. Era o maior lutador do mundo.

Deixou de lutar em 2001, em depressão após a morte do filho Rockson, aos 19, de overdose de cocaína e outras drogas.

Para Rickson, o UFC ajudou a transformar o MMA atual "mais em entretenimento do que em arte marcial". Ele também critica o uso político da organização.

Nos EUA, condena o uso ostensivo do UFC na campanha de Donald Trump. No Brasil, desaprova a ligação de parentes, como o primo Robson e o irmão Rorion, com Jair Bolsonaro.

Rickson acaba de lançar a biografia "Conforto na Escuridão" (Ed. HarperCollins).

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Livro Conforto na Escuridão, biografia de Rickson Gracie
Livro Conforto na Escuridão, biografia de Rickson Gracie Imagem: Divulgação

Veja abaixo os principais trechos do depoimento ao UOL:

'DESISTIR NÃO É OPÇÃO'

"O Parkinson é uma doença muito muito física e traumática, porque você perde a coordenação motora, o equilíbrio, a capacidade de interagir ou treinar de forma normal.

É como se eu tivesse tomado uma droga que me desacelera. Estou sentindo fisicamente a diminuição da minha força e da minha velocidade.

Mas desistir não é uma opção. Quando fui diagnosticado, o médico receitou uma pilulazinha, passou exercícios e não deu sequência. Era ficar esperando o Parkinson piorar.

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Fui pesquisar e questionar outros médicos, que ofereceram outra mentalidade. Adicionei umas vinte coisas no meu protocolo, como exercícios, fisioterapia, suplementos, que mudaram minha vida para melhor.

Não vou só ficar aqui esperando o Parkinson me pegar. Se ele vai me vencer, isso não me preocupa, porque todo mundo vai morrer um dia.

Estou superfeliz de usar esse elemento negativo na minha vida, o Parkinson, para minha evolução espiritual, moral e mental.

Não tem culpa, nem culpado. A gente tem que saber viver e tirar proveito do agora."

MUDANÇA DE VIDA

"Depois de mais de trinta anos morando na Califórnia, resolvi mudar para a Flórida [em Vero Beach] por razões financeiras. Aqui é muito mais barato, até gasolina.

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E por razões físicas, porque depois do Parkinson, aqui o clima é mais confortável para mim. Não é seco e frio como na Califórnia. É úmido e quente como no Brasil.

Acordo por volta das nove da manhã. Faço um alongamento, minha refeição e vou para a praia. À tarde dou duas horas de aula por dia. Durmo cedo. Uma vidazinha tranquila.

Parei de comer carne vermelha e de beber. Fiz uma mudança radical na minha vida em termos de dieta: não como farinha branca, nada de massas.

Já comi muita carne na vida. Adoro churrasco, mas estou feliz da vida porque estou menos ansioso, mais calmo. A carne agita o sistema nervoso.

Álcool eu parei já antes da pandemia. Estava começando a criar uma barriga, a ficar mole para acordar de manhã. Parar foi a melhor coisa que fiz na vida."

'PARKINSON VIROU IRMÃO'

"Minha aceitação [do Parkinson] foi lógica, prática e rápida, porque não tem outro jeito.

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Minha evolução está sendo constante em termos de me entender, de estar ligado em tratamentos, de melhorar meus sintomas e minha perspectiva de vida.

O Parkinson é um oponente com quem tenho que lidar da melhor maneira possível. E me agrada pensar que eu amo até meus oponentes.

Passei a sentir que o Parkinson virou um companheiro de vida para mim. Quando penso nele, não fico puto ou chateado. Penso e fico atento em saber quais são as novidades.

O Parkinson virou quase um irmão. Um associado que não posso mais largar.

A morte não é o problema. O problema é como aceitamos a morte. Eu não tive medo de nascer. Não tive medo de ficar vivo. Então não tenho medo de morrer.

Mas tenho preocupação de morrer antes de fazer tudo aquilo que eu gostaria."

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Rickson Gracie em academia no Rio de Janeiro; ex-lutador diz ter feito mais de 400 combates sem nunca perder
Rickson Gracie em academia no Rio de Janeiro; ex-lutador diz ter feito mais de 400 combates sem nunca perder Imagem: Daniel Marenco/Folhapress

ÚLTIMA BATALHA

"Quero padronizar um estilo de ensinar jiu jítsu acessível às pessoas que não gostam de lutar. Ensinar quem é campeão por natureza é fácil, mas não pessoas introvertidas, frágeis e inseguras.

Então eu gostaria de criar, antes da minha partida, uma metodologia de jiu-jítsu para empoderar os fracos.

É o 'jiu-jítsu invisível', porque tem ferramentas de agilidade, estratégia e treinamento, mas também a parte espiritual do guerreiro.

A respiração, por exemplo, é invisível. Mas quando você sabe respirar, acalma o cérebro, o coração, ganha autocontrole. Quero ensinar isso."

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MMA E ESPETÁCULO

"Meu irmão [Rorion] teve a ideia de criar um circo de lutas, trazendo a ideia do vale-tudo. Mas o UFC evoluiu para se transformar mais em entretenimento que arte marcial. A coisa ficou muito acelerada e violenta.

As regras são feitas para haver mais socos, chutes e violência do que o próprio vale-tudo, que, por ter mais tempo, fica mais inteligente e estratégico.

Sempre me preparei mais para ser um artista marcial do que um 'entertainer'.

A influência da internet está desumanizando as pessoas, que estão mais no virtual do que no presente. O MMA traz você para o momento.

Os jovens hoje se esquecem de cumprimentar com a mão, de olhar no olho. Estão sempre no virtual. O MMA pode fazer você voltar a sentir."

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Jon Jones dá o cinturão dos peso-pesados a Donald Trump após vencer luta contra Stipe Miocic no UFC 309
Jon Jones dá o cinturão dos peso-pesados a Donald Trump após vencer luta contra Stipe Miocic no UFC 309 Imagem: Chris Unger/Zuffa LLC

MMA E POLÍTICA

"Não dava para imaginar [o poder de influência do MMA atual], o crescimento foi muito rápido. A coisa ganhou uma admiração e uma visibilidade mundial. Tanto que, por isso, o Trump está se utilizando dessa plataforma.

Acho que esse poder do MMA vem da natureza humana. De querer admirar o confronto, o líder, o mais forte, respeitar a força física.

Mas vejo que, muito espertamente, as pessoas estão em cima de promover situações políticas. Usam para propagar o que querem. Acho errado o MMA ser usado para a política.

Essa mistura é negativa, porque aqueles que não gostam do Trump vão passar a desgostar do UFC.

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Eu diria que é uma forma suja de trazer o interesse orgânico da arte marcial e agregar o jogo para a política. Essa distância deveria ser respeitada."

OS GRACIE E BOLSONARO

"Acho que a relação [de alguns membros da família Gracie com Bolsonaro] é negativa, porque só aqueles que gostam do Bolsonaro vão estar com a família.

A família tem que estar pronta para servir à arte marcial, para empoderar tanto os Bolsonaristas como os amigos do Lula.

Seria um prazer para mim tanto ensinar jiu-jítsu ao Lula e ao Bolsonaro. Os dois precisam aprender muito sobre condições humanas e como dirigir o país de forma equilibrada.

Como o jiu-jítsu, o Lula teria a aprender os benefícios da verdade. Porque a política tem que ser feita com verdade, não com idealismos negativos.

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E o Bolsonaro, acho, deveria aprender a entender um pouco mais os dois lados e não ser tão radical. Ter mais paciência e aceitação da cultura brasileira em vez de confrontar."

Rorion Gracie foi o criador do UFC e um dos principais difusores do jiu-jitsu brasileiro
Rorion Gracie foi o criador do UFC e um dos principais difusores do jiu-jitsu brasileiro Imagem: Arquivo Pessoal

RORION E O FUTURO

"Eu e Rorion tivemos vários problemas no passado com relação a luta e a administração. Mas, hoje em dia, meu irmão é acessível a mim.

Não temos negócios juntos, mas temos amizade e consideração.

O perdão é feito para te libertar da emoção negativa. Procuro perdoar, tirar do meu sistema qualquer coisa com a qual não concorde ou não me agrade. Aceito o que existe.

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Voltamos nossa relação com cuidado para não repetirmos os mesmos erros, para que a gente possa conviver no futuro.

Hoje me sinto agradecido a Deus. Com o que eu já fiz na vida, já podia parar agora, entrar na geladeira e ficar congelado, que eu já estaria feliz.

Então continuo fazendo menos do que fazia [por causa do Parkinson], mas feliz de já ter feito muita coisa. É só alegria, vou nadando de braçada para o futuro."

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