Piloto que foi salvo por Senna em imagem da série carrega culpa até hoje

A imagem em que Ayrton Senna surge salvando o francês Erik Comas no GP da Bélgica de 1992 faz parte da série da Netflix em homenagem ao tricampeão brasileiro. O momento, apesar de não ter sido muito aprofundado no enredo, vai além de um ato de heroísmo: ele carrega traços de culpa.

'Me sinto envergonhado'

Comas bateu forte no muro e destruiu sua Ligier-Renault durante o treino classificatório do GP em questão, o 12° daquela temporada.

Senna, ao ver a gravidade do acidente, mostrou valentia: ele estacionou sua McLaren ao lado do companheiro, desceu do cockpit e correu em direção ao francês. O motivo? O carro sofria com vazamento de combustível e estava prestes a explodir.

O brasileiro desligou a ignição da Ligier-Renault e evitou o pior: o atendimento chegou pouco tempo depois, e o europeu foi salvo — ele não chegou a participar da corrida na Bélgica, mas voltou a competir no GP seguinte.

Dois anos depois, o papel se inverteu, mas Comas não conseguiu retribuir o gesto: quando Senna bateu em Ímola, os fiscais de prova impediram qualquer resgate por parte dos pilotos. O europeu chegou a descumprir uma regra e guiou seu carro até o local do acidente, assistindo a todo atendimento médico. Ao saber da morte do colega, ele não participou do restante da corrida — e se aposentou no fim da temporada de 1994.

Em entrevista ao UOL concedida em 2014, Comas não escondeu o sentimento de culpa. Ele, que virou sócio de uma empresa de carros históricos, detalhou os dois acidentes e revelou ter sentido uma "radiação" ao se deparar com o acidente do brasileiro.

Eu me sinto envergonhado e com certa culpa por isso. [...] É difícil aceitar que alguém que salvou sua vida dois anos antes estava agora a poucos metros de mim, ferido gravemente. Eu tinha que deixar o carro e ir lá para ajudar de alguma maneira, mas os médicos não deixaram. Eu entendi que ele estava morrendo ou estava morto. Sou cristão, não praticante, e senti uma radiação enorme. Eu tive a sensação de que o Senna estava indo para o céu. Eu nunca tinha visto isso.
Erik Comas, ao UOL, em 2014

O que mais Comas falou?

UOL Esporte - Como você conseguiu dirigir o carro até o local do acidente com o Senna em Ímola mesmo com a pista interditada?

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Erik Comas - Foi uma grande confusão dentro da equipe no momento da paralisação. Havia uma incerteza. Não sabiam se era para eu seguir ou parar nos boxes. Eu continuei na pista e só fui entender a gravidade quando me deparei com o helicóptero no chão e médicos tentando salvar o Senna.

UOL Esporte - Você teve contato com o Senna antes da largada em Ímola?

Erik Comas - Eu encontrei ele rapidamente em um espaço reservado aos pilotos. Eu e ele não estávamos bem por tudo o que havia ocorrido nos treinos [morte de Roland Ratzenberger e grave acidente com Rubens Barrichello]. Eu pela primeira vez vi um Senna impactado, preocupado.

UOL Esporte - Por que você decidiu ficar fora da relargada após o acidente do Senna? Schumacher e Hakkinen, por exemplo, continuaram a prova e foram para o pódio.

Erik Comas - Os outros corredores não sabiam do estado do Senna, mas eu sabia que ele tinha morrido porque presenciei. Era impossível eu continuar depois de tudo o que eu vi. Não dava. Eu não tinha condições de correr depois de um fim de semana triste.

UOL Esporte - Como você define a atitude tomada por Senna, que se arriscou correndo na pista para desligar o seu carro?

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Erik Comas - O Senna era tão generoso que para ele foi um ato normal ter me salvado em 1992. Mas para mim ele é um herói. Havia líquido vazando no meu carro após a batida e um grande risco de explosão. O Senna sabia disso, mas agiu por instinto ao ir em direção ao meu carro. Hoje talvez eu não estaria aqui contando isso se não fosse o Senna.

UOL Esporte - Você lembra de detalhes do seu acidente em 1992?

Erik Comas - Eu não me lembro de nada. Minha memória só se recorda de segundos antes de eu perder o controle do carro. Fiquei desacordado, mas meu pé continuava no pedal. A chance de explosão era grande. Não vi o Senna me socorrendo. E quando os médicos chegaram, ele permaneceu ali perto para conferir se eu estava bem.

Homenagem recente

Comas voltou a falar sobre o brasileiro no último dia 21 de março, quando Senna completaria 64 anos. No Instagram, ele fez um longo texto simulando uma conversa com o brasileiro, classificando o tricampeão como "anjo salvador".

Hoje você celebraria 64 anos. O fato de eu ter sido o último a te cumprimentar, exatamente na curva do Tamburello, naquele maldito 1º de maio de 1994, não me parece um privilégio, mas também não uma desgraça. A última despedida foi dolorosa, muito dolorosa. Foi a vontade de Deus que mudou para sempre a minha vida. Nunca havia estado de frente para a morte antes, mas a tua simplesmente não me parecia possível; você, o número um; você, meu ídolo! Dez anos tiveram de passar antes que eu conseguisse falar sobre isso, e 20 antes de poder me reunir junto à tua sepultura.

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Hoje, após 30 anos, o dia em que eu te alcançarei se aproxima inexoravelmente, mas a cada dia que passa, sei bem que se ainda estou neste mundo, é apenas graças à tua coragem e à tua generosidade em 28 de agosto de 1992 em Spa, quando salvaste a minha vida. Eu, que ainda não havia completado 29 anos naquela época, hoje já dobrei a minha existência.

Neste 1º de maio de 2024, o mundo lembrará da tua morte, da tragédia, do choque. Para mim, nada mais foi como antes. Neste 1º de maio, vou pensar em você como sempre, desde o dia e hora em que fui tocado pela tua alma que partia; no entanto, sempre penso em você vivo, pois de alguma forma, desde 1992, você ainda faz parte do meu cotidiano. Um abraço imenso, querido Ayrton, meu anjo salvador. Com enorme carinho e para a eternidade. Erik

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