O dia em que Burle salvou Maya e voltou ao mar pra surfar onda de 30 metros
Há quatro anos, Carlos Burle viveu o dia mais intenso de sua carreira. Talvez o dia mais intenso de sua vida. Na cidade de Nazaré, em Portugal, o pernambucano caiu no mar com o objetivo de surfar mais uma onda gigante, o que ele faz muito bem desde a década de 1990 - é um dos grandes recordistas de ondas gigantes no mundo.
Antes de surfar aquela que é considerada por especialistas como a maior onda da história, Burle encarou uma situação de risco. Sua colega Maya Gabeira ficou desacordada no mar furioso e correu o risco de morrer.
A seguir, em depoimento ao ESPORTE(ponto final), Carlos Burle descreve em detalhes o que ocorreu em 28 de outubro de 2013, “um dia abençoado, um dia para sempre”, como ele mesmo define.
“Era um corpo morto e inerte”
O mais complexo do meu esporte é como treinar uma situação que nunca se repete e é tão rara. É o X da questão do surfe de ondas grandes. Como treinar para surfar uma onda que quase nunca acontece e que você vai surfar 10 ou 20 vezes na vida?
O momento mais marcante que eu vivi no esporte foi um episódio em Portugal, em Nazaré, onde surfei as maiores ondas da minha vida, junto à minha equipe de três atletas mais jovens. Mais experiente, eu tinha uma postura de líder.
Achei que seria mais um dia de ondas gigantes, mas quase perdi uma parceira. Eu a vi boiando de cabeça para baixo, já sem respirar. Ela desapareceu da minha vista duas vezes. Tomou uma onda e desapareceu. Eu dei a volta e ela tomou outra onda e desapareceu. Nessa segunda vez, pensei: “quando ela aparecer de novo, e se ela aparecer de novo, eu não vou mais perder de vista”.
Sou um cara muito emotivo, mas ao mesmo tempo muito pragmático no trabalho. Eu não pensei na Maya ali. Pensei num ser humano, que por um acaso era a Maya, minha amiga, mas era um ser humano que não estava respirando. É lógico que, sendo a minha parceira Maya e estando no meu time, existe uma relação. Independentemente disso, eu não podia deixar nada mais entrar no caminho. Se eu começasse a questionar essa relação, a família dela, a minha vida, onde isso iria levar, eu a teria perdido.
Era um corpo morto, inerte, pesando muito mais do que o comum e precisando ser resgatado o mais rápido possível. Eu já tinha perdido aquele corpo duas vezes, era um drama muito grande. Tive essa reação mais instintiva mesmo, me atirei na água, me agarrei ao corpo e não soltei, tomei ondas na cabeça e fiz tudo para tirá-la o mais rápido possível da água. Consegui. Arrastamos até uma situação mais protegida, onde iniciamos toda a parte de recuperação, de primeiros socorros.
Salvou a amiga e voltou ao mar
Quando eu vi que ela estava assistida, tinha paramédicos e estava indo em uma ambulância, no primeiro mundo, para o hospital, falei: “agora minha missão continua”.
Eu estava abalado psicologicamente, muito triste e querendo gritar um foda-se gigante para o mundo. Mas a minha vida não muda, as coisas são como têm que ser. Fico até com medo, porque sou muito forte nessas coisas. Minha esposa fala que parece que nada me abala. E não é verdade, porque as coisas me abalam e me emociono constantemente. Mas é como se eu já tivesse passado por aquilo. É como se eu entendesse o que é a vida. É morte, é renascimento, obstáculos e dificuldades. É o mundo da matéria, o mundo da carne.
O mundo é feito para você viver. Aprendi isso desde cedo, entendi que, se corresse dos meus medos, eles iriam aparecer lá na frente.
Quando voltei, estava todo mundo com aquela cara de “e aí, o que foi que aconteceu?”. Eu disse: “está tudo bem, a Maya está bem, já foi para o hospital. Estou aqui para ajudá-los”.
Falei para o Pedro Scooby e o Felipe Cesarano: “quem quer surfar mais?”.
O Felipe disse que não queria mais. O Scooby queria, porque tinha pego uma onda ruim. Dentro d’água, falei “passa para o meu jet ski que vou te puxar”.
A gente ficou trabalhando, mas já não era a mesma coisa. Tinha vento, corrente, parecia que o mar tinha enchido. Demorou um pouco pra eu pegar uma onda pra ele, porque estava complicado, mas consegui uma incrível e ele surfou a maior onda da vida dele. Foi impressionante a performance que ele teve.
Discussão com o parceiro
Saímos pra respirar um pouco. Depois voltamos pra água, dessa vez pra ele me puxar. Só que ele me puxou mal e decidi não ir na onda porque não tinha velocidade.
Aí começamos a discutir.
- Você me puxou errado. A gente treinou várias vezes, e você sabe que não é assim que funciona. Me puxe direito, senão vou chamar o Felipe Cesarano.
Chamei o Felipe, e o Pedro Scooby ficou louco.
- Não! Quem vai te puxar sou eu...
- Então puxa que nem homem, porque você é um garoto e, se quiser surfar essas ondas gigantes pro resto da sua vida, precisa ter atitude de homem.
Ele ficou me olhando e disse: “deixa que eu puxo”.
Não demorou muito e veio a onda gigante. Ele começou a me puxar numa velocidade muito grande. Como a gente tinha acabado de discutir, não falei nada.
De repente veio essa onda, que é mais rara, e eu via que era uma onda gigante. Resolvi não falar nada pra ele, entrar na onda nessa velocidade e aproveitar essa velocidade para descer na frente.
Fiz um drop que demorou uma vida, foi muito longo, e minha prancha ia numa velocidade que até então nunca tinha chegado. Ela quicava, quicava, quicava... Meu pé quase saiu da alça duas vezes, mas consegui manter o controle. E fiz essa onda, mas sem saber que era a maior onda do dia. Não tinha visto nada que tinha acontecido. Tinha ajudado o Felipe Cesarano e a Maya, ficado fora d'água um tempão, e não sabia que tinha sido a maior do dia. E fiquei feliz de ter surfado uma onda.
Fui resgatado, agradeci o Scooby, agradeci todo mundo. E estava preocupado com a Maya.
Quando cheguei ao porto, entendi que tinha sido a maior onda surfada no dia, a imprensa falando que tinha sido a maior onda de todos os tempos.
Maior onda da história
Não dá para perceber. Você sabe que o mar está muito grande, e que aquela foi uma das maiores ondas do dia. Mas não tem como medir no momento. Quem faz isso são cientistas, oceanógrafos. E é subjetivo também. Um oceanógrafo mediu num tamanho entre 32 e 35 metros.
Eu sou um cara que rezo muito, e nas minhas conversas com Deus sempre falei:
“Deus, não importa o tamanho da minha onda. Importa que você deu a vida da Maya de volta. Se eu tiver almejando uma quebra de recorde, um reconhecimento pela onda, por favor, me perdoe. A maior dádiva você deu naquele momento”.
Seria muita ignorância da minha parte se eu entrasse em alguma disputa de ego, em algum mal estar depois de tudo aquilo que nos foi presenteado. Foi um dia abençoado, um dia para sempre.
Naquele dia, me senti muito na mão de Deus. Se tivesse que dar errado, era o momento. Graças a Deus deu tudo certo, e tinha que acontecer daquela forma. Se o resultado fosse diferente, não estaria aqui hoje.
“Não tenho pretensão de controlar o mar”
Fui questionado em casa. Cheguei de viagem, com minha cabeça a milhão... É um trauma que vive comigo pro resto da vida, sei qual peso carreguei nas costas.
Milha mulher falou:
- Pensei que você tivesse mais controle do que estava acontecendo naquele momento. Você não só botou a sua vida em risco, mas a vida dos seus parceiros e a vida da nossa família.
- Amor, não tenho pretensão de controlar o mar. Faço isso porque eu amo, porque me preparo e me dedico.
Sei que quando vou pegar essas ondas está todo mundo indo embora. As autoridades estão fechando os portos, proibindo os barcos e as navegações. A gente vai para realizar o nosso grande sonho de surfar ondas grandes. E sabemos das consequências e dos riscos.
Ainda tive que encarar essa DR em casa. Faz parte da vida da gente. É uma vida cheia de emoções, e não troco por nada.
ESPORTE(ponto final)
A entrevista com Carlos Burle foi realizada pelo ESPORTE(ponto final), um canal produzido a partir de depoimentos de ídolos sobre os grandes momentos do esporte.
A cada semana, novos episódios serão lançados na página especial do ESPORTE(ponto final). E você também pode acompanhar nas mídias sociais: youtube.com/esportepontofinal e facebook.com/esportepontofinal.
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