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Esporte Ponto Final

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Opinião: Onde estão os verdadeiros gestores de esporte no nosso futebol?

Esporte brasileiro carece de dirigentes especialistas na área, com formação acadêmica adequada, cultura de resultados e vivência - Christof Koepsel/FIFA via Getty Images
Esporte brasileiro carece de dirigentes especialistas na área, com formação acadêmica adequada, cultura de resultados e vivência Imagem: Christof Koepsel/FIFA via Getty Images

Por Ary Rocco Jr. e Carlos Padeiro

05/01/2018 04h00

Quando um novo presidente assume o comando de um clube de futebol no Brasil, os torcedores respiram um ar de esperança, influenciados pelo discurso padrão de uma gestão mais profissional, com estratégias para pagar dívidas, elevar o faturamento e montar um time vitorioso e competitivo.

Mas como acreditar nessas mudanças se a governança dos clubes segue sempre o mesmo caminho de “conchavos” políticos que levaram tal presidente ao poder? Qual é a formação ideal desses dirigentes para administrar entidades esportivas da forma mais adequada?

Vamos tomar como exemplo um caso bem recente. O Santos Futebol Clube empossou, na virada de ano, seu novo presidente, José Carlos Peres. Formado em administração de empresas, com 35 anos de experiência no mercado financeiro e uma carreira bem-sucedida na sua área de atuação, Peres é sócio do clube há 40 anos. Passou pelo Conselho Deliberativo e atuou, direta ou indiretamente, nas gestões dos últimos três presidentes do clube.

Na última terça-feira, Peres anunciou os sete novos integrantes para compor, junto a ele e ao vice-presidente Orlando Rollo, o Comitê de Gestão, órgão colegiado responsável pela administração e gestão executiva do Santos, durante o seu mandato.

O que chama a atenção é que, dos sete escolhidos, nenhum deles tem formação acadêmica no esporte. São profissionais de outros ramos do conhecimento e de outras atividades econômicas, que pretendem colocar sua experiência a favor da equipe santista. Um é formado em Matemática e atua no ramo de tecnologia; outro é CEO de empresa especializada em produtos adesivos; um terceiro membro é diretor-presidente de uma das maiores transportadoras do Brasil. E por aí vai.

Nenhum deles estudou o esporte de forma profunda e acadêmica, nem exerceu atividade profissional remunerada de forma consistente em negócios ou atividades relacionadas ao universo esportivo.

O propósito deste artigo não é criticar a nova diretoria do Santos, que buscou, de alguma forma, trazer profissionais de reconhecida capacidade e competência para auxiliar na gestão do clube. Porém, e isso é importante salientar, a composição do Comitê de Gestão do clube alvinegro é reflexo de como o esporte é tratado no Brasil.

O que as pessoas que dirigem o nosso futebol insistem em não perceber é que o ambiente de negócios do esporte mudou drasticamente nas últimas duas décadas. Isso já é realidade amplamente difundida nos principais mercados esportivos do mundo, como Estados Unidos e Europa.

As novas tecnologias de comunicação, encurtando e globalizando o mercado; a aproximação das indústrias do esporte e do entretenimento; a formação dos grandes conglomerados de mídia; o surgimento das primeiras grandes holdings do universo do esporte, como a City Football Group, proprietária do Manchester City e de outras equipes de futebol espalhadas pelo mundo. Tudo isso transformou o esporte em um grande negócio, uma grande indústria, que por aqui ainda engatinha.

Com gestores competentes em outras áreas, mas que não vivenciam, em tempo integral, o esporte como sua atividade profissional, fica impossível aos nossos principais clubes competir no mercado internacional. Por profissional entenda-se não apenas receber salário, mas ser um especialista na área, com formação acadêmica adequada, cultura de resultados e vivência na área de atuação, no caso, o esporte/futebol.

Diante disso, a grande questão a ser respondida é: onde estão os verdadeiros gestores especializados em esporte no país?

Vamos discutir dois pontos:

1)    a ausência de cursos de especialização em gestão esportiva no Brasil;

2)    a estrutura arcaica de governança de clubes e federações, que favorece a preservação de cartolas amadores no poder.   

Formação do gestor esportivo

Ser bem-sucedido no ramo de tecnologia, ou de marketing, ou de contabilidade não credencia um empresário a ser um bom gestor esportivo. Trabalhar com o esporte é muito mais complexo do que o senso torcedor de cada um quer fazer parecer, principalmente quando a paixão está envolvida neste conjunto.

Gerenciar o esporte é completamente diferente do que administrar outros negócios. O esporte é constituído por uma ampla cadeia de aspectos culturais, sociais, políticos e econômicos, que poucos conseguem perceber. Entender a complexa rede de variáveis que envolvem o futebol brasileiro, por exemplo, não é tarefa fácil. Transformar isso, ao mesmo tempo, em resultado econômico, financeiro e esportivo é tarefa mais complexa ainda.

A formação do gestor especializado em esporte contempla, além de importantes conhecimentos de administração, como finanças, marketing e recursos humanos, um profundo entendimento do papel cultural e social do esporte para uma dada comunidade, cidade, estado ou país.

As agremiações esportivas, ao contrário das organizações empresariais de outros setores, espelham e representam a identidade e uma série de outros desejos e ambições da sua comunidade de torcedores e simpatizantes, hoje alçados em nível global à condição de consumidores e clientes.

Torcida do Barcelona vibra bastante durante o clássico com o Atlético de Madri - Manu Fernandez/AP Photo - Manu Fernandez/AP Photo
O "mais que um clube" para o torcedor da Catalunha tem um significado além do esportivo
Imagem: Manu Fernandez/AP Photo
O Barcelona, uma das equipes mais valiosas do mundo, se auto-intitula “mais que um clube”. O “mais que um clube” para o torcedor da Catalunha tem um significado que vai além do esportivo. O mesmo conceito, para os fãs do clube mundo afora, engloba a ideia de que as equipes montadas pelo Barça praticam algo além do simples futebol: a arte em si. Não por acaso, o Barcelona, em estratégia bem planejada, espalha sua filosofia pelo mundo nas inúmeras escolinhas que administra em diversos países.

Além disso, o esporte, e aqui reside outra peculiaridade difícil de ser entendida por aqueles que não são verdadeiramente gestores específicos da área, talvez seja o único segmento de atividade econômica em que suas organizações não apenas competem, mas também cooperam uma com as outras. Quanto mais equilibrado for o Campeonato Brasileiro, por exemplo, com mais equipes em condições de conquistar o título, maior será o interesse do público e melhor será para todas as agremiações e stakeholders envolvidos.

A forma simplória e pouco séria com que o esporte/futebol é tratado no Brasil impede o desenvolvimento de uma verdadeira indústria do esporte por aqui. Isso se reflete no baixo número de cursos de especialização em gestão esportiva.

Apenas para ilustrar, o Brasil não conta com nenhum curso em nível de pós-graduação “stricto sensu”, mestrado ou doutorado, com formação específica em gestão do esporte. O que existe são apenas linhas de pesquisa, em programas na área de Educação Física e Esporte ou Administração, para profissionais e pesquisadores que desejem estudar a área em profundidade. Em Portugal, por exemplo, temos ao menos cinco bons cursos dessa natureza. Nos Estados Unidos, “meca” do esporte mundial, são mais de 400 opções de cursos de mestrado e doutorado destinados à gestão do esporte.

O que vemos por aqui, como uma luz no fim do túnel para o crescimento acadêmico da área, é o desenvolvimento de entidades e associações que reúnem profissionais e pesquisadores para fomentar o estudo sério do esporte/futebol como área de conhecimento. Nesse sentido, é importante chamar a atenção para o trabalho realizado pela Associação Brasileira de Gestão do Esporte (ABRAGESP) e a Associação Brasileira dos Executivos de Futebol (ABEX).

Estrutura arcaica de clubes e federações

Outro aspecto que, acreditamos, precisa ser urgentemente discutido no Brasil é o modelo de gestão das nossas entidades esportivas, confederações, federações e clubes.

O modelo de associações privadas sem fins lucrativos, historicamente adotado pela esmagadora maioria dos nossos clubes de futebol, favorece a gestão amadora e pouco profissional. É chegada a hora de começarmos a discutir, de forma mais séria e contundente, alterações nesse modelo, sinônimo de má gestão (para não dizer de corrupção no esporte).

A Lei Pelé, de 1998, começou timidamente a discussão. Hoje tramita em Brasília o Projeto de Lei da Sociedade Anônima do Futebol (SAF), de autoria do deputado Otávio Leite (PSDB-RJ). Ideias não faltam. Para o crescimento do futebol brasileiro e o surgimento de uma verdadeira indústria do esporte no Brasil, precisamos que o modelo atual de propriedade, e consequentemente de gestão, seja rapidamente alterado.

Nos Estados Unidos, as grandes ligas (NFL - futebol americano, MLB - beisebol, NBA - basquete e NHL - hóquei no gelo) são empresas privadas, com suas franquias; na Inglaterra, os clubes de futebol são organizações privadas que operam o negócio futebol; na Espanha, o modelo associativo de Barcelona e Real Madrid conseguiu equilibrar os interesses dos sócios com uma profunda profissionalização do negócio futebol.

Thomas Müller e James Rodríguez comemoram segundo gol do Bayern contra o Borussia Dortmund - Christof Stache/AFP - Christof Stache/AFP
Adidas, Audi e Allianz são, juntas, donas de 25% do Bayern, clube com fins privados
Imagem: Christof Stache/AFP
Na Alemanha, o futebol dos principais clubes virou uma empresa com fins privados à parte do clube social, com participação na gestão dos patrocinadores e da sociedade civil. Em Portugal, surgiram as Sociedades Anônimas Desportivas (SADs). Na América Latina, Colômbia e Chile já estão vendo seus clubes mudarem para Sociedades Anônimas (SAs).

Precisamos urgentemente encontrar um modelo que respeite as particularidades culturais e sociais do esporte/futebol em nosso país e que permita às agremiações melhorar suas condições de competitividade financeira, econômica e esportiva no mercado global do futebol e do entretenimento. É necessário que criemos, de fato, uma Indústria do Esporte no Brasil.

Isso só será possível com bons gestores que compreendam, de forma acadêmica e profissional profunda, o segmento de mercado em que atuam, suas nuances e particularidades. Caso contrário, continuaremos vivendo de paixão. E a paixão, em geral, é a principal inimiga das decisões gerenciais.

Ary José Rocco Júnior é presidente da Associação Brasileira de Gestão do Esporte (ABRAGESP) e professor pós-doutor da Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo (EEFE/USP).

Carlos Henrique de Souza Padeiro é professor mestre na pós-graduação da UniFMU e da Universidade Anhembi Morumbi e membro do Conselho Fiscal da ABRAGESP.

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