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Rei dos ralis no Brasil já viu de tudo no Dakar, mas segue linha "zen"

Patrick Mesquita

Do UOL, em São Paulo

29/12/2014 06h00

Sentado em um restaurante na bela região de Puerto Madero, em Buenos Aires, Jean Azevedo está tranquilo. O papo a sua volta é ruidoso e muda de tema a cada cinco minutos, mas ele parece não estar nem aí para o que acontece ao redor. Abre um sorriso daqui, solta uma ou outra palavra de lá. Tudo bem comedido, nada demais. A impressão é de que se está diante de um sujeito meio desligado. Pura impressão. Basta falar de moto que o homem se transforma e o personagem aparentemente tímido começa a falar sem parar. 

“Aqui eu estou relaxado, tranquilo e na corrida eu estou focado. Estou com adrenalina, mas mantenho a calma. Fora da profissão eu não sou tão perfeccionista, até deixo as coisas mais largadas. Mas quando eu estou no trabalho eu sou exigente comigo e com quem trabalha comigo porque quero fazer da melhor forma”, conta o piloto em entrevista ao UOL Esporte.

Jean está na Argentina para ser apresentado oficialmente como piloto da novata Honda South America Team, equipe que defenderá em sua 17ª participação no Rali Dakar, o mais importante do mundo e que passará por Argentina, Bolívia e Chile em janeiro de 2015.

Aos 40 anos de idade e com 28 de carreira, ele não demonstra mais o entusiasmo de um garoto que vai se jogar no meio do deserto pela primeira vez. O papo é mais sério, mais técnico, de quem não está ali pela aventura, mas sim por um objetivo: ser campeão.

Não que faltem conquistas para o brasileiro. Ele já é dono de cinco troféus do Rali dos Sertões, mas a perseguição pelo Dakar é algo que o faz seguir em frente, independentemente de ser um “quarentão”.

“Esse ano será mais difícil porque os dias serão longos. Para mim é uma equipe nova. Corri pela Honda Brasil e agora pela South America. É um trabalho que está sendo iniciado e vai colher frutos lá na frente. É uma equipe que tem muito para crescer”, projeta como quem confia que tem mais uns 20 anos pela frente.

O jeitão mais tranquilo e visivelmente experiente fica mais explícito poucas horas mais tarde, já no evento de lançamento da Honda South America. Enquanto os companheiros de equipe, o argentino Javier Pizolitto e o chileno Daniel Augut, esbanjam sorrisos e encarnam a imagem de atletas de esportes radicais, com cabelos grandes e tatuagens gigantescas pelos braços, Jean não demonstra muita empolgação. Responde todas as perguntas sem subir o tom de voz e mantém o olhar meio distante. Para ele, tudo não passa de uma espécie de preparação psicológica para os dias desgastantes de prova.

“Na verdade, você tem que ser calmo para tomar decisões certas. É um padrão que adotei, sempre calmo. Eu não entro nessa pilha, fico na minha. Quando eu estou na competição, sou mais individualista. Quando eu estou na competição fico mais isolado, talvez por isso não tenho esse problema com ninguém, eu não fico na roda. Estou ali para buscar o resultado, não estou para conversar”, afirma.

Mesmo mais distante, ele é extremamente respeitado por sua experiência e visto pelos companheiros como um mentor importante na hora do Dakar.

“Ajuda a quantidade de experiência, dar um conselho, uma opinião. Ajuda muito a equipe, é um piloto que conhece muito. Parece que ele não é brasileiro, sempre sério. Parece mais japonês. Ele se concentra muito, pensa muito e o trabalho mental dele é incrível”, afirma o chefe da HSA Team, Mariano Casarioli.

Mas o que faz uma pessoa seguir tantos anos dentro de uma competição longa e desgastante? Bom, para entender melhor a paixão de Jean, e principalmente seu jeito mais tranquilo, é preciso voltar lá no final dos anos 80. Nascido em São José dos Campos, interior de São Paulo, ele é irmão de André Azevedo, piloto que disputou o Rali Dakar por longos anos na equipe Petrobrás. Logo, o vício por motos veio desde cedo.

A primeira moto veio aos cinco anos de idade, a primeira competição aos 12. Tudo com o apoio da família até se destacar e ganhar seus próprios patrocínios. Já o primeiro Dakar foi em 1996, quando completou 18 anos. Se dependesse dele seria bem mais cedo, mas a competição exige carteira de habilitação. Logo no ano seguinte ele conseguiu algo que parecia improvável para um brasileiro: terminou em quinto lugar na classificação geral. Tudo foi tão rápido que Jean nem teve aquela fase do futebol. Outros esportes? Só se for para melhorar o físico e o psicológico para uma corrida.

Hoje, ele possui uma equipe com preparadores, fisioterapeutas e até psicólogos que ajudam em seus treinos. O foco é tanto, que o brasileiro não pensa duas vezes antes de se definir como um sujeito perfeccionista, o bom “chato”, uma espécie de Rogério Ceni do rali. Mas a alusão não emplaca. Jean não gosta de futebol, logo nem sorri quando comparado ao goleiro são-paulino.

“A modalidade que eu faço é de risco. Então, depende de mim. Se eu for mal preparado, posso me acidentar. Se eu vou para uma prova super bem preparado, mas chegando lá eu não estudo o caminho no dia anterior e todos os detalhes da moto, eu posso ter um acidente. Acho que foi isso que me fez assim. Envolve resultado e segurança”, define.

Claro que Jean já se sentiu desanimado ao longo desses 28 anos de carreira. Assim como muitas modalidades no Brasil, o piloto esbarrou na falta de patrocínios para um maior desenvolvimento e chegou a passar um longo período afastado das motos tentando redescobrir a motivação de competir.

O jeito para permanecer na velocidade foi tentar a vida nas competições como piloto de carros em 2008. Os resultados não foram tão expressivos e novamente ele foi barrado na falta de investimentos. O retorno para as motos veio apenas em 2012. Mais experiente, o brasileiro tentará mais uma vez fazer frente a nomes como Marc Coma, tetracampeão do Dakar e franco favorito para este ano.

“O rali é uma superação diária. Eu tenho muitos anos de superação. Tem momentos em que eu não achava que conseguiria, mas aquilo sempre empurra seu limite para cima. Você não quer desistir. Se eu já passei por isso, posso passar novamente. O rali de longa duração, por mais que você fique p... na hora, você volta ao Brasil e uma semana depois você começa a treinar novamente”, promete.

Tiros, acidentes e quase 24 horas no deserto

Por falar em segurança, Jean tenta fazer o máximo para minimizar os possíveis estragos de um Dakar, que vão desde físicos até psicológicos. Nesses 17 anos ele viu de tudo na competição. Já viu acidentes que mataram pilotos acontecendo diante de seus olhos, correu sabendo que as guerrilhas na África metralharam um piloto e já passou tempo abandonado no deserto.

“Já vi dois que morreram, tinha acabado de acontecer. Já vi gente caindo na minha frente. Cheguei em acidente que o piloto tinha morrido. É obrigado a parar para o socorro. Os jovens sentem mais. Eu evito porque é um colega seu e poderia ser você. Eu chego e não olho, não quero saber o que aconteceu, não quero ver imagem. Tem gente que tira foto e eu não quero olhar. Faço o que preciso, mas não fico gravando o episódio porque a carga é muito negativa”, conta.

O pior caso aconteceu em 1998, quando o Dakar ainda acontecia na África (desde 2012 acontece na América do Sul).  A moto quebrou no meio do deserto e o brasileiro precisou esperar o chamado “caminhão vassoura” passar para resgatá-lo. O problema é que o bendito carro só apareceu quase 24 horas depois, o que deu início a uma verdadeira batalha psicológica.

“Na África você tinha que esperar o caminhão vassoura passar. A moto quebrou meio-dia e ele só passou mais ou menos seis da manhã do outro dia. Eu tinha água e comida porque você é obrigado a levar, mas é tensão. Até as 18 horas estava passando a prova, você vê passando carro, caminhão. Depois, o intervalo já vira um piloto a cada hora. Mais tarde já não passa ninguém e você começa a viajar: ‘Será que o caminhão vai passar mesmo?’. Porque no deserto não tem nada. Você está sozinho, refém. Por mais que você saiba que tem controle. Caso ninguém me resgate tem a baliza, que emite um sinal para a central na França, mas você viaja. Você fica muitas horas parado. Já tive quebras, parei. Mas ficar ocioso é terrível. De dia o sol e de noite as estrelas”, revela.

Nem isso fez o brasileiro pensar em desistir. Uma semana depois ele já estava novamente treinando na pista de motocross em São José dos Campos, onde tira aproximadamente um mês e meio de férias durante o ano. O resto do tempo é dedicado às preparações para o Rali dos Sertões e o Dakar.

“Tenho dois períodos de folga, do meio de janeiro até o meio de fevereiro, quando termina o Dakar. Depois preparo para o Sertões, em julho. Depois, pego 15 dias em agosto e volto novamente para o Dakar”, afirma.

Dá para descansar? Para ele, sim. Jean é casado há quase 15 anos e pai de dois filhos, Bruno (7) e Mariana (10). Quando está com os familiares ele evita pensar nas competições e garante ter uma vida tranquila, mas nem sempre é possível, já que a moto está no sangue dos Azevedo.

Parar? Nem pensar. Se não der dessa vez, sem problemas. Ele vai até onde der. Neste exato momento, Jean deve estar sentado em algum lugar de São José dos Campos, tranquilo e sem falar demais. Pelo menos até alguém perguntar a ele sobre motos. Aí já sabem o que vai acontecer.