Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Táticas pega-turista e preços irreais: o Mercadão precisa de um contragolpe
Entre as minhas lembranças de infância mais antigas estão algumas que vivi na Rua da Cantareira, esquina com a Rua Paula Souza, na zona cerealista de São Paulo, onde minha família morava quando nasci. Eu chutava bola no estacionamento do meu pai, olhava com desconfiança para as peças de frios e queijos expostas nos laticínios, me assustava com o vaivém de carregadores pelo meio da rua empurrando aqueles carrinhos de madeira em forma de L cheios de caixotes de batata, cebola e alho.
E, obviamente, faz parte dessas boas memórias o Mercado Municipal de São Paulo, onde compramos os dois periquitos — naquela época, o Mercadão vendia toda sorte de animais vivos: passarinho, galinha, pato, coelho, peru... —, o alpiste, as cigarrilhas do meu avô, o café moído na hora e minhas amadas barras de doce de leite.
Refiro-me ao Mercadão no finzinho dos anos 1970, quando não possuía ainda o apelo turístico-gastronômico que passou a ter depois que foi reformado em 2004, na gestão da prefeita Marta Suplicy, quando ganhou o mezanino no qual enfileiram-se oito bares e restaurantes.
Pelo que me lembro, o Mercadão e seu entorno — que o diga a Rua Santa Rosa e seus armazéns — sempre foram uma deliciosa e mal-cuidada bagunça visual, aromática, sonora, urbana, dada sua proximidade com a região da Rua 25 de Março onde, já nos anos 1980, eu passaria a frequentar a Galeria Pajé para comprar os cartuchos do meu Atari 2600. Havia o Treme-Treme enfeiando a paisagem e os restos de alimento descartados pelas ruas ao redor.
Foi a partir da bem-vinda reforma de 2004 que o Mercadão passou a entrar merecidamente, pra valer, no roteiro turístico-gastronômico de qualquer turista em visita à cidade.
Não havia mais a ala de víveres, para minha tristeza, mas o hype do mezanino acabou por chamar a atenção dos visitantes para as coloridas barracas de frutas, os açougues, as peixarias, os maravilhosos boxes de produtos importados, como a Banca do Ramón e o Empório Chiapetta, e para os bares mais tradicionais localizados no térreo, notadamente o Bar do Mané e o Hocca Bar, que passaram a conviver com filas que passaram a se estender pelos corredores do local graças à demanda pelos famosos sanduíche de mortadela e pastel de bacalhau.
Sem exagero, por seu porte, localização e perfil de interesse, o Mercado Municipal Paulistano pode ser comparado a alguns dos principais mercados do mundo, ao menos dos que conheço, como o Mercado Central de Belo Horizonte, o Mercado Público de Porto Alegre, o da Ribeira (em Lisboa), o de La Boquería (em Barcelona) e o Montevidéu, para citar alguns, nos quais a mescla de boxes de produtos locais e de opções para fazer uma refeição é excelente.
Mas eis que nesta semana somos alertados para dois golpes que vêm ocorrendo no Mercadão: o "golpe da fruta" e o "golpe da mortadela". O primeiro provocou a interdição de três boxes de frutas denunciados por oferecer degustação grátis de frutas aos clientes, sem revelar o preço do quilo e de superfaturar o valor — estamos falando de cifras que chegam a R$ 1.200 — após o freguês fazer a compra. Se o incauto não topar, é intimidado e xingado.
Já o golpe da mortadela envolve, segundo o Procon, justamente alguns bares que vendem o sanduíche de mortadela: basicamente, os bares anunciam que a mortadela usada nos sanduíches é da marca C mas, na verdade, seria de outra, já que os fiscais não encontraram nenhuma peça da referida marca no estoque, nem nota fiscal que comprovasse a compra do produto; apenas a mortadela já fatiada.
Por falar em mortadela, ou, melhor, em sanduíche de mortadela, eu próprio detectei uma espécie de tabelamento informal no preço dessa commodity em vários bares do Mercadão quando lá estive, anteontem. Notei a mesma situação ao ver os preços o pastel de bacalhau.
Por exemplo, na Lanchonete Tigrão, o sanduba de mortadela custa R$ 40 e o pastel de bacalhau, R$ 33; na lanchonete Irmãos Gomes, que também tem banca de frutas e foi acusada por uma cliente de praticar o golpe da fruta, o sanduba sai pelos mesmos R$ 40 e o pastel de bacalhau, R$ 30; no Elidio Bar, no mezanino, o sanduba segue o preço dos concorrentes e o pastel de bacalhau vale R$ 36. O Brasileirinho não faz pastel de bacalhau grande, mas tem o seu sanduba de mortadela: custa R$ 35. Já o Mortadela Brasil cobra R$ 43 pelo sanduíche e R$ 39 pelo pastel, embora venda versões menores e mais baratas desses itens. Já no Salada Paulistana encontrei o preço mais amigável para o sanduíche: R$ 34; o pastel de bacalhau, por sua vez, sai por R$ 32.
Convenhamos, cobrar R$ 40 por um sanduíche de mortadela e ainda enganar tanto o cliente quanto o fornecedor do embutido é o fim da picada. Só falta agora descobrirmos que o pastel é recheado de panga em vez de bacalhau.
De golpe em golpe, o Mercado Municipal Paulistano vai se transformando cada vez mais num lugar pegar-turista — não, não esqueci de mencionar o fato de que o visitante mal consegue avançar cinco passos sem ser assediado por comerciantes mais folgados.
É a mesma lógica do aproveitador que cobra R$ 50 por uma vaga de estacionamento na Praia de Cambury num fim de semana de verão ou do cambista que oferece um ingresso para o jogo do meu Tricolor pelo triplo do preço oficial.
É preciso haver um contragolpe, que envolva a Mercado SP, empresa que tem a concessão para administrar o espaço, para que puna os maus comerciantes; que os comerciantes mudem a postura diante do visitante; e que o visitante tenha garantido o seu direito de escolha, sem ser constrangido. Ou continuaremos a enriquecer os aplicativos de delivery.
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