Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Em protesto contra a invasão russa, cancelo o bolovo com caviar de R$ 135
Como se já não bastassem as consequências intrínsecas da invasão militar russa na Ucrânia — refiro-me às baixas dos soldados e oficiais mortos, tanto do lado dos invasores quanto dos invadidos (segundo a agência de notícias AFP, são ao menos 6 mil militares do lado russo).
Como se já não bastassem as consequências humanitárias que recaem sobre os civis diretamente afetados pela invasão: do lado ucraniano, as crianças e os adultos mortos, a população que se vê obrigada a se refugiar nos países vizinhos, as mulheres e crianças enlutadas pelos homens de 18 a 60 anos que foram impedidos de deixar o país para lutar e que morreram na guerrilha; do lado dos russos, as mães, a prole e as companheiras dos militares convocados a invadir e que morreram e ainda vão morrer durante a invasão.
Como se já não bastassem as consequências econômicas das sanções impostas pela comunidade internacional à Rússia.
Como se já não bastassem as consequências econômicas das sanções à Rússia sobre o preço do petróleo no resto do mundo, da Suíça — onde o litro da gasolina passou esta semana a custar o equivalente a R$ 13 — ao Acre, em cujos postos já se viu o preço do combustível ultrapassar os R$ 10 ontem.
Como se já não bastasse termos tido de acompanhar o bizarro caso das bobagens ditas pelo deputado Mamãe Falei a respeito das mulheres ucranianas (o que veio depois, como a desistência dele em se candidatar ao governo e a crise que causou no MBL, forma um combo de boas notícias).
Como se já não bastasse tudo isso, a gastronomia brasileira, em especial a paulistana, resolveu declarar guerra ao estrogonofe e ao Moscow Mule, o que levou o jornalista Walterson Sardenberg a indagar se haveriam de cancelar também o White Russian, aquele coquetel feito com vodca, licor de café, espuma de creme de leite fresco e gelo, e que era o predileto do protagonista vagal de "O Grande Lebowski", cultuado filme de 1998 dirigido pelos irmãos Coen e que tem Jeff Bridges no papel de Mr. Lebowski. (Até o momento consta que o White Russian está preservado, Berg.)
Vou tentar explicar.
Na quarta-feira, 9 de março, a chef Janaina Rueda, proprietária do ótimo Bar da Dona Onça, no centro de São Paulo, havia retirado do cardápio o seu famoso e saboroso estrogonofe, um dos itens mais pedidos na casa, em protesto contra a invasão da Rússia na Ucrânia.
A sanção ao estrogonofe gerou críticas e maledicências, o que levou Janaina não só a mudar de ideia como a fazer melhor: ela decidiu reverter toda a receita com a venda do estrogonofe, de quinta, 10, ao dia 31 de março, para a ONG Pão do Povo da Rua, que diariamente distribui pães e bolos aos sem-teto na cidade.
Ao longo da semana, ao menos mais dois restaurantes — o Piselli, nos Jardins, e o J1, no Shopping Villa-Lobos — e dois bares, Adega Santiago e Taberna 474 resolveram embargar o Moscow Mule, mudando o nome do drinque para Kiev Mule (no Piselli), Heiwa Mule (no J1).
Na Adega Santiago e na Taberna 474, o drinque virou, respectivamente, Ucranian Mule e Peace Mule e a vodca russa que era usada para fazer o drinque foi trocada por uma marca sueca.
Uma primeira ironia nessa guerra requentada é que o Moscow Mule hoje em dia não tem nada a ver com a Rússia, ao contrário do estrogonofe.
De acordo com o saudoso jornalista Saul Galvão, no livro "A cozinha e seus vinhos" (Editora Senac São Paulo, 1999), e citando o Dictionnaire de Cuisine et de Gastronomie Larousse, o "bouef stroganov" nasceu nas cozinhas da importante família Stroganov, da cidade de Novgorod, no século 18, e "acabou se tornando um dos símbolos da culinária na Rússia".
Já o jornalista e especialista em coquetéis Robert Simonson, escreveu no The New York Times, em 2016, que a história da origem do Moscow Mule "é um conto de puro capitalismo". Como diz a lenda, John Martin, presidente da Heublein Co, uma pequena empresa baseada no estado americano do Connecticut, tinha comprado nos anos 1930 os direitos da vodca Smirnoff, mas não conseguia fazer as vendas do "uísque branco" decolarem.
Eis que, em 1941, Martin se encontra com Jack Morgan, dono do pub Cock 'n' Bull na Sunset Strip, em Los Angeles, que havia produzido uma cerveja de gengibre, que também havia tido baixa aceitação pela clientela. Da necessidade dos dois empresários e da ideia de misturar as duas bebidas em um coquetel surgiria a partir dali o Moscow Mule.
Algumas versões da história, diz Simonson, incluem um terceiro personagem, vendedor de mais um produto encalhado, no caso, canecas de cobre e um outro local de origem do drinque: o Chatham Hotel, em Nova York.
Também é controversa, para não dizer irônica, a discussão acerca da origem da vodca, reivindicada por Rússia e Polônia. Segundo Simon Difford, criador do excelente site de coquetelaria Difford's Guide — que tem uma versão brasileira abastecida pelo publicitário Marcelo Sant'Iago —, os poloneses já produziam uma espécie de destilado desde o fim do século 8, a partir de vinho ou de hidromel congelados. Os russos passaram a fazer o mesmo no século seguinte mas registraram a primeira destilaria em 1174.
Terceira ironia: segundo Difford, foi um diplomata britânico quem descreveu a vodca como bebida nacional russa no século 14. E, sete séculos depois, a marca mais vendida de vodca no mundo, a já citada Smirnoff, pertence a uma multinacional britânica, a Diageo.
Enquanto isso, num dos bares do novíssimo hotel Rosewood, na Bela Vista, o bolovo com caviar (russo, espera-se) segue sendo vendido a R$ 135. Para mim, está cancelado.
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