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Histórias do Mar

REPORTAGEM

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O naufrágio que trouxe de volta uma onda mitológica para os surfistas

Evgeny Ivkov/@Surfinglens
Imagem: Evgeny Ivkov/@Surfinglens

Colunista do UOL

02/10/2021 04h00

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O encalhe acidental de uma barcaça de carga, que desprendeu do rebocador e foi dar na praia da pequena ilha de Nusa Lembongan, vizinha à Bali, na Indonésia, na semana passada, está sendo comemorado pelos surfistas do mundo inteiro como um "fato extraordinário", que trouxe de volta um "acontecimento histórico".

Explicando melhor: 50 anos atrás, no início dos anos de 1970, um pequeno navio encalhou naquele mesmo local e o seu casco criou uma espécie de barreira no mar que, em vez de atrapalhar, aperfeiçoou as ondas do local.

Com o casco do navio interferindo nas ondulações que chegavam à praia, as ondas de Nusa Lembongan passaram a gerar tubos perfeitos, que se tornaram mitológicos entre os surfistas da época.

"Tubos irados"

onda Shipwreck - Evgeny Ivkov/@Surfinglens  - Evgeny Ivkov/@Surfinglens
Imagem: Evgeny Ivkov/@Surfinglens

Batizado de "Shipwreck" ("Náufrágio", em português, numa alusão ao navio ali encalhado para sempre), o local ("pico", no linguajar dos surfistas) passou a frequentar os sonhos de dez em cada dez surfistas e ficou ainda mais famoso depois que, em 1982, foi exibido no primeiro filme de surf feito na Indonésia — hoje um dos países mais idolatrados pelos surfistas do mundo inteiro.

Mas, com o passar do tempo, o velho navio foi apodrecendo no local e parou se cumprir a função de modelar as ondas da praia.

Em seguida, desapareceu completamente da paisagem, para decepção dos jovens surfistas, que não viveram aquela época e cresceram ouvindo apenas velhos relatos dos "tubos irados" de Shipwreck.

E assim ficou por décadas.

Até que, na semana passada, a história caprichosamente se repetiu — e o encalhe da barcaça no mesmo local trouxe a perfeição de volta às ondas da praia de Nusa Lembongan.

Os surfistas vibraram: Shipwreck - quem diria? - estava de volta!

Onda Shipwreck - Evgeny Ivkov/@Surfinglens  - Evgeny Ivkov/@Surfinglens
Imagem: Evgeny Ivkov/@Surfinglens

Presente que veio do mar

"Foi como voltar no tempo", comemorou o surfista indonésio Komo Wilson, que sempre morou em Nusa Lembongan, mas nunca havia experimentado as ondas mais famosas da ilha. "De repente, tudo aquilo que eu cresci ouvindo dos surfistas mais velhos se materializou na minha frente. O naufrágio foi como um presente que veio do mar".

Rapidamente, a boa nova se espalhou feito espuma de onda entre as comunidades mundiais do surfe.

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Imagem: Evgeny Ivkov/@Surfinglens

Ondas só para eles

Mas, como nem tudo é perfeito, as restrições de entrada na Indonésia, geradas pela pandemia, impediram que surfistas estrangeiros já começassem a chegar à pequena ilha, que é separada da ilha de Bali apenas por um estreito.

No acidente da semana passada, a barcaça, carregada com materiais e equipamentos que seriam usados na construção de um porto turístico na ilha, encalhou no exato ponto do encalhe anterior, após avançar até a zona de arrebentação das ondas pelo mesmo sulco que o velho navio havia aberto na bancada de corais que margeia a praia, e que é fundamental para a sobrevivência dos pescadores de Nusa Lembongan.

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Imagem: Evgeny Ivkov/@Surfinglens

"Graças aos deuses, a barcaça não contém óleo nem combustível que possa poluir os corais, porque dependemos muito deles para ter o que comer", disse o mesmo surfista Komo Wilson, que, esta semana, também participou de uma cerimônia religiosa na ilha (na região de Bali há cerimônias para tudo...), a fim de abençoar os trabalhos de remoção da embarcação da bancada de corais da praia — porque a expectativa é que, ao contrário do navio que dali nunca mais saiu, a barcaça possa ser desencalhada, para decepção dos surfistas em geral.

"Será uma pena perder de novo esses tubos incríveis, mas a prioridade é preservar a saúde da bancada de corais da nossa ilha", explica o dividido surfista Komo Wilson.

Mas, até que isso aconteça, vamos aproveitar ao máximo as ondas que esta incrível coincidência trouxe de volta", diz.

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Imagem: Evgeny Ivkov/@Surfinglens

Surfistas divididos

Em Nusa Lembongan, onde a má notícia do encalhe de uma embarcação na praia virou motivo de euforia para os surfistas, o ditado que diz que um raio não cai duas vezes no mesmo lugar continua valendo.

Mas, agora, eles também sabem que duas embarcações podem, sim, encalhar no mesmo local.

E isso foi bom demais", dizem os surfistas da ilha, que não sabe se ajudam a tirar a barcaça de lá ou rezam para ela nunca mais sair dali.

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Imagem: Evgeny Ivkov/@Surfinglens

Ondas fenomenais

Esta não foi a primeira vez que ondas da Indonésia geram fenômenos estranhos.

Em abril deste ano, nas proximidades do mesmo estreito que separa Bali de Nusa Lembongan, o submarino da Marinha da Indonésia KRI Nanggala-402 afundou e matou todos os seus 53 ocupantes também em consequência da ação de ondas — só que ondas submarinas, um fenômeno ainda mais raro, que pode ser compreendido aqui.

Em outra ocasião, no entanto, o tsunami de 2004 que atingiu a Indonésia produziu um fato bem mais curioso: arrastado pela enxurrada, um barco foi parar sobre o telhado de uma casa, e graças a isso 59 pessoas foram salvas — clique aqui para saber como.

Nossas ondas são mágicas", dizem, agora mais do que nunca, os surfistas de Nusa Lembongan.

* As fotos que ilustram esta reportagem foram cedidas pelo fotógrafo Evgeny Ivkov, que comanda o Instagram @Surfinglens