Topo

Histórias do Mar

REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Funeral no fundo do mar: cemitério marinho nos EUA inspira versão no Brasil

Cemitério no fundo do mar - Neptune Society
Cemitério no fundo do mar Imagem: Neptune Society

Colunista do UOL

23/10/2021 04h00

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

É uma ideia que, a princípio, parece maluca para todo mundo. Até para quem teve a ideia de concebê-la.

"Nós sabemos que pode parecer estranho...", diz o site da própria empresa que teve a ideia de criar um dos mais bizarros empreendimentos dos últimos tempos: o primeiro cemitério submarino do mundo, o Neptune Memorial Reef, que já existe no mar de Miami há 14 anos.

E que, para surpresa geral, não para de crescer.

Na pandemia, com o aumento brutal de mortes pela covid-19 nos Estados Unidos, o negócio prosperou ainda mais.

Cemitério no fundo do mar - Neptune Society - Neptune Society
Imagem: Neptune Society

Tanto que as iniciais 1.500 "sepulturas estilizadas" previstas no projeto original já estão quase todas ocupadas e está em curso uma ampliação de 4 mil vagas, para quem quiser passar a eternidade debaixo d´água, cercado de peixinhos coloridos.

12 metros de profundidade

Mas, como seria de se esperar, o Neptune Memorial Reef (algo como "Recife Monumento Netuno") não é um cemitério nada convencional.

A começar pelo fato de que só aceita corpos cremados, já que seria impensável enterrar cadáveres no fundo do mar.

Mas, mesmo a forma como os restos mortais dos clientes são depositados na água é bem, digamos, original — para não dizer ainda mais bizarra.

Cemitério no fundo do mar - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

As cinzas dos corpos cremados são misturadas a uma massa de cimento que dará formas a figuras, como conchas e estrelas-do-mar, ou colunas gregas (todas com plaquinhas, com os nomes dos mortos), já que o cemitério tenta ser uma "representação artística" da mitológica cidade perdida de Atlântida — razão pela qual grandes estátuas de leões guardam a entrada do estranho memorial, no fundo do mar.

Cemitério no fundo do mar - Neptune Society - Neptune Society
Imagem: Neptune Society

E tudo isso a 12 metros de profundidade, a cerca de cinco quilômetros da costa de Miami.

Custa a partir de R$ 7 mil

Quem teve a ideia de substituir sepulturas convencionais em terra firme por figuras de concreto de gosto duvidoso no fundo do mar foi a Neptune Society, uma empresa de cremação da Florida.

Os argumentos para convencer as famílias sobre as vantagens do singular empreendimento variaram entre "fazer parte de algo novo", a "perpetuar o ciclo da vida", através da formação de "um recife artificial para fomentar a vida marinha" — o que, segundo a empresa, vem acontecendo de maneira evidente.

De acordo com a Neptune Society, o seu exótico cemitério submerso é hoje o "mais prolífico" recife artificial da Flórida e aumentou barbaramente a população de seres marinhos na área, "atraídos pelos corais e minúsculos seres e sedimentos que se desenvolvem nas peças submersas".

Cemitério no fundo do mar - Neptune Society - Neptune Society
Imagem: Neptune Society

É uma forma de gerar vida após a morte. Uma viva cidade dos mortos", resume a empresa, que cobra a partir de R$ 7 mil por uma vaga no seu cemitério submerso.

Visitas só de mergulhadores

Cemitério no fundo do mar - Neptune Society - Neptune Society
Imagem: Neptune Society

Nos funerais, os familiares podem mergulhar para acompanhar a cerimônia de fixação das figuras ou apenas seguir o cortejo de barco, podendo, depois, visitar os seus entes queridos sempre que quiserem, já que o cemitério submarino é aberto a qualquer pessoa — sobretudo curiosos mergulhadores de fim de semana, sempre em busca de algo novo para explorar no fundo do mar.

Mesmo que seja um cemitério.

Um dos mais emblemáticos "moradores eternos" do "primeiro mausoléu submarino do mundo", como a empresa define o seu empreendimento, é o americano Bert Kilbride, "o mais velho mergulhador de naufrágios do mundo", de acordo com o Livro dos Recordes, que morreu recentemente, aos 94 anos de idade.

Para ele, um local, sem dúvida, bem adequado.

O cemitério que afundou no mar

Mas, a despeito do que diz a dona do Neptune Memorial Reef, o esquisito mausoléu submerso de Miami não é o único local do mundo a ter um cemitério submarino.

Do outro lado do mundo, nas Filipinas, também existe um. Só que acidental.

Cemitério no fundo do mar - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

Em 1871, a erupção do vulcão do Monte Vulcan, seguido por um violento terremoto, destruiu completamente a antiga capital da Ilha Camiquin, varrendo tudo para o mar. Inclusive o único cemitério ilha, que virou um amontoado de cruzes de pedaços de sepulturas no fundo do mar.

Cemitério no fundo do mar - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

Hoje, no local, que ficou mundialmente conhecido como o "cemitério naufragado", existe uma solitária cruz no meio do mar.

Ainda assim, bem mais do que no caso do cemitério americano, que não tem nenhuma identificação na superfície — porque tudo é submerso.

Uma ideia parecida no Brasil

O cemitério debaixo d´agua da Flórida trouxe uma ideia a outro americano, este morador no Brasil há quase dez anos.

Cemitério no fundo do mar - Alexandre Suplicy - Alexandre Suplicy
Imagem: Alexandre Suplicy

David Ferdinand, um ex-empresário do setor de hotelaria que trocou Miami por uma ilha deserta no litoral norte de São Paulo, onde vive em total sintonia com a natureza, sem sequer luz elétrica, só anda descalço, come apenas o que planta e se autoentitula "David, o índio", feito uma espécie de Robinson Crusoé moderno (embora a ilha onde ele viva fique no trecho mais desenvolvido do litoral norte paulista, a pouco mais de dez minutos de barco da mais movimentada praia da região, a de Juqueí), se interessou pelo conceito da "fomentação da vida no mar após a morte", mas resolveu aprimorar a ideia do cemitério submarino dos seus conterrâneos.

Em nome do meio ambiente, David, em seu projeto, quer substituir os blocos e figuras de cimento por um simples drone, que lançará no mar que cerca a ilha onde ele vive as cinzas dos mortos que desejarem compartilhar da mesma paisagem e paz de espírito que ele usufrui.

O memorial submarino da Flórida foi feito para dar lucro. Já o meu projeto é só para gerar paz de espírito aos mortos e seus familiares", diz David, que é adepto fervoroso das energias da mente e da natureza.

Cemitérios superlotados

"A questão dos cemitérios convencionais é bem mais séria do que parece", diz David, que também se define como um "gringo caiçara" e ainda fala português com certa dificuldade.

"O cemitério de Juqueí, por exemplo, já não tem lugar para mais nenhum corpo ser enterrado. Já o mar é imenso e permite, sim, algum tipo de vida após a morte, só que de outra forma".

Seu argumento sobre a superlotação de alguns cemitérios é corroborado por alguns estudiosos. Mas o uso do mar com este propósito é visto com ressalvas.

"Em diversas partes do país, o chorume cadavérico é realmente um problema sanitário", confirma o neurocientista Paulo Faria, que conhece vagamente o projeto de David.

É uma ideia interessante. Só não sei se é viável", diz o especialista.

Virar comida de peixe

Para dar forma ao seu projeto, David criou uma pequena empresa, o Eport - Eternal Energy Portal ("Portal da Energia Eterna") e procurou uma empresa de drones, que está implantando um sistema de entregas pelo ar — o trabalho deles seria o transporte até o mar que rodeia a ilha onde ele vive de um pote especial contendo as cinzas de um corpo cremado.

"Esse pote será feito com farinha de peixe seco e é totalmente biodegradável", explica David. "Ao ser lançado pelo drone sobre o mar da ilha, ele dissolverá na água e será ingerido pelos peixes, tal qual as cinzas da pessoa — que, assim sendo, continuará ´viva` de outra forma".

"O drone também filmará o lançamento do pote ao mar, para que os familiares possam acompanhar a cerimônia, até mesmo aqui da ilha, que fica ao lado do local onde as cinzas serão lançadas", diz David, que sempre recebe com um largo sorriso todo mundo que o visita na ilha — bem poucos, por sinal, porque a maioria das pessoas nem sabe que naquela ilha coberta de mata virgem vive alguém.

Não haverá barcos na água, estátuas de concreto submersas nem nada que interfira no meio ambiente marinho", explica o americano, que vibra com a ideia.

Paz e conforto espiritual

"Não é mesma coisa que apenas lançar as cinzas de uma pessoa na beira da praia, porque, devido à proximidade com a areia, elas, às vezes, não se dispersam, nem acabam servindo como fonte de energia para os seres marinhos, que deve ser o princípio básico desse tipo de escolha".

"Já vi casos em que o saco plástico que continha as cinzas da pessoa dentro da urna também cair no mar, o que é totalmente contrário ao propósito e também ao meio ambiente", completa David, que se prepara para fazer os primeiros testes do projeto já no mês que vem.

"Pode parecer maluquice, mas se já existe até cemitério submarino, por que não aperfeiçoar a ideia e ainda resolver o problema da superlotação dos cemitérios?", questiona o irrequieto americano, que garante não visar lucro no negócio.

Cemitério no fundo do mar - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

Meu objetivo é apenas trazer a mesma paz e conforto espiritual que eu tenho na ilha onde vivo para as outras pessoas"

O ermitão que não conseguiu

Ser sepultado no ambiente tranquilo de uma ilha deserta faz parte do desejo de muita gente.

Mas poucos conseguem.

Mesmo quem passou boa parte da vida nela.

Cemitério no fundo do mar - Permalink - Permalink
Imagem: Permalink

Um dos casos mais emblemáticos foi o do neozelandês Thomas Neale que, mesmo tendo vivido 15 anos sozinho em uma ilha deserta do Pacífico Sul, entre as décadas de 1970 e 1980, não conseguiu ser enterrado nela por razões políticas e burocráticas (clique aqui para conhecer a interessantíssima história de um dos ermitões mais famosos da História).

Tal qual Thomas Neale, o americano-brasileiro David Ferdinand também acha que todo mundo tem o direito de passar a eternidade no ambiente de paz de uma ilha deserta. Mesmo que seja debaixo d´água.